versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.26 no.2 São Paulo mar./abr. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2014408IN
De acordo com estudos epidemiológicos, a disfonia é um sintoma comum na infância, possui prevalência de 6 a 38%( 1 - 5 ) e pode impactar, de forma adversa, a vida da criança nos aspectos de saúde geral, eficiência comunicativa, desenvolvimento socioeducacional e na participação em atividades escolares em grupo( 6 ). O distúrbio vocal promove efeito negativo sobre como a criança é percebida por adultos e seus pares( 6 ) e está mais presente no gênero masculino( 1 ).
Na infância não há diferenças anátomo-fisiológicas importantes entre laringes masculina e feminina. Portanto, a maior prevalência de disfonia e do nódulo vocal em meninos pode ser justificada por características de personalidade( 1 , 7 - 10 ) e comportamentos vocais inadequados( 8 ). Outras diferenças estudadas, como prováveis explicações, são as atividades físicas e sociais de meninos, que demandam uso vocal excessivo( 1 , 7 , 9 , 10 ), porém ainda não há consenso, e estudos são necessários para confirmar ou refutar essas diferenças de personalidade e de comportamento entre os gêneros na infância que possam justificar sua associação com a disfonia infantil( 11 ).
A disfonia infantil possui etiologia diversa e multicausal, podendo ser orgânica, comportamental ou estar relacionada a fatores emocionais( 12 ). Dentre essas causas, a mais incidente é a funcional, relacionada a comportamentos de abuso e mau uso da voz, sendo o nódulo vocal a lesão laríngea mais frequente( 2 , 7 , 8 , 13 , 14 ). Estudos mostraram que esses comportamentos vocais desviantes podem ser interpretados como uma forma de interação, agressão, liderança ou desejo de se tornar aceito por um grupo, resultante da associação de fatores anatômicos, fisiológicos, sociais, emocionais ou ambientais( 15 , 16 ) e estão presentes em 39,6% das crianças de cinco a sete anos de idade, na percepção dos pais( 17 ). Tais comportamentos podem ser o primeiro sintoma de distúrbios neuropsiquiátricos, que levam aos problemas emocionais, sociais e comportamentais citados( 18 ).
Dessa forma, as pesquisas buscam compreender o distúrbio vocal infantil e definir as recomendações para a intervenção preventiva e terapêutica junto a fatores de risco. Estudos( 19 - 21 ) têm sugerido que há associação entre distúrbios da voz, personalidade e o comportamento, tanto para adultos quanto para crianças.
O objetivo deste trabalho é revisar de forma integrativa e analisar criticamente a literatura quanto às características comportamentais de crianças disfônicas, discutindo o perfil traçado e a sua relação com a etiologia do distúrbio vocal e procurando apontar recomendações sobre a importância da análise do comportamento infantil na avaliação da voz.
Para atingir o objetivo, utilizou-se a revisão integrativa da literatura( 22 ) a fim de se obter melhor entendimento sobre a temática baseado em estudos anteriores. Segundo esse método( 22 ), a revisão reúne e sistematiza resultados de pesquisas sobre um delimitado tema ou questão de forma sistemática e ordenada, pretendendo contribuir com o aprofundamento do conhecimento.
Assim, a análise da literatura seguiu seis etapas( 22 ). Na primeira, definiu-se o tema "características comportamentais de crianças disfônicas", e na segunda foram selecionadas as bases de dados LILACS, IBECS, MEDLINE, Biblioteca Cochrane, SciELO (brasil.bvs.br) e Web of Science ISI (http://periodicos.capes.gov.br) para a busca na literatura, com os seguintes critérios de inclusão: artigos originais, ano de publicação entre 2000 e 2012, e idiomas português, inglês e espanhol.
Para a busca na literatura, foram utilizados os termos: voice disorders; childhood dysphonia; voice disturbance; dysphonia; voice e vocal fold, sempre com limite child, e foram encontrados 528 artigos que estudaram a voz e o distúrbio vocal infantil.
Tentou-se refinar a busca pelos descritores relacionados ao comportamento behavior; psychological; child behavior; child behavior disorders; social behavior, mas essa estratégia excluiu artigos que abordam características comportamentais específicas, como hiperactivity e temperament, dentre outros utilizados nos estudos. Definiu-se então como estratégia de seleção dos estudos, na terceira etapa da revisão, a leitura dos resumos dos 528 artigos na BVS e na base ISI.
Pelos resumos, foram escolhidos sete artigos que abrangem o tema "características comportamentais de crianças disfônicas", sendo eles: Hamdan et al.( 18 ); Niedzielski et al.( 23 ); Maia et al.( 24 ); Vicari et al.( 25 ); Roy et al.( 26 ); Angelillo et al.( 27 ); e Edgger et al.( 28 ).
No quarto passo de categorização dos oito trabalhos selecionados, observou-se que quatro estudaram o comportamento de crianças com nódulos vocais( 23 , 24 , 26 , 28 ), um avaliou as características comportamentais de crianças disfônicas com vários tipos de lesão de prega vocal( 27 ) e três correlacionaram o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) à disfonia( 18 , 24 , 25 ) (Quadro 1).
A quinta etapa contou com a análise bibliométrica para caracterização dos estudos selecionados. Posteriormente, foram extraídos os conceitos abordados em cada artigo e de interesse dos pesquisadores. Os trabalhos foram comparados e agrupados por similaridade de conteúdo, sendo construídas duas categorias para análise, assim especificadas: características gerais do comportamento das crianças com disfonia e transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e disfonia.
A partir disso, os artigos foram discutidos, viabilizando a síntese do conhecimento e concluindo a sexta etapa da revisão integrativa do assunto.
Edgger et al.( 28 ) compararam as características do temperamento de três grupos de crianças, distintos pelo tipo de distúrbio da comunicação. Um foi formado por 69 crianças gagas, outro por 146 com transtorno de desenvolvimento e o terceiro por 41 com nódulos vocais. Eles utilizaram o questionário Children's Behavior Questionnaire (CBQ), que analisa o temperamento, ou seja, avalia as diferenças individuais em domínios nos níveis de ação, atenção e afeto da criança, relativo à reatividade emocional, excitação e à autorregulação, construtos considerados centrais no temperamento. Esse instrumento é composto por 15 escalas que se agrupam em três dimensões, a saber: afetividade negativa, extroversão e controle por esforço( 28 ).
Nesse estudo( 28 ), o fator estrutural temperamento foi fortemente similar entre os três grupos. Na análise por escalas, as crianças com nódulos vocais apresentaram forte fator de irritação/frustração (centra-se na afetividade negativa relacionada à interrupção de tarefas em andamento); tristeza (consiste na afetividade negativa, humor e energia em baixa, relacionadas com exposição a sofrimento, desapontamento, e perda); sensibilidade/limiar de resposta (concentra-se na detecção de estímulos leves, de baixa intensidade do ambiente externo); medo (trata a afetividade negativa, incluindo mal-estar, preocupação ou nervosismo, que está relacionado com antecipação de dor ou estresse e/ou situações potencialmente ameaçadoras); desconforto (consiste na afetividade negativa relacionada a qualidades sensoriais de estimulação), todos correspondentes à dimensão de afetividade negativa nas condutas de comportamento.
Já Roy et al.( 26 ) estudaram as características comportamentais de 26 crianças com nódulos vocais utilizando o instrumento Child Behavior Checklist (CBCL), validado para o Brasil com o nome Inventário do Comportamento da Criança para Pais (ICCP)( 29 ) e que pretende descrever e avaliar as competências sociais e os problemas de comportamento da criança/adolescente, tal como são percebidos pelos pais ou seus substitutos. O CBCL possui duas partes, sendo a primeira composta por 20 questões sobre a quantidade e qualidade do envolvimento do sujeito em várias atividades e situações de interação social, desde os esportes e passatempos até o número de amigos e participação em clubes e equipes, por exemplo; e a segunda por 120 itens relativos a diversos problemas de comportamento e/ou perturbações emocionais( 26 ).
Os resultados deste trabalho( 26 ) mostraram que crianças com e sem nódulos vocais tiveram escores totais do CBCL dentro da normalidade e se diferenciaram pela escala social, sugerindo que crianças com nódulos vocais possuem mais amigos, gastam mais tempo com eles e se envolvem mais em organizações. Dessa forma, os autores concluíram que as características comportamentais sociais dessas crianças condizem com o uso vocal. Na análise por item, os comportamentos de "gritar muito" e "implicar muito" também tiveram associação significativa com a presença do nódulo vocal( 26 ).
Outro estudo, de Niedzielski et al.(23), descreveu o comportamento de crianças após a alta da fonoterapia para disfonia por nódulos vocais, avaliando o perfil psicológico de 14 crianças por análise clínica e concluindo que esses meninos são mais excitáveis, nervosos, independentes e, muitas vezes, individualistas, com disposição para liderar e dominar. Esses autores concluíram que a psicoterapia pode completar o tratamento tradicional para nódulos vocais em crianças( 23 ).
Em outro estudo, de Angelillo et al.( 27 ), a característica comportamental de hiperatividade foi relacionada ao distúrbio vocal infantil num estudo epidemiológico com 312 crianças disfônicas, sendo 92% dessas de etiologia funcional. Nessa pesquisa( 27 ) encontrou-se 83% de prevalência de atitudes de hiperatividade e agressividade em crianças disfônicas nos ambientes escolar e familiar, por meio da avaliação clínica neuropsiquiátrica.
Os comportamentos de hiperatividade/impulsividade e de déficit de atenção foram avaliados em crianças com e sem nódulos vocais pela escala SNAP-V no artigo de Maia et al.( 24 ). Essa escala é construída por 18 itens referentes aos comportamentos relacionados aos sintomas do TDAH, descritos pelo Manual de Diagnóstico e Estatística - IV Edição (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiatria. Foram comparados os comportamentos de dez crianças com nódulos vocais e dez sem nódulos vocais, pareadas por idade e gênero. Os autores concluíram que esses grupos se diferem quanto aos escores que indicam a presença do traço de desatenção, hiperatividade/impulsividade e no escore total de indicativos de presença de TDAH( 24 ).
De forma contraditória ao estudo anterior, outros pesquisadores( 25 ), estudando apenas o gênero masculino, compararam dois grupos de crianças da faixa etária entre 8 e 11 anos, distintos pela presença de sinais e sintomas de TDAH, e concluíram que não há relação entre desvios vocais e o TDAH. Porém, a presença do distúrbio psiquiátrico se correlacionou ao maior grau de desvio de alteração vocal( 25 ).
Outra pesquisa, de Hamdan et al.(18), também associou a disfonia e o TDAH, porém foram selecionadas para o grupo experimental apenas crianças com TDAH do subtipo combinado. Concluiu-se que se trata de um fator de risco para a disfonia infantil. Nesse estudo, os autores encontraram que crianças com TDAH-combinado têm vozes com intensidade mais forte e qualidade tensa, ruidosa e soprosa quando comparadas a crianças sem TDAH( 18 ). Os próprios autores relataram que o estudo tem limitações pelo tamanho da amostra e pela ausência de avaliação laringológica das crianças, o que poderia justificar o maior desvio vocal nesta população pela presença de edema ou formação nodular nas pregas vocais( 18 ).
A voz é uma das expressões que revela elementos de dimensões biológica, psicológica e socioeducacional( 30 ). Dessa forma, é lógico pensar que certas características comportamentais podem estar associadas ao aparecimento da disfonia. Porém, observa-se que há poucas pesquisas nessa área para a população infantil e que não há um consenso sobre essa associação nos estudos encontrados.
Nas pesquisas realizadas com instrumentos que avaliam o perfil global do comportamento, o CBQ( 28 ) e CBCL( 26 ), observa-se que as crianças disfônicas não se diferenciam de crianças sem disfonia e nem de crianças com outros distúrbios de comunicação. Porém, na análise de traços específicos de comportamentos, as com distúrbio vocal se caracterizam por apresentar diferentes atividades sociais( 26 ); pela hiperatividade/impulsividade( 18 , 24 , 27 ) e pela afetividade negativa na definição de condutas( 28 ).
Uma hipótese a ser testada é se a tendência do indivíduo para o domínio social, com ênfase na comunicação verbal (vocal), pode ter consequências no comportamento vocal na forma de fonotrauma, como encontrado na correlação entre volume de voz aumentado e maior sociabilidade e extroversão numa pesquisa( 31 ).
Estudos( 26 , 28 ) sugerem que não há perfil comportamental típico de criança com nódulos vocais, como afirmam estudos mais antigos que as caracterizam, como agressivas, distraídas, imaturas e com distúrbios com relação ao par( 20 , 21 , 32 - 34 ).
Todas as pesquisas de associação entre o TDAH e a disfonia infantil seguiram o mesmo método de diagnóstico do distúrbio, o DSM-IV, mas com critérios de seleção de amostra diferentes, o que prejudica a força das evidências encontradas na comparação entre eles. Estudando apenas meninos com indicação de presença de TDAH, pesquisadores(25) não observaram a associação positiva encontrada por outros autores( 24 ). Já com amostra de apenas crianças com o subtipo combinado de TDAH, a associação destes distúrbios foi positiva( 18 ).
A disfonia infantil pode estar associada a problemas perceptuais e psicossociais( 13 ). Pela análise dos artigos, esse distúrbio vocal se associa a características psicocomportamentais e a caracterização funcional desses comportamentos pode auxiliar na conduta terapêutica e direcionar futuras pesquisas.
Em nenhum dos estudos analisados foi abordada a diferença de comportamento entre os gêneros das crianças a fim de se discutir o fator como a explicação da maior ocorrência de disfonia nos meninos, como sugerem outras pesquisas( 1 , 7 - 10 ).
O resultado da pesquisa evidencia a pequena quantidade de estudos que associam o comportamento global a características vocais na infância. Além disso, a maioria deles não utilizou instrumentos validados e confiáveis.
Não encontramos pesquisas com métodos de avaliação comportamental baseada na observação direta, experimentos comportamentais e medidas psicofísiológicas, o que possibilitaria avaliação mais profunda e objetiva das várias dimensões que circundam o comportamento das crianças, que podem estar ou não associadas aos hábitos de abuso e mau uso vocal e, assim, à disfonia.
A rouquidão não deve ser identificada como parte do desenvolvimento normal da criança; as brincadeiras e hábitos, por sua vez, precisam ser revistos para a manutenção da voz adequada e do pleno desenvolvimento da comunicação, ajuste social e emocional e do discurso da criança( 17 ). Possíveis causas e fatores mantenedores que possam estar relacionados às alterações vocais nas crianças são esclarecidos pela caracterização mais detalhada do seu comportamento. Além disso, a multidisciplinaridade é essencial no diagnóstico e tratamento dos distúrbios vocais.
A revisão integrativa sobre as características comportamentais de crianças disfônicas não estabelece um perfil, e a sua relação de causa e efeito ainda não foi confirmada. Mas os resultados são consistentes na recomendação sobre a importância da análise na avaliação desse sintoma.