Compartilhar

Características de mulheres vítimas de violência sexual e abandono de seguimento de tratamento ambulatorial

Características de mulheres vítimas de violência sexual e abandono de seguimento de tratamento ambulatorial

Autores:

Tânia Cássia Cintra de Sousa,
Amanda Santos Fernandes Coelho,
Diego Vieira de Mattos,
Janaina Guimarães Valadares,
Maíra Ribeiro Gomes de Lima,
Priscila Sousa Costa,
Maria Augusta Alves Sousa

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.27 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2019 Epub 13-Jun-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900020059

Abstract

Background

Sexual violence affects several segments of society and requires urgent action. Women are the main victims of this injury, that can generate countless implications. Thus, the role of health services is essential for coping with this problem and ensuring greater adherense to outpatient treatment.

Objective

The aim of this study was to analyze the characteristics of women victims of sexual violence and abandonment of ambulatorial treatment follow-up.

Method

This is a descriptive, retrospective analytical, quantitative study of 161 women's medical records attended at a referral service for sexual violence in Goiânia-GO, in 2015.

Results

Most women were adults (65.8%), residents in Goiânia (55.3%), employed (50.3%), high school graduates (30.4%), single (55,3%), browns (44.1%), heterosexuals (74.5%), without disabilities (85.1%). There was an association between the abandonment of ambulatorial follow-up and receipt of prophylaxis STD (p<0.001), immunoglobulin for hepatitis B (p=0.002), emergency contraception (p=0.010), initiate the antiretroviral regimen (p=0.003) and abandonment of follow-up after the first visit (p <0.001). There was significant between pregnant women victims and the completion of treatment (p <0.001).

Conclusion

It is concluded that when knowing the factors related to non-adherence for ambulatorial follow-up, new strategies should be developed by specialized services.

Keywords:  violence against women; sexual violence; ambulatorial care; loss of follow-up

INTRODUÇÃO

A violência sexual afeta vários segmentos da sociedade e, sendo considerada um problema de saúde pública, requer ações resolutivas1. Mesmo atingindo homens e mulheres em todo o mundo, as mulheres são as principais vítimas desta injúria, em qualquer ciclo de sua vida2. Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 47.646 casos de estupro no Brasil em 2014. Isso significa um estupro a cada 11 minutos. Porém, considera- se que em média apenas 35% dos crimes sexuais são notificados3.

De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), considerando todas as faixas etárias, o tipo de violência contra a mulher mais notificado é a violência física (64,8%), seguida da violência psicológica (25,7%), negligência (11,6%) e violência sexual (11,3%)4.

No ano de 2015, em Goiás, na população adulta (20 a 59 anos), foram notificados 1332 casos de violência física sofrida por pessoas do sexo feminino e 778 nas do sexo masculino. A violência psicológica aparece em segundo lugar, com 439 notificações (mulheres) e 92 (homens). O terceiro tipo mais frequente é a violência sexual, responsável por 217 ocorrências em mulheres e 10 em homens5.

Dentre os tipos de violência contra as mulheres, a sexual, embora não seja o tipo mais frequente, em geral, é vista como aquela que pode causar consequências mais impactantes que as demais2.

As consequências deste grave problema de saúde pública na vida das pessoas são várias. Mulheres que sofrem violência sexual estão mais propensas ao desenvolvimento de sintomas psiquiátricos e distúrbios psicossomáticos; além de estarem expostas a contrair doenças sexualmente transmissíveis e terem gravidez indesejada6.

Há ainda implicações familiares, sociais e aumento da demanda nos serviços de saúde, por vítimas deste agravo7. Outros problemas podem ser desenvolvidos na vida sexual, afetiva, social e profissional, tornando estas mulheres mais vulneráveis, menos confiantes e seguras, levando-as a desenvolver sentimentos negativos, como culpa e tristeza, e favorecendo a depressão8.

No caso de gravidez decorrente da violência sexual, a situação torna-se ainda mais grave em virtude das consequências para a saúde tanto da mãe quanto do recém-nascido, tais como abortos, parto e nascimento prematuro, baixo peso ao nascer, interrupção da amamentação e até morte materna e/ou fetal9.

O papel dos serviços de saúde é essencial para o enfrentamento da violência sexual. Os profissionais envolvidos no atendimento às vítimas devem ser preparados para lidar com as possíveis consequências, como lesão física, infecções sexualmente transmissíveis (IST), gravidez e problemas psicológicos2.

O abandono do seguimento ambulatorial é um problema enfrentado pelos serviços especializados neste tipo de atendimento. A literatura verifica uma taxa de abandono do seguimento ambulatorial de 24,5%, e aponta a necessidade de estratégias de atendimento que motivem a vítima de violência sexual a finalizar o tratamento10.

Para um maior sucesso no tratamento ambulatorial, é necessário que os serviços que atendem este público acolham as vítimas de forma ágil, respeitosa e em ambiente harmonioso, com vista na importância de iniciar o tratamento recomendado o mais rápido possível e atuar diante das preocupações imediatas das vítimas11.

A partir desse contexto, o presente estudo tem como objetivo descrever as características de mulheres vítimas de violência sexual e abandono de seguimento de tratamento ambulatorial.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, analítico, retrospectivo com abordagem quantitativa. Utilizaram-se, para tanto, dados secundários coletados dos prontuários e fichas de notificação de mulheres atendidas em um ambulatório de referência no atendimento às vítimas de violência sexual em Goiânia-GO, de janeiro a dezembro de 2015.

O Ambulatório de Apoio a Vítimas de Violência Sexual (AAVVS) atende de forma integral vítimas de violência sexual de todas as faixas etárias, sexo e gênero. O serviço é composto por uma equipe multidisciplinar. As vítimas são atendidas na instituição por demanda espontânea ou por encaminhamento por delegacias, rede básica de saúde, Conselho Tutelar e Ministério Público.

No que concerne ao atendimento à vítima, o ambulatório pesquisado oferece os serviços de anticoncepção de emergência, profilaxia contra IST, imunoprofilaxia contra hepatite B, quimioprofilaxia antirretroviral, acompanhamento laboratorial, interrupção legal da gestação, acompanhamento psicológico, médico e de assistência social12.

Foram levantados 165 prontuários, porém houve 4 perdas devido a erro de arquivamento, pois 4 prontuários não estavam disponíveis para pesquisa, após três tentativas de acesso no Serviço de Arquivamento Médico e Estatística (SAME). Assim, a população de estudo foi constituída por 161 prontuários e fichas de notificação.

Foram considerados como critério de inclusão todos os prontuários e fichas de notificação de pessoas do sexo feminino, que foram vítimas de violência sexual e atendidas no ambulatório de janeiro a dezembro de 2015, com idade igual ou maior que 18 anos. Excluíram- se os prontuários com erros de registro e arquivamento.

A fonte de informação para este estudo foi composta pelo prontuário médico e ficha de notificação de cada paciente, dos quais foram coletados dados sociodemográficos (data de nascimento, idade, município de residência, ocupação, escolaridade, situação conjugal, raça/cor, orientação sexual, deficiência ou transtorno), sobre o atendimento/tratamento realizado (profilaxia IST / HIV e Hepatite B, coleta de sangue, coleta de sêmen e/ou secreção vaginal, contracepção de emergência, aborto previsto em lei) e desfecho do caso (adesão ao tratamento até alta pela equipe ou abandono). As informações foram coletadas no período de março a junho de 2016 e transcritas em formulário elaborado para a pesquisa.

Os dados quantitativos encontrados foram organizados e tabulados no programa Microsoft Office Excel 2015, por meio de estatística descritiva com uso de frequências, médias, percentual e desvio padrão e estatística inferencial utilizando Testes de Quiquadrado e Exato de Fisher, para verificar a associação entre as variáveis do atendimento após a violência sexual com o abandono de seguimento ambulatorial, sendo consideradas estatisticamente significantes as diferenças em que p foi menor que 5% (p<0,05).

Nesta pesquisa, foram classificados como abandono todos os prontuários em que não constava alta pela equipe.

O estudo foi submetido e aprovado via Plataforma Brasil e no Comitê de Ética do Hospital Materno Infantil, com parecer 1.445.406 e CAAE: 50903515.6.0000.5080.

Todas as etapas da pesquisa respeitaram as recomendações propostas pelo Conselho Nacional de Saúde, através da Resolução 466/2012, que apresenta as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.

RESULTADOS

Em relação à idade das mulheres, a média foi de 28,3±10,9 anos. A maioria das mulheres não tinha deficiência (85,1%).

A Tabela 1 mostra as características sociodemográficas de mulheres vítimas de violência sexual, evidenciando que mais da metade destas tinha idade entre 18 e 29 anos (65,8%), eram procedentes de Goiânia (55,3%), exerciam alguma atividade remunerada (50,3%), tinham ensino médio completo (12,4%), eram solteiras (55,3%) e pardas (44,1%).

Tabela 1 Variáveis sociodemográficas de mulheres vítimas de violência sexual no ano de 2015. Goiânia-GO-Brasil, 2016 

Dados Sociodemográficos n (%)
Idade
18 a 29 106 65,8%
30 a 41 39 24,2%
42 e + 16 10%
Procedência
Goiânia 89 55,3%
Aparecida de Goiânia 33 20,5%
Trindade 6 3,7%
Senador Canedo 5 3,2%
Outros municípios 26 16,1%
Outros Estados 2 1,2%
Ocupação
Empregada 81 50,3%
Não informado 32 19,9%
Do lar 25 15,5%
Estudante 15 9,3%
Desempregada 5 3,1%
Aposentada 3 1,9%
Escolaridade
Analfabeta 1 0,6%
5ª a 8ª série incompleta do Ensino Fundamental 13 8,1%
5ª a 8ª série completa do Ensino Fundamental 19 11,8%
Ensino médio incompleto 20 12,4%
Ensino médio completo 49 30,4%
Educação superior incompleta 14 8,7%
Educação superior completa 14 8,7%
Não informado 31 19,3%
Estado Civil
Solteira 89 55,3%
Casada 38 23,6%
Separada judicialmente 19 11,8%
Sem informação 8 5%
Viúva 7 4,3%
Raça
Parda 71 44,1%
Branca 60 37,3%
Sem informação 15 9,3%
Negra 13 8,1%
Indígena 1 0,6%
Amarela 1 0,6%

n = número de casos; % = porcentagem

Em relação ao atendimento ofertado pelo ambulatório, 85,1% das vítimas receberam profilaxia IST, 79,5% iniciaram esquema antirretroviral, 61,5% receberam profilaxia contra Hepatite B, 59,6% tomaram pílula para contracepção de emergência, 96,9% fizeram coleta de sangue na instituição, a coleta de sêmen/secreção vaginal não foi feita em 99,4% dos casos e em 1 (6%) não havia esta informação.

Analisando-se o seguimento ambulatorial das mulheres que compuseram a amostra do estudo, 100 (62,2%) abandonaram o tratamento, sendo que 40 (24,8%) das vítimas não retornaram ao ambulatório após a primeira consulta. Sessenta e uma (37,8%) mulheres concluíram o tratamento estabelecido pela equipe.

A Tabela 2 aborda o atendimento dispensado e o abandono de seguimento ambulatorial, demonstrando que houve relação do abandono com o fato de as vítimas receberem profilaxia DST (p<0,001) e Hepatite B (p=0,002), iniciarem profilaxia HIV (p<0,003) e receberem anticoncepção de emergência (P=0,010). O abandono de seguimento após a primeira consulta também foi significante (<0,001). Houve relação entre o fato de a mulher estar gestante e o seguimento ambulatorial até a alta (P <0,001).

Tabela 2 Associação entre o abandono de seguimento do tratamento com o atendimento dispensado no ano de 2015. Goiânia-GO-Brasil, 2016 

Variáveis sobre o atendimento dispensado Abandono de seguimento do tratamento
n = 100
% Tratamento n = 61 % Valor p
Profilaxia DST
Sim 95 95% 42 70% <0,001
Não 5 5% 18 30%
Profilaxia HIV
Sim 90 90% 38 63,3% 0,003
Não 10 10% 22 36,6%
Profilaxia Hepatite B
Sim 71 72,4% 28 46,6% 0,002
Não 27 27,5% 32 53,3%
Contracepção de emergência
Sim 68 67,3% 28 46,6% 0,010
Não 31 31,3% 32 53,3%
Gestante após a violência
Sim 2 2% 16 26,2% <0,001
Não 98 98% 45 73,7%
Abandono após a primeira consulta
Sim 38 38% 61 100% <0,001
Não 62 62% 0 0

n = número de casos; % = porcentagem. Teste de Quiquadrado ou exato de Fisher, com significância para p < 0,05

DISCUSSÃO

Este estudo permitiu conhecer as características de mulheres vítimas de violência sexual e os fatores relacionados ao abandono de seguimento de tratamento ambulatorial. Verificou-se uma casuística de 165 atendimentos ocorridos no ano de 2015.

Um estudo descritivo, com abordagem quantitativa realizado no período de 2009 a 2013, que buscou apresentar o quadro de violência sexual contra a mulher no Brasil, com base nas notificações realizadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), apontou um número de casos de 183 notificações, no ano de 2013, no Estado de Goiás13.

O serviço analisado no estudo apresenta um elevado número de atendimentos por ser porta aberta, amplamente divulgado pela mídia, e por realizar todos os procedimentos preconizados pelo Ministério da Saúde14 às vítimas de violência sexual.

Verifica-se neste estudo que a violência sexual atinge mulheres em diferentes fases do ciclo vital, desde jovens a idosas e os resultados demonstram que houve maior número de ocorrências na faixa etária de 18 a 29 anos (65,8%). Informações semelhantes foram encontradas em outras pesquisas, nas quais constataram-se médias de idade de 23,715 e entre 19 e 30 anos16.

A literatura evidencia de forma simplista que as jovens estão mais sujeitas a sofrer violência sexual, devido aos padrões culturais dos brasileiros, uma vez que a aparência é mais bela, em evidência, e atrai a atenção dos homens, o que leva à insegurança, atitudes dominadoras e violentas do sexo masculino17.

Outro estudo traz que a persistência de visões tradicionais dos estereótipos de gênero marca o discurso das jovens de ambas as classes sociais, especialmente forte entre as jovens de classe baixa, o que acaba por levá-las a uma aceitação mais “resignada” e naturalizada do exercício dos tipos de violência e do controle por parte de um parceiro18.

Em relação ao nível de escolaridade descrito nos dados, houve uma predominância de mulheres com ensino médio completo (30,4%). Um trabalho abordando este aspecto é consoante ao resultado encontrado, ao apontar que 18,29% das mulheres que vivenciaram violência sexual tinham ensino médio completo17. Porém, outros estudos apontam maior frequência de estupro em mulheres que tinham apenas ensino fundamental15,19.

As principais vítimas de violência sexual são mulheres com menor grau de instrução e nível socioeconômico baixo, possivelmente porque as mulheres menos esclarecidas e dependentes financeiramente do parceiro têm maior dificuldade para romper os ciclos de agressões. Sendo assim quanto maior a escolaridade maior o empoderamento pessoal da mulher, a autoestima e a independência promovendo redução da tolerância à violência16.

Analisando-se o estado civil das vítimas que compuseram este estudo, percebe-se predomínio de mulheres solteiras (55,3%), resultado esse corroborado por outros estudos15,17,20. Ressalta-se que, em muitas vezes, as mulheres casadas se submetem à violência, mas não procuram os serviços de atendimento por não encararem a violência como violação de seus direitos e devido à dependência de seus parceiros21.

Em relação à raça, verificou-se neste estudo maior frequência de mulheres que se declararam pardas (44,1%). Porém, a maior parte das pesquisas afirmam que indivíduos da cor branca são os mais acometidos em casos de violência sexual17,21,22. Ressalta-se que não se pode afirmar que as mulheres brancas são as mais atingidas, em virtude da subnotificação de outros grupos étnicos18.

Observamos que, no tocante à condição de trabalho, a maioria das mulheres (50,3%) era remunerada. Mulheres que desenvolvem algum tipo de atividade remunerada geralmente buscam mais os serviços de apoio, com o objetivo de encontrar estratégias para a superação da situação de violência, aliado a isto, demonstram um enfrentamento mais positivo e mais autonomia16.

Em relação à deficiência, somente 11 mulheres (6,8%) tinham algum grau de limitação. As mulheres vítimas de violência sexual, com algum grau de deficiência são mais vulneráveis, devido às suas limitações. As deficientes físicas são inábeis para a defesa pessoal, devido à limitação dos movimentos e as deficientes mentais podem ser mais facilmente violentadas devido à menor consciência sobre a realidade23.

Nesta pesquisa, houve uma maior frequência de vítimas procedentes da Capital, seguida pela região metropolitana, consonante a outro estudo realizado no Estado do Paraná, em que 52,4% das vítimas eram provenientes de Curitiba e 44,6% da região metropolitana24. Mulheres que vivem na capital e região metropolitana têm mais facilidade de acesso aos serviços de saúde, já as vítimas provenientes da zona rural ou interior do Estado contam com menor rede de serviços de apoio, e, devido a maior dificuldade de acesso, geralmente não procuram os serviços especializados localizados nas Capitais25.

Neste estudo, as mulheres atendidas no serviço receberam medicamentos para profilaxia IST em 85,1% dos atendimentos. Resultado diferente do encontrado em um estudo de corte transversal, na Região Sul, com uma taxa de 52%, verificando-se também que ser atendida em 72 horas e receber profilaxias não resultou em menor proporção de IST11.

A profilaxia para patologias virais inclui a prevenção ao HIV e Hepatite B. Na presente pesquisa, a maior parte das vítimas iniciou a quimioprofilaxia HIV (79,5%) e recebeu imunoglobulina contra Hepatite B (61,5%). A maior adesão à profilaxia HIV é justificada pelo temor da vítima em contrair o vírus11.

No atendimento à vítima de violência sexual, grande parte das mulheres realizou coleta de sangue na instituição (96,9%). A coleta de sangue imediata, realizada no momento de admissão da vítima de violência sexual é necessária para estabelecer a eventual presença de IST, HIV ou hepatite prévias à violência. Entretanto, tal coleta não deve retardar o início da profilaxia14.

Em relação à coleta de sêmen/secreção vaginal, 99,4% das mulheres não a realizaram na Unidade. O dado está dentro do esperado, visto que a coleta de vestígio não é procedimento padronizado pelo serviço, sendo de responsabilidade do Instituto Médico Legal. Dentre as recomendações atuais do Ministério da Saúde14 no atendimento à vítima de violência sexual, este não é um procedimento obrigatório aos serviços que atendem este público.

Analisando-se a contracepção de emergência no presente estudo, a maioria (59,6%) das mulheres recebeu a pílula contraceptiva. Um estudo verificou que mulheres serem atendidas em até 72 horas e receberem contracepção de emergência foi fator de proteção significativo para gravidez (p=0,001)11.

Em relação ao seguimento ambulatorial no serviço analisado, o tempo estabelecido para o tratamento completo é de 180 dias, vista a importância do acompanhamento ambulatorial de mulheres que apresentam risco elevado de contaminação pelo HIV, a exemplo das vítimas que vivenciaram violência sexual com penetração vaginal e/ou anal desprotegida com ejaculação14,26.

Na presente pequisa, as vítimas que realizaram a primeira consulta após a violência abandonaram o tratamento ambulatorial (<0,001). Estudo realizado em um serviço de referência no atendimento de vítimas de violência sexual no Estado do Paraná constatou que, de um total de 394 vítimas da violência sexual que compareceram ao primeiro atendimento, apenas 228 (57,8%) retornaram para outra consulta10. Porém outro estudo evidenciou que a maioria dos atendimentos à mulher foi também em nível ambulatorial (15.842/72,6%), e 77,2% (16.879) dos casos evoluíram para alta13.

No presente estudo, houve uma baixa adesão (37,8%) à conclusão do tratamento ambulatorial pelas vítimas, evidenciando um alto abandono no seguimento de tratamento em relação a outros serviços13,18. A reduzida continuidade do seguimento ambulatorial está relacionada às diversas causas como ausência de qualidade do serviço de saúde, falta de diálogo entre vítima e profissional de saúde e efeitos colaterais dos medicamentos que interferem na qualidade de vida da mulher em tratamento14.

Houve uma relação entre o início do esquema de antirretrovirais (p=<0,003) e contracepção de emergência (P=0,010) com o abandono de seguimento do tratamento ambulatorial. Uma pesquisa apontou que, de um total de vítimas de violência sexual atendidas em um Serviço de Referência no Estado do Paraná, que iniciaram a profilaxia antirretroviral e fizeram uso da contracepção de emergência, somente 19,5% concluíram o tratamento de 180 dias10.

Alguns fatores relacionados à vítima interferem na adesão ao protocolo de quimioprofilaxia do HIV, tais como lembranças da violência sofrida, a falta de entendimento da importância da realização do tratamento completo. Isto também se agrava pelo número de comprimidos diários, rigidez de horários e os efeitos colaterais. Outro fator associado é o fato de a vítima não entender a importância de um tratamento profilático, pois não há doença instalada27.

No presente estudo, a cobertura profilática para a hepatite B está relacionada com o abandono de seguimento de tratamento (P=0,002). A imunoglobulina hiperimune contra hepatite B fornece imunidade provisória por um período de 3 a 6 meses após a administração, é indicada quando não se sabe a situação vacinal ou falha de resposta imunológica à vacina. Quando é verificada a necessidade de esquema vacinal, é interessante acompanhamento para que sejam feitos testes para analisar o desenvolvimento de anticorpos anti-HBS suficientes contra o vírus da hepatite B28.Um estudo com o mesmo desenho metodológico da presente pesquisa não encontrou dados significantes ao realizar análise estatística sobre o atendimento de emergência e a perda de seguimento ambulatorial, mas trouxe significância em relação à baixa escolaridade (P=0,0268), presença de doenças crônicas (p<0,0001), antecedente de violência sexual (p<0,0001) e ser agredida por conhecidos (p=0,044)29.

Neste trabalho houve associação entre o fato de a mulher estar gestante decorrente de violência sexual e a conclusão do tratamento com alta, pela equipe do ambulatório (P <0,001). Um estudo que teve como objetivo avaliar a adesão à terapia antirretroviral em gestantes HIV positivas, em um ambulatório no Paraná, apontou que apenas 2 mulheres (5,4%) não realizaram o tratamento estabelecido durante a gestação, o que mostra boa adesão deste público30.

Observa-se uma particularidade em relação às gestantes decorrentes de violência sexual que buscam atendimento no serviço em análise. A grande maioria não procura o ambulatório logo após a violência sexual. A procura por ajuda médica é motivada, em geral, por sintomas sugestivos de gravidez como amenorreia, tonturas e enjoos. Por vezes as mulheres desconhecem programas de atendimento à mulher vítima de violência sexual, não sabem da importância das medidas profiláticas, bem como do direito legal à interrupção da gestação31.

Ainda que a temática da violência contra a mulher esteja assumindo maior visibilidade na literatura, ainda restam maiores investigações, principalmente relacionadas aos fatores de não adesão ao seguimento ambulatorial, em virtude da escassez de estudos sobre este aspecto e a importância de seu desvendamento, para proposição de estratégias a serem desenvolvidas pelos serviços especializados no atendimento às vítimas de violência sexual.

Por se tratar de uma pesquisa descritiva, realizada a partir de dados coletados de prontuários, houve limitações no desenvolvimento do trabalho e análise estatística das variáveis, pois alguns itens apresentaram dados sem informação, os quais não puderam ser resgatados, pois não houve contato com as vítimas.

Ressalta-se que, apesar das limitações do estudo, os dados foram valiosos para o conhecimento do perfil de mulheres vítimas de violência sexual no Estado de Goiás e os fatores relacionados ao abandono de seguimento ambulatorial. Mas sugere-se que sejam feitos outros estudos qualitativos com profissionais e serviços especializados para o levantamento de estratégias capazes de motivar a vítima de violência sexual a finalizar o tratamento proposto.

Porém, sabe-se que o amparo, encorajamento e acolhimento proporcionados pelos profissionais de saúde são fundamentais para a qualidade do atendimento, o que pode contribuir para uma maior adesão ao tratamento pelas vítimas deste agravo.

REFERÊNCIAS

1 Miranda RB, Araújo MAL, Lima BMC, Andrade RF, Lima N, Miranda AE. Violência sexual e doméstica em mulheres atendidas em uma clínica de DST/AIDS em Vitória, Brasil. DST J Bras Doenças Sex Transm. 2016;28(1):16-9.
2 Nunes MCA, Lima RFF, Morais NA. Violência sexual contra as mulheres: um estudo comparativo entre vítimas adolescentes e adultas. Psicologia. 2017;37(4):956-69. .
3 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 9º anuário brasileiro de segurança pública [Internet]. São Paulo; 2015. 156 p. [citado em 2016 Dez 7]. Disponível em:
4 Brasil. Ministério da Saúde. Nota: estupros em mulheres [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2016. 16 p. [citado em 2016 Dez 15]. Disponível em:
5 Goiás. Coordenação de Vigilância Epidemiológica de Violências e Acidentes. VIVA/GVE/SUVISA/SES-GO. Categorização da violência interpessoal/auto-provocada por ciclos de vida. Bol Epidemiol [Internet]. 2015;3(1):1-6 [citado em 2016 Out 7]. Disponível em:
6 Rosa JPF, Oliveira MM, Oliveira MM Fo, Fernandes CE, Oliveira E. Violência sexual na região do ABC Paulista: retrato de 142 casos. ABCS Health Sci. 2018;43(1):41-6. .
7 Cruz STM, Espíndula DHP, Trindade ZA. Violência de gênero e seus autores: representações dos profissionais de saúde. Psico-USF. 2017;22(3):555-67. .
8 Nunes MCA, Morais NA. Estupro e gravidez: relatos das vivências de mulheres antes e após o desfecho da estação. Estud Psicol. 2016;21(4):468-76.
9 Vale SLL, Medeiros CMR, Cavalcante CO, Junqueira CCS, Souza LC. Repercussões psicoemocionais da violência doméstica: perfil de mulheres na atenção básica. Rev Rene. 2013;14(4):683-93.
10 Trigueiro TH, Merighi MAB, Medeiros ARP, Ribeiro CEL, Mata NDS, Jesus MCP. Vitimas de violência sexual atendidas em um serviço de referência. Cogitare Enferm. 2015;20(2):249-56. .
11 Delziovo CR, Coelho EBS, d’Orsi E, Lindner SR. Violência sexual contra a mulher e o atendimento no setor saúde em Santa Catarina - Brasil. Cien Saude Colet. 2018;23(5):1687-96. . PMid:29768621.
12 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 485, de 1 de abril de 2014. Redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União [Internet], Brasília, 2 de abril de 2014; Seção 1. [citado em 2016 Out 7]. Disponível em:
13 Moreira GAR, Soares PS, Farias FNR, Vieira LJES. Notificações de violência sexual contra a mulher no Brasil. Rev Bras Promoç Saúde. 2015;28(3):327-36. .
14 Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica [Internet]. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. 126 p. [citado em 2015 Ago 20]. Disponível em:
15 Araújo RP, Sousa FMS, Feitosa VC, Coêlho DMM, Sousa MFA. Perfil sociodemográfico e epidemiológico da violência sexual contra as mulheres em Teresina/Piauí. Rev Enferm UFSM. 2014;4(4):739-50.
16 Holanda ER, Holanda VR, Vasconcelos MS, Souza VP, Galvão MTG. Fatores associados à violência contra as mulheres na atenção primária de saúde. Rev Bras Promoç Saúde. 2018;31(1):1-9. .
17 Santos TPS, Antunes TCS, Penna LHG. Perfil Sociocultural de mulheres que vivenciaram violência sexual em uma unidade hospitalar de referência. J. Res. Fundam. Care. 2014;6(4):1445-54.
18 Chacham AS, Jayme JG. Violência de gênero, desigualdade social e sexualidade: as experiências de mulheres jovens em Belo Horizonte. Civitas. 2016;16(1):1-19. .
19 Veloso MMX, Magalhães CMC, Dell’aglio DD, Cabral IR, Gomes MM. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil. Cien Saude Colet. 2013;18(5):1263-72. . PMid:23670454.
20 Facuri CO, Fernandes AMS, Oliveira KD, Andrade TS, Azevedo RCS. Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2013;29(5):889-98. . PMid:23702995.
21 Moura MAV, Albuquerque L No, Souza MHN. Perfil sociodemográfico de mulheres em situação de violência assistidas nas delegacias especializadas. Esc Anna Nery. 2012;16(3):435-42. .
22 Lucena KDT, Deininger LDSC, Coelho HFC, Monteiro ACC, Vianna RPT, Nascimento JA. Analysis of the cycle of domestic violence against women. J Hum Growth Dev. 2016;26(2):139-46. .
23 Souto RQ, Leite CCDS, França ISX, Cavalcanti AL. Violência sexual contra mulheres portadoras de necessidades especiais: perfil da vítima e do agressor. Cogitare Enferm. 2012;17(1):72-7. .
24 Labronici LM, Mantovani MF, Fegadoli D, Arcoverde MAM, Jarel G. Caracterização das vítimas e agressores de violência sexual em um serviço ambulatorial. Online Braz. J. Nurs. 2007;6:48-54.
25 Silva RA, Araújo TVB, Valongueiro S, Ludermir AB. Enfrentamento da violência infligida pelo parceiro íntimo por mulheres em área urbana da região Nordeste do Brasil. Rev Saude Publica. 2012;46(6):1014-22. . PMid:23380833.
26 Brasil. Ministério da Saúde. Norma técnica: atenção humanização às pessoas em situação de violência sexual com registro de informações e coleta de vestígios [Internet]. Brasília; 2015. 43 p. [citado em 2015 Ago 20]. Disponível em:
27 Procópio EVP, Feliciano CG, Silva KVP, Katz CRT. Representação social da violência sexual e sua relação com a adesão ao protocolo de quimioprofilaxia do HIV em mulheres jovens e adolescentes. Cien Saude Colet. 2014;19(6):1961-9. . PMid:24897495.
28 Gusmão BM, Pereira FS, Rocha AP, Fernandes MBS, Dias OV, Costa SM. Análise do perfil sociodemográfico de notificados para hepatite B e imunização contra a doença. Rev Fund Care Online. 2017;9(3):627-33.
29 Oliveira CO. Características sociodemográficas e sintomas psíquicos de mulheres vítimas de violência sexual [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2012 [citado em 2016 Dez 15]. Disponível em:
30 Lenzi L, Souza VR, Wiens A, Maciel KF, Rodrigues J No, Pontarolo R. Adesão à terapia antirretroviral durante a gestação e sua relação com a efetividade na prevenção da transmissão vertical do HIV. Acta Biomed Bras. 2013;4(2):12-20.
31 Machado CL, Fernandes AMS, Osis MJD, Makuch MY. Gravidez após violência sexual: vivências de mulheres em busca da interrupção legal. Cad Saude Publica. 2015;31(2):345-53. . PMid:25760168.