versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.12 Rio de Janeiro dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152112.24332016
Os traumatismos decorrentes dos acidentes no trânsito constituem um problema global, que resulta em impactos sociais, psicológicos, econômicos, previdenciários e ambientais, além de sobrecarregar os serviços de saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2013, as mortes e as lesões no trânsito foram responsáveis por um custo global de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) das diferentes nações, sendo que em países com renda baixa e média este foi ainda maior, 5% do PIB1. Também, segundo estimativas da OMS, são registrados cerca de 1,25 milhão de mortes anuais por lesões no trânsito, o que representa mais de 3.400 ocorrências por dia e corresponde a 12% do total de óbitos no planeta1.
No Brasil, as lesões por acidentes no trânsito, ou acidentes de transporte terrestre (ATT), representam a segunda causa de morte entre todos os óbitos por motivos externos, com maior ocorrência na população de 15 a 39 anos. Em 2014, esses acidentes foram responsáveis pela morte de 43,8 mil pessoas, sendo que 12.652 destas ocorreram entre motociclistas. No mesmo ano, foram registradas 96.292 internações de motociclistas, resultando em um dispêndio de R$ 126 milhões, o que representou 52% do total dos gastos com internação de vítimas de ATT no Sistema Único de Saúde (SUS)2.
A causalidade dos acidentes envolvendo os motociclistas é multifatorial e relacionada aos seguintes aspectos: vulnerabilidade devida ao tipo de veículo, aumento vertiginoso da frota, segurança viária e veicular, comportamentos de risco1,3, além da utilização crescente deste veículo como instrumento de trabalho sem uma abordagem voltada para a segurança laborial4.
Desde 2006, o Ministério da Saúde vem realizando o monitoramento dos atendimentos de emergência por ATT em serviços públicos de urgência e emergência nas capitais dos estados e no Distrito Federal por meio do Inquérito sobre Violências e Acidentes em Serviços de Urgência e Emergência (VIVA Inquérito), uma modalidade de vigilância sentinela. Essa modalidade de vigilância permite analisar a tendência desse tipo de atendimento, complementando as informações sobre o perfil das vítimas e dos tipos de ocorrência5–7.
Dentre as diversas publicações a partir dos dados do VIVA Inquérito, ainda não haviam sido divulgados resultados específicos sobre os atendimentos decorrentes de acidentes com motociclistas. Desta forma, o estudo atual pretende descrever características dos motociclistas envolvidos em acidentes de transporte, atendidos nos serviços públicos de urgência e emergência, nas capitais brasileiras e no Distrito Federal em 2014.
Estudo transversal com base nos dados sobre atendimentos de vítimas de acidentes de transporte envolvendo motociclistas, obtidos na pesquisa VIVA Inquérito, realizada em 86 serviços de urgência e emergência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), localizados no Distrito Federal e em 24 capitais brasileiras, no ano de 2014. As capitais Florianópolis (Santa Catarina) e Cuiabá (Mato Grosso) não participaram do inquérito devido a questões locais relacionadas a aspectos gerenciais e técnico-operacionais.
Em cada capital participante da pesquisa, foram incluídos na amostra os estabelecimentos que atendiam aos seguintes critérios: a) serviços considerados referência para o atendimento de emergência para causas externas a partir de consulta ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e ao Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS); b) serviços participantes da pesquisa em uma ou mais edições nos anos anteriores: 2006, 2007, 2009, 2011. A inclusão dos serviços selecionados foi ratificada pelos coordenadores da Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis (DANT) das secretarias de saúde dos estados e municípios participantes da pesquisa, por conhecerem os fluxos locais para atendimento às urgências devido a causas externas. Mais informações podem ser obtidas em publicações específicas6,7.
O tamanho da amostra foi de, no mínimo, 2.000 atendimentos por causas externas em cada uma das capitais e no Distrito Federal, assumindo coeficiente de variação inferior a 30% e erro padrão menor que 3. Em cada capital, a coleta de dados ocorreu somente nos turnos sorteados, de um total de 60 de 12 horas, abrangendo um período de 30 dias consecutivos, entre os meses de setembro a novembro de 2014. O procedimento de sorteio dos turnos de 12 horas foi a amostragem probabilística por conglomerado em único estágio estratificado pelo tipo de estabelecimento (emergência geral, unidades de pronto-atendimento, emergências especializadas), sendo o turno a unidade primária de amostragem. Todos os atendimentos por causas externas realizados no turno sorteado em cada estabelecimento selecionado foram considerados elegíveis para a entrevista. Foram excluídos os casos em que o paciente voltou a procurar o mesmo serviço pela mesma causa, bem como os retornos médicos e as complicações da assistência.
Os dados foram coletados por meio de formulário padronizado aplicado por entrevistadores treinados. Os atendimentos foram classificados em dois grupos: violências e acidentes. Para identificar o tipo de ocorrência que motivou a procura por atendimento, adotaram-se as definições constantes da 10ª revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID-10), referentes ao capítulo XX-Causas externas de morbidade e mortalidade.
De acordo com as definições constantes da CID-10, motociclista é todo aquele que viaja sobre uma motocicleta, side-car ou em um reboque fixado a este veículo, incluindo condutores ou passageiros. A análise restringiu-se aos motociclistas atendidos em serviços públicos de urgência e emergência em decorrência de acidente de transporte.
Foram consideradas as seguintes categorias de análise: 1) características sociodemográficas (sexo, faixa etária em anos, raça/cor da pele autodeclarada, escolaridade em anos de estudo, atividade remunerada, plano de saúde, presença de deficiência – física, mental, visual, auditiva e outras deficiências/síndromes); 2) característica do evento (tipo de vítima, outra parte envolvida, natureza da lesão, parte do corpo atingida, uso de capacete, consumo de bebida alcoólica, evento relacionado ao trabalho); e 3) características do atendimento (locomoção para o hospital, atendimento prévio, evolução).
As análises foram realizadas no módulo “svy” do programa Stata, versão 14, para a obtenção de estimativas não viciadas quando os dados são provenientes de planos de amostragem complexos. As diferenças entre as variáveis qualitativas foram analisadas pelo teste do qui-quadrado (Rao-Scott) com nível de significância de 5%.
O projeto do VIVA Inquérito 2014 foi avaliado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde. A coleta de dados foi realizada após a concordância verbal das vítimas ou de seus responsáveis ou acompanhantes, quando menores de 18 anos ou quando se tratava de vítima inconsciente.
O VIVA Inquérito 2014 registrou um total de 15.433 atendimentos de emergência por ATT, dos quais 9.673 (percentual bruto = 62,7%) foram devidos a acidentes envolvendo motociclistas. Esses atendimentos atingiram maior frequência às segundas e terças-feiras, porém a maior ocorrência dos eventos foi observada no final de semana (sexta-feira, sábado e domingo) (Figura 1-A).
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes-VIVA, Inquérito 2014. * Exceto Cuiabá-MT e Florianópolis-SC.
Figura 1 Distribuição dos atendimentos de urgência e emergência devido aos acidentes de transporte envolvendo motociclistas segundo dia (A) e hora (B) de ocorrência e de atendimento – Serviços selecionados em 24 capitais* e Distrito Federal, Brasil, setembro a novembro, 2014.
Quanto ao horário dos eventos, os acidentes apresentaram maior frequência no início da manhã e no final da tarde, com picos por volta das 7h (6,3%) e das 18h (7,3%), respectivamente. Os horários com maior frequência de atendimentos corresponderam às 8h (6,5%) e às 20h (7,1%) (Figura 1-B).
Na Tabela 1 encontra-se a distribuição das frequências e dos percentuais ponderados das principais características desses atendimentos desagregadas por sexo da vítima, evidenciando a razão de 3,2 atendimentos do sexo masculino para cada do feminino. Em relação aos aspectos sociodemográficos, a maior proporção de atendimentos foi observada entre pacientes de 20 a 39 anos (65,7%), com diferença estatisticamente significante entre os sexos (p < 0,001). Predominaram pacientes autodeclarados pretos/pardos (73,6%), sobretudo entre os homens (74,7%), pessoas com escolaridade igual ou superior a nove anos de estudo (59,2%), sendo a maior proporção observada entre as mulheres (66,7%), e referência ao exercício de atividade remunerada em 76,4% dos pacientes, com proporção maior entre os homens (80,9%). A presença de algum tipo de deficiência foi maior entre os homens (1,9%). Essas variáveis apresentaram diferenças estatisticamente significantes na sua distribuição entre os sexos (p < 0,001). Menos de 10% das vítimas possuíam plano de saúde e 1% delas identificou-se como população em situação vulnerável, sem diferença significante entre os sexos.
Tabela 1 Atendimentos de urgência e emergência devidos a acidentes de transporte envolvendo motociclistas segundo características sociodemográficas por sexo – Serviços selecionados em 24 capitais* e Distrito Federal, Brasil, setembro a novembro, 2014.
Sexo** | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Características sociodemográficas | Masculino (n = 7.355) |
Feminino (n = 2.318) |
Total (n = 9.673) | |||||
n | %# | n | %# | n | %# | p## | ||
Faixa etária (anos) | < 0,001 | |||||||
0 a 9 | 61 | 0,7 | 53 | 2,2 | 114 | 1,0 | ||
10 a 19 | 1.034 | 13,7 | 438 | 18,8 | 1.472 | 14,9 | ||
20 a 39 | 4.763 | 66,1 | 1.477 | 64,2 | 6.240 | 65,7 | ||
40 a 59 | 1.352 | 17,6 | 323 | 13,8 | 1.675 | 16,8 | ||
60 e mais | 145 | 1,9 | 27 | 1,0 | 172 | 1,7 | ||
Raça/cor da pele | < 0,001 | |||||||
Branca | 1.401 | 23,3 | 536 | 27,1 | 1.937 | 24,1 | ||
Preta/Parda | 5.760 | 74,7 | 1.697 | 69,6 | 7.457 | 73,6 | ||
Amarelo/Indígena | 177 | 2,1 | 77 | 3,3 | 254 | 2,3 | ||
Escolaridade (anos de estudo) | < 0,001 | |||||||
0 a 8 | 3.026 | 43,0 | 731 | 33,3 | 3.757 | 40,8 | ||
9 e + | 3.774 | 57,0 | 1.444 | 66,7 | 5.218 | 59,2 | ||
Realiza atividade remunerada | < 0,001 | |||||||
Não | 1.480 | 19,1 | 959 | 39,8 | 2.439 | 23,7 | ||
Sim | 5.578 | 80,9 | 1.269 | 60,2 | 6.847 | 76,4 | ||
Possui plano de saúde | 0,210 | |||||||
Não | 6.575 | 91,3 | 2.076 | 90,1 | 8.651 | 91,0 | ||
Sim | 516 | 8,7 | 176 | 9,9 | 692 | 9,0 | ||
Possui algum tipo de deficiênciaa | 0,002 | |||||||
Não | 7.073 | 98,1 | 2.260 | 99,2 | 9.333 | 98,4 | ||
Sim | 142 | 1,9 | 25 | 0,9 | 167 | 1,7 | ||
População em situação vulnerávelb | 0,358 | |||||||
Não | 7.140 | 99,0 | 2.260 | 99,3 | 9.400 | 99,0 | ||
Sim | 71 | 1,0 | 21 | 0,7 | 92 | 1,0 |
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes-VIVA, Inquérito 2014.
*Exceto Cuiabá-MT e Florianópolis-SC.
**Para algumas variáveis o número de atendimentos divergiu devido a dados faltantes (ignorado/em branco).
#Percentual ponderado para desenho amostral.
##Teste de associação pelo qui-quadrado (Rao-Scott).
a)Inclui deficiência física, mental, visual, auditiva, outras deficiências/síndromes.
b)Inclui cigano, quilombola, aldeado, pessoa em situação de rua, outros.
Em relação às características do evento, 80,9% eram condutores e 19,1% passageiros. A proporção de condutores foi significantemente maior no sexo masculino (90,4%), enquanto as mulheres encontravam-se mais frequentemente na condição de passageiras (52,7%). Quanto à outra parte envolvida no acidente, o automóvel apareceu em primeiro lugar (44%), seguido de motocicleta (13,8%), sem diferença entre os sexos. As lesões envolvendo corte, laceração, fraturas, amputação e traumas foram mais frequentes no sexo masculino enquanto as lesões leves predominaram no feminino (p < 0,001). A maioria das lesões atingiu membros inferiores, porém esse local foi significantemente o mais frequentemente afetado entre as vítimas do sexo feminino, enquanto a proporção de lesões em membros superiores foi significantemente maior no sexo masculino (Tabela 2).
Tabela 2 Atendimentos de urgência e emergência devidos a acidentes de transporte envolvendo motociclistas segundo características do evento e do atendimento, por sexo – Serviços selecionados em 24 capitais* e Distrito Federal, Brasil, setembro a novembro, 2014.
Sexo** | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Características | Masculino (n = 7.355) |
Feminino (n = 2.318) |
Total (n = 9.673) | ||||||
n | %# | n | %# | n | %# | p## | |||
Do evento | < 0,001 | ||||||||
Tipo de vítima | |||||||||
Condutor | 6.657 | 90,4 | 1.161 | 47,3 | 7.818 | 80,9 | |||
Passageiro | 713 | 9,6 | 1.159 | 52,7 | 1.872 | 19,1 | |||
Outra parte envolvida | 0,317 | ||||||||
Automóvel | 2.984 | 44,0 | 916 | 43,8 | 3.900 | 44,0 | |||
Motocicleta | 1.003 | 13,5 | 347 | 14,6 | 1.350 | 13,8 | |||
Ônibus/Micro-ônibus | 166 | 2,5 | 52 | 2,4 | 218 | 2,5 | |||
Bicicleta | 93 | 1,1 | 32 | 1,4 | 125 | 1,2 | |||
Objeto fixo | 469 | 6,8 | 127 | 5,8 | 596 | 6,6 | |||
Animal | 375 | 4,8 | 100 | 3,7 | 475 | 4,6 | |||
Outros | 1.858 | 27,3 | 613 | 28,3 | 2.471 | 27,5 | |||
Natureza da lesão | < 0,001 | ||||||||
Sem lesão | 184 | 2,3 | 98 | 4,1 | 282 | 2,7 | |||
Contusão/entorse/luxação | 1.990 | 30,8 | 789 | 38,4 | 2.779 | 32,5 | |||
Corte/laceração | 2.544 | 31,0 | 746 | 27,4 | 3.290 | 30,2 | |||
Fratura/amputação/traumasa | 2.397 | 33,4 | 591 | 27,2 | 2.988 | 32,0 | |||
Outrosb | 153 | 2,5 | 68 | 3,0 | 221 | 2,6 | |||
Parte do corpo atingida | 0,004 | ||||||||
Cabeça/pescoço | 717 | 9,8 | 171 | 8,7 | 888 | 9,5 | |||
Tórax/abdome/pélvis | 451 | 6,5 | 121 | 5,9 | 572 | 6,4 | |||
Membros superiores | 1.535 | 21,1 | 407 | 17,7 | 1.942 | 20,4 | |||
Membros inferiores | 2.554 | 37,5 | 944 | 42,7 | 3.498 | 38,7 | |||
Múltiplos órgãos/regiões | 1.928 | 25,1 | 576 | 25,0 | 2.504 | 25,1 | |||
Uso de capacete | 0,442 | ||||||||
Não | 1.414 | 20,7 | 439 | 21,7 | 1.853 | 20,9 | |||
Sim | 5.694 | 79,3 | 1.791 | 78,3 | 7.485 | 79,1 | |||
Consumo de bebida alcoólica | < 0,001 | ||||||||
Não | 5.920 | 85,2 | 2.048 | 91,8 | 7.968 | 86,7 | |||
Sim | 1.197 | 14,8 | 201 | 8,2 | 1.398 | 13,3 | |||
Evento relacionado ao trabalho | < 0,001 | ||||||||
Não | 3.849 | 56,4 | 1.296 | 67,1 | 5.145 | 58,6 | |||
Sim | 2.409 | 43,7 | 512 | 32,9 | 2.921 | 41,4 | |||
Do atendimento | |||||||||
Locomoção para o hospital | 0,519 | ||||||||
A pé/ônibus/micro-ônibus | 296 | 6,1 | 74 | 5,2 | 370 | 5,9 | |||
Veículo particular | 3.123 | 43,3 | 1.030 | 44,6 | 4.153 | 43,6 | |||
SAMU/ambulância/resgate | 3.636 | 46,7 | 1.128 | 46,8 | 4.764 | 46,7 | |||
Outrosc | 257 | 3,9 | 68 | 3,3 | 325 | 3,8 | |||
Atendimento prévio em outro serviço | 0,225 | ||||||||
Não | 5.410 | 72,8 | 1.788 | 74,4 | 7.198 | 73,2 | |||
Sim | 1.851 | 27,2 | 508 | 25,6 | 2.359 | 26,9 | |||
Evolução | < 0,001 | ||||||||
Alta | 4.871 | 67,7 | 1.679 | 73,5 | 6.550 | 69,0 | |||
Internação hospitalard | 1.726 | 24,9 | 435 | 19,9 | 2.161 | 23,8 | |||
Encaminhamento ambulatorial | 497 | 6,0 | 142 | 5,6 | 639 | 5,9 | |||
Outrose | 80 | 1,4 | 17 | 1,1 | 97 | 1,3 |
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes-VIVA, Inquérito 2014.
*Exceto Cuiabá-MT e Florianópolis-SC.
**Para algumas variáveis o número de atendimentos divergiu devido a dados faltantes (ignorado/em branco).
#Percentual ponderado para desenho amostral.
##Teste de associação pelo qui-quadrado (Rao-Scott).
a)Inclui trauma cranioencefálico, trauma dentário e politraumatismo.
b)Inclui intoxicação, queimadura e outros.
c)Inclui viatura policial e outros.
d)Inclui internação hospitalar e encaminhamento para outro serviço.
e)Inclui evasão/fuga, óbito e outros.
O uso de capacete no momento do acidente foi relatado por 79,1% dos pacientes, com distribuição semelhante entre os sexos (Tabela 2). As proporções mais baixas de referência ao uso de capacete foram observadas em pacientes atendidos nos serviços selecionados em Teresina (55,8%), Belém (61,5%), Rio e Janeiro (64,0%), Natal (64,8), Manaus (65,7%), João Pessoa (66,8%), Fortaleza (67,8%), Aracaju (67,8%), Maceió (71,0%) e Recife (71,8%). A maior proporção de referência ao uso de capacete foi observada entre os pacientes atendidos nos serviços selecionados em Belo Horizonte (97,2%) (Figura 2).
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes-VIVA, Inquérito 2014. * Exceto Cuiabá-MT e Florianópolis-SC.
Figura 2 Uso autodeclarado de capacete entre atendimentos de urgência e emergência devido aos acidentes de transporte envolvendo motociclistas – Serviços selecionados em 24 capitais* e Distrito Federal, Brasil, setembro a novembro, 2014.
A referência ao uso de bebida alcoólica nas seis horas anteriores ao evento foi significantemente maior entre os homens (14,8%) em relação às mulheres (8,2%), totalizando 13,3% para o conjunto dos serviços de emergência incluídos no estudo (Tabela 2). Entre os pacientes atendidos nos serviços selecionados em Teresina observou-se a maior proporção de declaração de consumo de bebida alcoólica no momento do acidente (Figura 3).
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes-VIVA, Inquérito 2014. * Exceto Cuiabá-MT e Florianópolis-SC.
Figura 3 Consumo autodeclarado de bebida alcoólica entre atendimentos de urgência e emergência devido aos acidentes de transporte envolvendo motociclistas – Serviços selecionados em 24 capitais* e Distrito Federal, Brasil, setembro a novembro, 2014.
A relação do evento com o trabalho da vítima foi informada por 41,4% das vítimas, em proporção significantemente maior entre os homens (43,7%) (Tabela 1). A proporção de eventos relacionados ao trabalho foi superior a 50% nos serviços selecionados nas capitais Goiânia (50,6%), Belo Horizonte (51,0%), Recife (51,2%), São Paulo (54,7%), Porto Alegre (55,6%), Curitiba (59,7%), Distrito Federal (61,0%) e Vitória (61,5%) (Figura 4).
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes-VIVA, Inquérito 2014. * Exceto Cuiabá-MT e Florianópolis-SC.
Figura 4 Proporção de eventos relacionados ao trabalho entre atendimentos de urgência e emergência devido aos acidentes de transporte envolvendo motociclistas – Serviços selecionados em 24 capitais* e Distrito Federal, Brasil, setembro a novembro, 2014.
Em relação às características do atendimento, observa-se que o acesso aos serviços de saúde ocorreu, em maior frequência, por meio da utilização do SAMU/ambulância/resgate (46,7%) e de veículo particular (43,6%). O transporte coletivo foi utilizado em menos de 6% dos atendimentos. Aproximadamente um quarto dos pacientes relatou atendimento prévio em outro serviço pela mesma causa, sem diferença entre os sexos. A evolução dos pacientes após o atendimento inicial variou segundo sexo: a proporção de altas foi maior no sexo feminino (73,5%), enquanto a proporção de internação hospitalar foi maior no masculino (24,9%) (Tabela 2).
O estudo mostrou que os jovens de 20 a 39 anos e do sexo masculino foram as principais vítimas dos ATT envolvendo motociclistas, entre atendimentos de urgência e emergência do SUS selecionados em capitais estaduais e no Distrito Federal, em 2014. Esses resultados são compatíveis com outras pesquisas sobre o tema6,7, evidenciando que se trata de um sério problema de saúde pública, o qual não pode deixar de ser o foco de políticas públicas de prevenção mais efetivas.
Um dos motivos que concorrem para o aumento dos casos de acidentes com motocicletas refere-se à falta de uso de equipamentos de proteção. As lesões cranioencefálicas estão diretamente relacionadas ao não uso do capacete, apesar de obrigatório no país, o que demanda maior incremento de fiscalização e campanhas educativas. Estudo sobre segurança no trânsito, da Organização Mundial da Saúde (OMS), mostrou que usar capacete corretamente reduz em até 40% o risco de morte e em até 70% as chances de sofrer ferimentos graves na cabeça8. O capacete é um item de segurança obrigatório para os motociclistas, conforme o Código Brasileiro de Trânsito (CTB), e é fundamental para evitar consequências mais graves quando da ocorrência de acidentes9.
As motocicletas são consideradas uma das formas mais perigosas de transporte motorizado devido ao pequeno tamanho e à exposição direta ao impacto, o que torna seus ocupantes mais vulneráveis a traumas múltiplos e de maior gravidade10. De fato, a motocicleta não possui a estrutura e os dispositivos de proteção que os carros possuem, o que possibilita uma maior exposição dos seus ocupantes11, e os acidentes resultam em um risco de morte 30 vezes maior, quando comparados a ocupantes de outros tipos de veículos motorizados12,13.
A causalidade dos acidentes envolvendo os motociclistas é multifatorial14 e apresenta relação com determinantes socioeconômicos e ambientais, como escolaridade, renda, acesso aos meios de transporte, estado das vias e rodovias, fiscalização sistemática, manutenção dos veículos, aumento da frota, além da correlação com alguns fatores de risco, como o não uso de equipamentos de proteção individual, como os capacetes8, a associação de condução com bebida alcoolica, o excesso de velocidade, a vulnerabilidade do próprio veículo, dentre outros15,16.
Na análise, percebeu-se que foi bastante frequente a identificação do acidente envolvendo motociclista como um evento relacionado ao trabalho. Eventos relacionados ao trabalho envolvem o deslocamento ao emprego, em função do uso da motocicleta como meio de deslocamento rápido no trânsito nas grandes cidades4,17. A Pesquisa Nacional de Saúde identificou que 30% dos acidentes de trabalho foram devidos ao deslocamento para o serviço17. Podem ser incluídas outras situações, como motociclistas profissionais, que podem estar sujeitos a exigências como pressão dos clientes por serviços rápidos, pontuais e de confiabilidade; elevada demanda tarefas; precárias relações de trabalho; ocorrências de grandes circunstâncias não controláveis, como chuvas e condições das vias; inexperiência do condutor; manutenção do veículo e mecanismos de remuneração por deslocamento cada vez mais rápidos4,18. Essas questões demandam por mudanças para além de comportamentais, abrangendo também questões relacionadas às condições de segurança no trabalho e a compreensão e o combate aos fatores que influenciam o comportamento arriscado dos condutores. Destaca-se que estas ocorrências foram mais relatadas em cidade como Vitória, Brasília, Curitiba e Porto Alegre. Sugere-se o aprofundamento de estudos locais para compreender estas diferenças.
A direção sob influência de álcool também foi elevada no estudo. A condução veicular após ingestão de álcool é considerada uma das principais causas de ATT, pois afeta a capacidade de reflexos do condutor e aumenta as escolhas de risco, como transgressão à legislação de trânsito. Concentrações elevadas de álcool no sangue produzem diversas alterações neuromotoras, como diminuição da atenção, falsa percepção da velocidade, euforia e dificuldade em discernir luminosidades, até a sonolência e a redução da visão periférica15. No Brasil, segundo resultados da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada em 2014, a frequência de adultos que referiam conduzir veículos motorizados após consumo de bebida alcoólica variou de 3 a 14 % nas capitais brasileiras19.
Outro ponto de destaque é a forte expansão da frota veículos, principalmente as motocicletas, refletindo na deterioração das condições de trânsito e no aumento do tráfego14. A participação da motocicleta na frota de veículos total no país passou de 18,2%, em 2004, para 26,6%, no ano de 2014. Nesse período, a frota de motocicletas no Brasil passou de 7 milhões para 23 milhões, ou seja, um aumento de 223,3% , chegando a 345% na região Nordeste e 323,8% na Norte20.
Fatores como aumento na frota e menor fiscalização no Norte e no Nordeste podem explicar taxas mais elevadas de mortalidade nestas regiões20. O estudo atual confirma esses achados, ao apontar menores frequências de uso de capacetes nas capitais do Nordeste e Norte, e maior frequência no uso do álcool, acima de 20% em capitais como Teresina, Natal, Aracaju, Maceió e Salvador. Esses dados são coincidentes com o encontrado na Pesquisa Nacional de Saúde, apontando menor frequência de uso de capacetes e maior prevalência de acidentes de trânsito nessas localidades17.
De 2004 a 2013, o risco de morte de motociclistas passou de 2,8 para 6,0 óbitos por 100 mil habitantes21. As elevadas taxas de morbimortalidade por ATT no Brasil têm sido associadas com o modelo de sistema de transporte vigente, o qual prioriza as estradas e uso do carro particular, em detrimento dos transportes públicos coletivos, sem oferecer infraestrutura adequada, além da deficiência de fiscalização e da precariedade dos transportes públicos. Acrescente-se o aumento da frota de veículos nos centros urbanos, a escassez de ações reguladoras e educacionais, a alta velocidade e a diversidade dos tipos de veículos22.
Pesquisa analisando o perfil das ocorrências de politraumas em motociclistas atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU)23 atribuiu a maior frequência de acidentes durante os finais de semana, ao grande número de eventos festivos, à ingestão de bebida alcoólica, à ultrapassagem do limite de velocidade, a manobras arriscadas e à diminuição da fiscalização nesses dias.
Outro estudo24 revelou que há três vezes mais chances dos motociclistas se envolverem em acidentes entre quinta-feira e domingo, quando há aumento do consumo de álcool, do que entre segunda e quarta-feira, quando este diminui. Na pesquisa, mais de 40% dos atendimentos aconteceram no período noturno. Tal fato pode ser explicado por um conjunto de fatores, quais sejam: cansaço do fim do dia, elevação do fluxo de veículos, variação da visibilidade limitada pelo alcance dos faróis, veículos não sinalizados, menor fiscalização da polícia, desrespeito à sinalização, excesso de velocidade e uso de álcool ou drogas25–27.
Dentre os limites do estudo, cita-se a inclusão apenas dos serviços públicos de urgência e emergência, não sendo incluídas as unidades de hospitais privados. Optou-se por utilizar serviços públicos por serem as referências para acidentes e violências nas capitais brasileiras, os quais seguem fluxos já consolidados no atendimento às urgências, desde a atenção pré-hospitalar até os serviços de internação. Outra limitação refere-se à impossibilidade de apresentar estimativas populacionais, embora os serviços públicos concentrem a maioria dos atendimentos de emergência por causas externas.
O conhecimento do perfil dos atendimentos demandados por acidentes com motociclistas nos serviços de urgência e emergência e de algumas características destes eventos são fundamentais para traçar estratégias de enfretamento deste problema de saúde pública. Faz-se necessário conhecer a magnitude e as características do problema para promover saúde e prevenir as lesões e as mortes no trânsito por meio de ações intersetoriais. Este estudo contribui para revelar as características do problema e subsidiar a implantação de políticas públicas voltadas para a prevenção e a promoção da saúde e da paz no trânsito e para a atenção às suas vítimas. É fundamental o fortalecimento da legislação do trânsito e o desenvolvimento de ações voltadas para a segurança viária em prol da mobilidade humana.