versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.3 São Paulo maio/jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014114
A aquisição da escrita tem se tornado um objeto constante de investigação, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Nos últimos cinco anos, questões diversificadas sobre ela estão sendo investigadas sob diferentes perspectivas teórico-metodológicas.
No interior dessa diversificação, as investigações têm se voltado, principalmente, ao desempenho ortográfico em tarefas caracterizadas como de leitura, escrita e consciência fonológica( 1 - 7 ). Em menor frequência, porém não menos relevante, estão as investigações que se voltam para os chamados desvios da ortografia, caracterizados não só pelos tipos de erros cometidos, mas especialmente pelo modo como se desenvolve o processo da escrita( 8 - 10 ). Por fim, encontram-se estudos direcionados à eficácia dos programas fonoaudiológicos no desempenho de escolares( 11 ).
Além das mencionadas, outras investigações têm se voltado para: a relação entre fala e escrita( 12 ); a relação entre ortografia e letramento( 13 ); a questão da autoria na escrita( 14 ) e, ainda, a problematização dos critérios que devem considerar como patológicos os erros na escrita infantil( 15 ).
Nota-se pouca referência sobre as relações entre ortografia e aspectos fonético-fonológicos da língua nessa literatura. Tais relações, porém, vêm sendo investigadas pelos grupos de pesquisa "Estudos sobre a aquisição da linguagem escrita" (GEALE/CNPq)( 16 - 18 ) - sediado na Universidade Federal de Pelotas - e "Estudos sobre a linguagem" (GPEL/CNPq)( 19 - 25 ) - localizado na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP).
Chama-se a atenção para três trabalhos desenvolvidos no interior do GPEL: dois deles pela relação que os autores buscam entre registros ortográficos, posição silábica e acento da palavra( 19 , 22 ); e o terceiro por verificar o registro da nasalidade em posição de ataque e de coda silábica( 21 ). Além disso, o fato de tratarem sobre as relações entre aspectos fonético-fonológicos e ortografia em crianças de série final de educação infantil também é importante.
Investigar a ação desses aspectos (fonético-fonológicos) na aquisição da ortografia é justamente a preocupação mais geral da pesquisa relatada no presente artigo. Mais especificamente, levando-se em consideração a relação fonologia/ortografia, sua proposta é investigar o desempenho ortográfico de crianças em relação às consoantes soantes na posição de ataque silábico simples, em produções de palavras não controladas.
A pesquisa relatada teve como objetivos: descrever o desempenho ortográfico de crianças, no que se refere ao registro de consoantes soantes do Português Brasileiro (PB); verificar se os erros dos registros dessas consoantes sofriam influência do acento no interior da palavra; e categorizar os tipos de erros encontrados.
O desenvolvimento desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da UNESP, sob o número 0856/2013.
Os dados analisados foram extraídos de produções textuais componentes de um banco de dados que subsidia investigações do GPEL/CNPq. Esse é constituído por produções textuais de crianças da primeira à quarta série do ensino fundamental, que foram acompanhadas durante os anos de 2001 a 2004 e frequentavam duas escolas públicas de uma cidade do interior de São Paulo. Essas produções foram coletadas por pesquisadores do GPEL, aproximadamente a cada 15 dias, com um total de 12 a 15 propostas temáticas realizadas por ano. As produções das crianças foram, então, digitalizadas e organizadas por escola e ano.
Como critério de inclusão para a construção do banco de dados, foram consideradas todas aquelas que não apresentavam queixas de dificuldade de linguagem e/ou aprendizagem relatadas por pais e/ou professores.
Foram selecionadas criações resultantes do desenvolvimento de 14 diferentes propostas temáticas, realizadas por 76 crianças da primeira série do ensino fundamental, em 2001, advindas de duas escolas em que os dados foram coletados. Do total de 1.064 produções esperadas (14 propostas versus 76 crianças): 199 não ocorreram por motivo de falta das crianças em dias de coleta ou pelo fato de algumas delas terem ingressado nas escolas após o início do recolhimento das produções e 64 foram descartadas pelo fato de a escrita do texto ser não interpretável. Foram analisadas, portanto, 801 produções. Dessas, foram selecionadas as palavras com ocorrência de consoantes soantes em posição silábica de ataque simples. Essas situações foram, então, organizadas conforme aparecessem em sílabas pré-tônicas, tônicas, pós-tônicas, monossílabos átonos e tônicos.
Para se descrever como os dados foram analisados, serão retomados os objetivos desta pesquisa. Com relação ao primeiro de descrever o desempenho ortográfico de crianças, no que se refere ao registro de consoantes soantes do Português Brasileiro, foram adotados como critérios de análise desse desempenho o levantamento de: acertos - registros dos grafemas segundo sua ortografia convencional; e erros - dados não convencionais ou omissões de grafemas que remetiam às consoantes soantes.
Quanto à análise dos resultados relativos ao segundo objetivo, ou seja, verificar se os erros dos registros dessas consoantes sofriam influência do acento no interior da palavra, os erros foram divididos em dois grandes grupos, conforme ocorressem em: sílabas não acentuadas - pré e pós-tônicas e monossílabos átonos; e acentuadas - tônicas e monossílabos tônicos.
Por fim, será descrita a forma de análise dos resultados relativos ao terceiro objetivo, que é categorizar os tipos de erros encontrados, os quais foram distribuídos em três categorias principais:
omissões - quando não houve registro do grafema que remetia a uma soante, como, por exemplo, na palavra "mata" escrita como "ata";
substituições ortográficas - quando a substituição do grafema não alterou o valor fonológico da palavra, como, por exemplo, na palavra "rato" escrita como "rrato";
substituições fonológicas - quando a troca do grafema alterou o valor fonológico da palavra, como, por exemplo, na palavra "palha" escrita como "pala".
Os erros fonológicos foram, ainda, subdivididos em função de envolverem elementos da mesma classe fonológica (dos fonemas soantes), categorizado como substituições dentro da classe (DC); ou mobilizarem elementos de outra (mais especificamente, da grande classe dos fonemas obstruintes), referido como substituições fora da classe (FC).
Um tratamento estatístico dos dados foi aplicado com o uso do software Statistica, versão 7.0. Foram feitas as análises descritiva e inferencial. Para a descritiva, utilizaram-se duas medidas de tendência central (média e mediana) e uma de dispersão (desvio padrão).
Empregou-se o teste não paramétrico Sign test para análise das variáveis dependentes: acertos e erros; erros em sílabas acentuadas e em não acentuadas; omissões/erros ortográficos/fonológicos em sílabas acentuadas e em não acentuadas; e erros fonológicos dentro e fora da classe. Utilizou-se, ainda, o teste não paramétrico ANOVA chi square para análise das variáveis dependentes "substituições fonológicas dentro/fora da classe" e "sílabas acentuada/não acentuada". A escolha de tais instrumentos se baseou na verificação da violação da curva do teste de normalidade Shapiro-Wilk, adotando-se o valor do nível de significância (α)≤0,05.
Para melhor exposição, os resultados encontrados serão dispostos de acordo com os objetivos norteadores da pesquisa.
Com relação aos resultados obtidos para o primeiro objetivo, foram encontradas 12.619 possibilidades de ocorrência do registro de consoantes soantes em ataque simples, que foram distribuídas entre acertos e erros. A Tabela 1 mostra essa distribuição.
Tabela 1. Distribuição das ocorrências de acertos e erros
Acurácia | Número de ocorrências | Média | Mediana | Desvio padrão | Sign test |
---|---|---|---|---|---|
Acertos | 11.917 | 851,21 | 775 | 381,10 | z=3,47 p=0,00 |
Erros | 702 | 50,14 | 47 | 30,17 |
Sign test (a=0,05)
Observou-se uma quantidade de acertos extremamente maior do que de erros. Além disso, a distribuição dos erros é mais consistente do que a dos acertos.
Conforme antecipado, os dados encontrados para o segundo objetivo foram agrupados em sílabas acentuadas e não acentuadas. Os valores correspondentes a esse agrupamento estão expostos no Figura 1 e na Tabela 2.
Tabela 2. Distribuição dos erros em sílabas acentuadas e não acentuadas
Sílabas | Média | Mediana | Desvio padrão | Sign test |
---|---|---|---|---|
Acentuadas | 18,57 | 16 | 11,42 | z=2,40 p=0,02 |
Não acentuadas | 31,57 | 26 | 21,05 |
Sign test (a=0,05)
Notou-se maior ocorrência de erros em sílabas não acentuadas, bem como distribuição mais consistente deles em sílabas acentuadas do que em não acentuadas.
Por fim, com relação aos resultados encontrados para o terceiro objetivo, observou-se a distribuição dos erros entre omissões, substituições ortográficas e fonológicas (Figura 2 e Tabela 3).
Figura 2. Distribuição das ocorrências de omissões, substituições ortográficas e fonológicas em sílabas acentuadas e não acentuadas
Tabela 3. Distribuição das ocorrências de omissões, substituições ortográficas e fonológicas em sílabas acentuadas e não acentuadas
Erros | Sílabas acentuadas | Sílabas não acentuadas | Sign test | ||
---|---|---|---|---|---|
Média (DP) | Mediana | Média (DP) | Mediana | ||
Omissões | 2,07 (1,73) |
1,5 | 8,93 (7,99) |
7 | z=2,77 p=0,00 |
Ortográficos | 0,5 (0,76) |
0 | 1,57 (2,53) |
0 | z=0,9 p=0,37 |
Fonológicos | 16 (11,45) |
11,5 | 21,07 (14,51) |
16,5 | z=1,34 p=0,18 |
Sign test (a=0,05). Legenda: DP = desvio padrão.
A maior ocorrência de erros foi de substituições fonológicas, seguida de omissões e, por fim, de substituições ortográficas - tanto em sílabas acentuadas quanto em não acentuadas. Observou-se, ainda, que houve diferença apenas nos valores de omissões entre as sílabas acentuadas e não acentuadas.
Ainda com relação ao terceiro objetivo, houve a ocorrência de substituições fonológicas dentro e fora da classe fonológica das soantes, cujos resultados estão expostos na Tabela 4.
Tabela 4. Distribuição das substituições fonológicas dentro e fora da classe fonológica das soantes
Substituições | Média | Mediana | Desvio padrão | Sign test |
---|---|---|---|---|
Dentro da classe | 35 | 26,5 | 22,8 | z=3,47 p=0,00 |
Fora da classe | 2,08 | 1,5 | 2,02 |
Sign test (a=0,05).
Para melhor visualizar a distribuição de substituições dentro e fora da classe fonológica das consoantes soantes e verificar uma possível relação entre essa distribuição e a posição acentuada ou não acentuada nas sílabas, os resultados foram reorganizados conforme expostos no Figura 3 e na Tabela 5.
Figura 3. Distribuição das substituições dentro e fora da classe das soantes em sílabas acentuadas e não acentuadas
Tabela 5. Distribuição das substituições dentro e fora da classe fonológica das soantes em sílabas acentuadas e não acentuadas
Substituições fonológicas | Acentuadas | Não acentuadas | χ2 |
---|---|---|---|
Dentro da classe | 211 | 279 | χ2=0,03 p=0,85 df=1 |
Fora da classe | 13 | 16 |
Teste não paramétrico 2x2 table: ?2 (a=0,05).
Observou-se um maior número de ocorrência de substituições que envolveram grafemas referentes à classe das consoantes soantes (dentro da classe) comparado ao daquelas que remetiam a outras classes fonológicas (fora da classe). Porém, não foi encontrada relação entre essa distribuição e o acento no interior da palavra.
Com relação ao resultado encontrado para o primeiro objetivo - número de ocorrências de acerto maior em relação ao de erros -, nota-se que as crianças em estudo, mesmo que em série inicial de alfabetização, tendem prioritariamente à estabilidade ao registrar graficamente as consoantes soantes. Chama-se atenção para isso, visto que trabalhos que se voltam para as questões ortográficas na aquisição da escrita( 8 - 10 ) enfatizam, principalmente, o erro. Embora seja "no chamado 'erro' e não no 'acerto' que se pode contar com a visibilidade ou transparência da relação da criança com a língua em aquisição"( 26 ), a grande estabilidade ortográfica das crianças estudadas na pesquisa em relato aponta para a importância do acerto na caracterização da aquisição ortográfica.
Quanto à conclusão do segundo objetivo - predomínio de erros em sílabas não-acentuadas -, sua explicação pode ser fundamentada em aspectos fonéticos relativos ao acento. A sílaba pode ser entendida, pela perspectiva fonética motora, como o "resultado de movimentos musculares, quando os músculos da respiração modificam o processo respiratório adaptando-o ao processo de fala"( 27 ). Desse modo, em termos motores, os músculos se contraem e relaxam, modificando a corrente expiratória e fazendo com que o ar saia em pequenos jatos, cada um dos quais corresponde a uma sílaba.
No entanto, este esforço muscular nem sempre é feito de modo idêntico. Às vezes, ele é realizado com maior vigor e duração, diferença que resultará na produção de sílabas acentuadas e não acentuadas. Assim, uma sílaba acentuada no PB, foneticamente, terá maior intensidade, aumento de duração e elevação de frequência, ao passo que uma não acentuada terá menor intensidade, menor duração e rebaixamento de frequência. Dessa maneira, as sílabas não acentuadas tornam-se, a priori, menos perceptíveis auditivamente, o que justificaria a maior dificuldade ortográfica das crianças justamente nessas sílabas.
Por fim, discutem-se os resultados encontrados para o terceiro objetivo. O maior número de substituições fonológicas, comparado ao das ortográficas, pode ser explicado pelo predomínio da transparência na escrita das consoantes soantes no PB. Com efeito, a ortografia de seis dos sete fonemas é transparente, ou seja, esses seis mostram apenas uma possibilidade de representação grafêmica. Portanto, qualquer substituição deles resultará, obrigatoriamente, em mudança de valor fonológico da palavra.
Por outro lado, o menor número de omissões, comparado ao de substituições, indica que as crianças tendem a, preferencialmente, registrar o grafema, sugerindo que, de algum modo, essas crianças percebem a estrutura da sílaba e tentam preencher ortograficamente cada uma de suas posições essenciais (ou seja, o ataque e o núcleo). Dessa maneira, mesmo não dominando plenamente os símbolos gráficos a serem utilizados, preenchem com um grafema o espaço correspondente ao ataque silábico simples.
Vale ressaltar também o fato de apenas as omissões se mostrarem em contextos de sílabas acentuadas e não acentuadas. Explicam-se as ausências predominantes em sílabas não acentuadas, novamente, pelas suas características fonéticas - menor intensidade, menor duração e rebaixamento de frequência. Observa-se, portanto, que a dificuldade geral apontada anteriormente nas sílabas não acentuadas justifica-se, essencialmente, pela presença de uma maior quantidade de omissões em tais sílabas.
Ainda em relação aos resultados encontrados para a terceira meta, notou-se maior número de ocorrência de substituições que envolveram grafemas referentes à classe das consoantes soantes (DC) quando comparado ao daquela de outras classes fonológicas (FC). Essa tendência indica que as crianças dominam, em boa medida, os aspectos fonéticos que distinguem fonemas obstruintes de soantes, ou seja, os aspectos fonológicos da língua, bem como o conhecimento dos grafemas que representam tais fonemas na escrita.
Além dos estudos mencionados nesta discussão, não foram encontrados, na literatura, resultados convergentes ou divergentes daqueles encontrados na presente pesquisa, já que os estudos acessados não foram desenvolvidos com material e procedimentos iguais ou semelhantes aos adotados na pesquisa.
Conclui-se que as crianças investigadas, mesmo em início de alfabetização, tendem, preferencialmente, a registrar de maneira correta os grafemas correspondentes às consoantes soantes.
Em relação aos erros, observou-se que sofrem influência do acento, sobretudo em relação ao registro/não registro do grafema, uma vez que a escrita das consoantes soantes em sílabas não acentuadas apresentou maior dificuldade às crianças.
Em conclusão, as substituições fonológicas foram as mais frequentes dentre os erros encontrados, seguidas das omissões e das substituições ortográficas. As substituições fonológicas, ainda, predominantemente, ocorreram entre grafemas que remetiam à mesma classe das soantes.
A presente pesquisa aponta para a importância da análise de dados ortográficos, levando-se em consideração sua distribuição entre acertos e erros, bem como suas relações com aspectos fonético-fonológicos da língua. A investigação dessas relações pode contribuir para o entendimento das dificuldades escolares, encontradas nas séries iniciais de alfabetização, uma vez que não apenas a proporção entre acertos e erros mas, ainda, sua relação com aspectos fonético-fonológicos, possibilitam uma melhor detecção das diferentes dificuldades ortográficas encontradas no interior de uma mesma classe fonológica.
Sugere-se que investigações sobre relações entre ortografia e aspectos fonético-fonológicos sejam desenvolvidas com populações variadas a fim de possibilitar melhor entendimento desses vínculos, bem como tornar possível uma maior generalização das inferências encontradas.