versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.12 Rio de Janeiro dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152112.09092015
A violência é um fenômeno social que acontece nas relações humanas em que há conflitos de interesse e dominação. A violência doméstica é tida como um tipo de violência de gênero e se refere àquela que ocorre dentro do lar, definida como qualquer ato de agressão física, sexual ou emocional perpetrado por um indivíduo com quem se tenha ou se teve um relacionamento1,2.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em estudo conduzido em dez países, incluindo o Brasil, até 71% das mulheres com idade entre 15 e 49 anos já sofreram violência física e/ou sexual em algum momento das suas vidas3. Na América Latina a violência doméstica afeta até 50% das mulheres, gerando uma redução de 14,2% do Produto Interno Bruto (PIB) devido aos custos gerados. No Brasil, 23% das mulheres se tornam vítimas da violência doméstica, o que significa que a cada quatro minutos uma mulher é agredida. Dos agressores, 85% são os próprios parceiros4.
Diversas medidas legais têm sido tomadas no Brasil como forma de enfrentamento à violência contra as mulheres4-6. A criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), em 2003, impulsionou as ações de enfrentamento à violência tornando-a um problema de eixo intersetorial. Assim sendo, a promoção do atendimento às mulheres vítimas de violência implica uma ação multi e interdisciplinar, qualificada e humanizada que pressupõe uma noção de enfrentamento não limitada ao combate, mas também à dimensão da assistência dada às vítimas7.
A Lei 11.340, conhecida como Maria da Penha (LMP), surge no final de 2006 objetivando caracterizar a violência de gênero como uma grave violação dos direitos humanos e garantir o enfrentamento desse problema por meio de proteção e procedimentos humanizados para as vítimas por meio da transformação do relacionamento entre vítimas e agressores, bem como a forma que o crime é processado, o atendimento policial e a assistência do Ministério Público8.
Apesar do cenário da violência contra a mulher demandar uma ação intersetorial, a discussão e o estudo da LMP ainda estão fortemente arraigados no escopo das ciências jurídicas e sociais9-15, sendo escassa a produção na área da saúde, seja na prevenção seja na assistência à saúde oferecida às mulheres vítimas de violência doméstica16,17.
A compreensão das características das mulheres em situação de violência é um dos caminhos para aprimorar a visibilidade sobre a temática, a percepção da sociedade sobre esta situação, bem como o tipo e a qualidade da atenção conferida nos serviços a este grupo. Deste modo, o dimensionamento do fenômeno da violência e a elucidação da dinâmica dos seus determinantes fornecerá subsídios para a formulação de políticas públicas e estímulo à notificação dos casos no âmbito individual e institucional18. Deste modo, fez-se necessário conhecer as características sociodemográficas e de saúde das mulheres vitimas de violência que estão/estiveram sob a tutela protetora do Estado antes e após a Lei Maria da Penha e a assistência à saúde ofertada a elas.
Estudo seccional, exploratório-descritivo, documental, de caráter quanti-qualitativo realizado durante o segundo semestre de 2013 em uma unidade de proteção especial de mulheres vítimas de violência no Estado do Ceará. A referida unidade é vinculada à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, Delegacia dos Direitos da Mulher e Conselho Cearense dos Direitos da Mulher.
A amostra foi composta pelos prontuários das mulheres que foram vítimas de qualquer tipo de violência doméstica de 2001 a 2012. Para definir o tamanho da amostra, considerou-se o total de mulheres atendidas por ano e estimou-se 30% através de amostra estratificada proporcional por ano. Das 608 mulheres atendidas no período de 2001 a 2012, selecionou-se 183 para compor a amostra e considerou-se uma perda de 7% (14), perfazendo amostra total de 197 prontuários. Para seleção dos prontuários, gerou-se uma lista de números aleatórios sem repetição através doMicrosoft Office Excel® 2007. Caso o prontuário não fosse encontrado era selecionado o numeralmente posterior, organizado por ordem de entrada na casa-abrigo pela própria unidade. Foram excluídos os prontuários de mulheres menores de idade e os que não tinham informações consistentes (mulheres com cognitivo não preservado, isto é, que apresentavam alterações neurológicas que poderiam comprometer as respostas).
Os dados foram coletados por três pesquisadores cegos, previamente treinados, a partir de formulário próprio contendo as variáveis: sociodemográficas (idade, raça, religião, estado civil, escolaridade, renda familiar); experiência com a violência (fator desencadeante, tipo de relacionamento com agressor, meios utilizados para agressão); estado de saúde da agredida (histórias de doenças, história gineco-obstétrica, exame físico e mental, localização corporal das lesões); e outras observações que foram relevantes para o estudo, tais como relatos da história de vida das mulheres e detalhes do boletim de ocorrência. Avaliou-se a assistência à saúde ofertada pelo abrigo, de forma qualitativa, registrando em um diário de campo as observações dos pesquisadores, assim como as informações relacionadas à saúde das mulheres que estavam contidas nos prontuários.
O banco de dados foi digitado em dupla entrada noMicrosoft Office Excel® 2007, sendo as análises realizadas pelo software Statistical Package for Social Science (SPSS®) versão 20. Para analise inferencial, optou-se por fazer um recorte relativo ao período de promulgação da LMP (antes – 2001 a 2006 e depois – após 2007) já que esta legislação modificou a forma de enfrentamento da violência doméstica por garantir melhor assistência às vítimas no Brasil. Realizou-se estatística inferencial para comparação entre as variáveis através do teste de qui-quadrado de Pearson adotando o nível de significância de 5% (P < 0,05). A normalidade dos dados foi testada através do teste de Kolmogorov Smirnov.
O projeto teve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, como preconiza a resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde19.
A maioria da amostra (43,7%) tinha idade acima de 31 anos (29,76 ± 7,27 anos; min. = 18 e máx. = 58), era parda (47,2 %), alfabetizada (91,4%), solteira (73%) e residia na capital (84,8%). Quase um terço da amostra (30,5%) informou não ter renda e 37,6% trabalhavam com serviços domésticos, estavam desempregadas ou não possuíam profissão (31,5%) e 26,9% contavam com apoio social (Tabela 1).
Tabela 1 Perfil sociodemográfico da população estudada.
Características sociodemográficas | n | % | |
---|---|---|---|
Idade | |||
15 •—o 25 anos | 66 | 33,5 | |
25 •—o 30 anos | 44 | 22,3 | |
Acima de 31 anos | 86 | 43,7 | |
Não informado | 1 | 0,5 | |
Raça | |||
Branca | 42 | 21,3 | |
Negra | 22 | 11,2 | |
Parda | 93 | 47,2 | |
Indígena | 23 | 11,7 | |
Escolaridade | |||
Não Alfabetizada | 12 | 6,1 | |
Alfabetizada | 180 | 91,4 | |
Não informado | 5 | 2,5 | |
Estado civil | |||
Solteira | 144 | 73,0 | |
Casada | 52 | 26,4 | |
Não informado | 1 | 0,5 | |
Cidade de moradia | |||
Capital | 167 | 84,8 | |
Região Metropolitana | 24 | 12,2 | |
Não informado | 6 | 3,0 | |
Renda familiar | |||
Sem renda | 60 | 30,5 | |
Até 1 salário mínimo | 54 | 27,4 | |
1 a 3 salários mínimos | 18 | 9,1 | |
Maior que 3 salários mínimos | 1 | 0,5 | |
Não informado | 64 | 32,5 | |
Categoria profissional | |||
Não trabalha/desempregada | 62,0 | 31,5 | |
Prestação de serviços e comerciárias | 21,0 | 10,7 | |
Trabalhadora de Serviços domésticos | 74,0 | 37,6 | |
Trabalho manual (Produção de bens e serviços industriais) | 25,0 | 12,7 | |
Outros | 7,0 | 3,5 | |
Não informado | 8,0 | 4,1 | |
Participa de programas governamentais (Programas de apoio e benefícios sociais) | 53,0 | 26,9 |
A maior parte das mulheres abrigadas foi agredida no período anterior à LMP (73,0% vs. 27,0%). Mais de 2/3 da amostra (86,3%) foi agredida por parceiro fixo (marido ou namorado), sendo que o relacionamento com o agressor tinha duração de até 10 anos (157,8 ± 241,1 meses; min. = 1 mês e máx. = 31 anos) em 72,1% dos casos. O fator desencadeante da agressão foi o ciúme (20,3%) e o meio de agressão mais utilizado foi a força física (40,1%) (Tabela 2).
Tabela 2 Características da experiência com violência da população estudada.
Características relacionadas à violência | n | % | |
---|---|---|---|
Ano da agressão | |||
2001 – 2006 | 144 | 73,0 | |
2007 – 2012 | 53 | 27,0 | |
Relacionamento com o agressor | |||
Relacionamento fixo* | 170 | 86,3 | |
Ex-parceiro | 19 | 9,6 | |
Outros (Pai, patrão ou parentes) | 5 | 2,5 | |
Não informado | 3 | 1,5 | |
Tempo de relacionamento com o agressor | |||
Até 120 meses | 142 | 72,1 | |
120 meses ou mais | 41 | 20,7 | |
Fator desencadeante | |||
Ciúmes | 40 | 20,3 | |
Sem motivo/motivo banal | 37 | 18,8 | |
Uso de substância psicoativas | 34 | 17,3 | |
Filhos/parentes (Divergência sobre criação de filhos ou relacionamentos com outros parentes) | 23 | 11,7 | |
Não aceita separação | 17 | 8,6 | |
Financeiro/patrimonial | 12 | 6,1 | |
Ciúmes/uso de substâncias psicoativas | 11 | 5,6 | |
Traição | 8 | 4,1 | |
Relação sexual forçada | 7 | 3,6 | |
Fez denúncia | 4 | 2,0 | |
Não informado | 4 | 2,0 | |
Meios utilizados | |||
Força física | 79 | 40,1 | |
Verbal | 31 | 15,7 | |
Força física e armas | 22 | 11,2 | |
Não informado | 21 | 10,7 | |
Força física e verbal | 19 | 9,6 | |
Armas | 15 | 7,6 | |
Outros | 5 | 2,5 | |
Verbal e arma branca | 4 | 2,0 | |
Não houve agressão | 1 | 0,5 |
*Dados não apresentados: marido 15,2%; namorado 71,1%.
Em relação à saúde reprodutiva, a maioria das mulheres tinha de 1 a 5 filhos vivos (93,8% vs 86,8%, P = 0,108), não estavam gestantes no momento em que ficaram abrigadas (7,6% vs 5,7%, P = 0,632), tinham feito pré-natal em todas as gestações (51,7% vs 62,3%, P = 0,000), tiveram de 1 a 3 partos na vida (43,1% vs 56,6%, P = 0,527), nunca tinham realizado aborto (50% vs 58,5%, P = 0,640) (Tabela 3).
Tabela 3 Características de saúde da população estudada.
Ano da agressão | 2001 – 2006 | 2007 – 2012 | P | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||||
Características de saúde reprodutiva | |||||||
Número de filhos vivos (n = 195) | 0,108 | ||||||
Nenhum | 1 | 0,7 | 3 | 5,7 | |||
1 •—o 5 | 134 | 93,8 | 46 | 86,8 | |||
6 ou mais | 7 | 4,9 | 4 | 7,5 | |||
Gestante atualmente (n = 13) | 11 | 7,6 | 3 | 5,7 | 0,632 | ||
Pré-natal em todas gestações (n = 107) | 0,000* | ||||||
Sim | 74 | 51,7 | 33 | 62,3 | |||
Não | 16 | 11,2 | 10 | 18,9 | |||
Número de partos na vida (n = 147) | 0,527 | ||||||
Nenhum | 2 | 1,4 | 2 | 3,8 | |||
1 •—o 3 | 62 | 43,1 | 30 | 56,6 | |||
4 ou mais | 39 | 27,1 | 12 | 22,7 | |||
Número de abortos na vida (n = 140) | 0,640 | ||||||
Nenhum | 72 | 50 | 31 | 58,5 | |||
Mais de 1 | 23 | 16,0 | 14 | 26,4 | |||
Violência gestação (n = 165) | 0,580 | ||||||
Sim | 85 | 59 | 28 | 52,8 | |||
Não | 37 | 25,7 | 15 | 28,3 | |||
Histórico de doenças | |||||||
Diabetes Mellitus (n = 134) | 1 | 0,7 | 2 | 3,8 | 0,187 | ||
Hipertensão Arterial Sistêmica (n = 135) | 6 | 4,2 | 2 | 3,8 | 0,532 | ||
Problema cardíaco (n = 134) | 6 | 4,2 | - | - | –– | ||
Câncer (n = 135) | 3 | 2,1 | - | - | –– | ||
História patológica pregressa (n = 141) | 0,009* | ||||||
DST | 65 | 45,1 | 9 | 17,0 | |||
Distúrbios mentais | 14 | 9,7 | 1 | 1,9 | |||
Outras | 12 | 8,3 | 3 | 5,7 | |||
Síndromes dolorosas | 7 | 4,9 | 4 | 7,5 | |||
Doenças respiratórias | 6 | 4,2 | 2 | 3,8 | |||
Doenças sanguíneas | 5 | 3,5 | 4 | 7,5 | |||
Gastrointestinais | 4 | 2,8 | 5 | 9,4 | |||
Número de doenças relatadas (n = 144) | 0,204 | ||||||
Até 1 | 120 | 83,3 | 48 | 90,6 | |||
Mais de 1 | 24 | 16,7 | 5 | 9,4 | |||
Conhecimentos e práticas em relação à saúde | |||||||
Conhecimento sobre anticoncepcionais (n = 166) | 120 | 83,3 | 38 | 71,7 | 0,015* | ||
Tabagista (n = 193) | 40 | 27,8 | 26 | 49,1 | 0,005* | ||
Etilista (n = 192) | 14 | 9,7 | 11 | 20,8 | 0,041* | ||
Informa uso de drogas ilícitas (n = 177) | 5 | 3,5 | 9 | 17,0 | 0,001* | ||
Relata uso continuo de medicamento (n = 188) | 31 | 70,8 | 7 | 71,7 | 0,127 | ||
Repercussões físicas da agressão | |||||||
Tipo de lesão (n = 58) | 0,709 | ||||||
Sem lesão | 18 | 12,5 | 12 | 22,6 | |||
Hematomas | 6 | 4,2 | 6 | 11,3 | |||
Múltiplas | 4 | 2,8 | 3 | 5,7 | |||
Cortes | 3 | 2,1 | 3 | 5,7 | |||
Queimaduras | 1 | 0,7 | - | - | |||
Hemorragia | - | - | 1 | 1,9 | |||
Cicatrizes | - | - | 1 | 1,9 |
*P < 0,05; Teste qui-quadrado de Pearson.
No que se refere ao histórico de doenças, a maioria era saudável, sendo que poucas tinham Diabetes Melito (0,7% vs 3,8%, P = 0,187) e hipertensão arterial sistêmica (4,2% vs 3,8%, P = 0,532). A doença pregressa mais relatada foi a doença sexualmente transmissível (DST) (45,1% vs 17%, P = 0,009) seguida por distúrbios mentais, tais como, ansiedade, choro fácil e sintomas de depressão com ou sem diagnóstico médico (9,7% vs 1,9%, P = 0,009). Quanto aos conhecimentos e práticas em saúde a maioria relata ter algum conhecimento sobre anticoncepcionais (83,3% vs 71,7%, P = 0,015), tem hábitos tabagistas (27,8% vs 49,1%, P = 0,005), etilista (9,7% vs 20,8%, P = 0,041) e são usuárias de drogas ilícitas (3,5% vs 17,0%, P = 0,001). A maioria relata fazer uso de algum medicamento de forma contínua (70,8% vs 71,7%, P = 0,127) e deram entrada no abrigo sem lesão aparente decorrente da agressão (12,5% vs 22,6%, P = 0,709) (Tabela 3).
Houve modificação no modo de fazer registro após a promulgação da LMP. Antes, a ficha de admissão continha dados genéricos e amplos (história de doenças, uso de medicamento, uso de droga e doenças dos filhos), fato que se repetia quanto à ficha de anamnese (menarca, primeira gravidez e violência na gestação). O prontuário continha receituários e exames médicos, uma ficha de acompanhamento psicossocial e boletim de ocorrência (Quadro 1).
Quadro 1 Assistência à Saúde ofertada às Mulheres no Abrigo.
Ações/Atividades Oferecidas | Antes LMP (2001 – 2006) | Após LMP (2007-até o presente) |
---|---|---|
Ficha de Admissão | Histórico de doenças, histórico de doença dos filhos abrigados, dependência química, uso de medicamentos, data da última menstruação, plano de saúde e local da agressão. | Informações sobre filhos desabrigados, seção sobre informações de saúde (histórico de doenças, uso de medicamentos, acompanhamento ginecológico, plano de saúde, dependência química). |
Anamnese | 1ª menstruação, violência na gestação, noções de gravidez, noções de anticoncepcionais, auto avaliação do estado emocional, histórico de DST, antecedentes familiares da vítima e do agressor. | Violência na gestação, noções de gravidez, noções de anticoncepcionais, histórico de violência sexual, histórico de DST (tipo, tratamento, data da última prevenção), histórico de abortos, relacionamento com agressor (início, comportamento em situações de violência), antecedentes familiares da vítima e do agressor, autoavaliação do estado emocional (perspectivas sobre o futuro e planos para realizá-las). |
Avaliação Física | Informações contidas no boletim de ocorrência, localização das lesões da agressão. | Informações contidas no boletim de ocorrência, localização das lesões da agressão, meios utilizados na agressão |
Ações de Saúde | Consultas, exames anexados aleatoriamente no prontuário, registros escassos de oficinas, palestras e práticas de saúde. | Consultas, exames, pasta de acompanhamento de saúde com controle dos medicamentos em uso, registros de todas as demandas de saúde da mulher juntamente com todas ações realizadas (oficinas, cursos, discussões em grupo, atendimentos de Fisioterapia, acompanhamento terapêutico) através de um Plano individualizado de atendimento à Mulher vítima de violência doméstica, avaliação da abrigada sobre os procedimentos de saúde oferecidos, registro de atividades lúdico-pedagógicas dos filhos. |
Após a LMP, a ficha de admissão acrescentou informações de filhos que não estavam abrigados, a seção ‘informações de saúde’, acompanhamento ginecológico, abuso de drogas detalhado e meio utilizado na agressão. A ficha de anamnese também foi modificada incluindo o histórico de violência sexual, de abortos e detalhamento de DST, autoavaliação do estado emocional com questionamentos sobre autoestima. Foi adicionada ao prontuário uma pasta de acompanhamento das ações de saúde com quadro de medicamentos (tipo, dosagem e hora de administração), receituários e exames médicos, ações de saúde (consultas, providências, observações relevantes). Além do descrito, o prontuário incluiu o chamado plano individualizado de atendimento à mulher vítima de violência doméstica, que consiste num registro de atividades internas e oficinas, informações sobre saúde e acompanhamento multiprofissional e terapêutico, identificando as demandas de saúde (Problemas dermatológicos, psiquiátricos, deficiências, uso de medicamentos, dependência química, DST); os serviços multiprofissionais (Consultas, exames, encaminhamentos) e acompanhamentos (Psicologia e terapia ocupacional) utilizados, delimitação de estratégias voltadas para reinserção familiar e convivência comunitária após desligamento (Quadro 1).
Houve declínio no número de mulheres abrigadas após a promulgação da LMP. As mulheres abrigadas são jovens, pardas, em situação de vulnerabilidade pessoal e social, agredidas por parceiro íntimo de longa data, por motivo de ciúme através da força física. Ocorreu incremento de práticas relativas à saúde (uso de substâncias psicoativas e realização de pré-natal) e melhoria do conhecimento sobre anticoncepcionais, embora as DST continuem bastante prevalentes. Ressalta-se que o registro e a assistência à saúde oferecida na unidade abrigo foram ampliados após a LMP.
A diminuição no número de mulheres atendidas pelo abrigo após a LMP pode estar associada ao fato que a LMP tornou mais rigorosa a punição dos agressores (medidas protetivas de urgência – afastamento do agressor, suspensão de visita aos filhos – e também não podem mais ser aplicadas penas pecuniárias, tornando crime qualquer forma de agressão) e as mulheres são encaminhadas às casas-abrigos apenas em casos extremos de risco, em que não haja alternativa para resolução do caso, o que muitas vezes ocorre após realizar a segunda ou terceira denúncia20,21. Deste modo, após a LMP, a ida a casas-abrigo só ocorre em situações em que esta é a única possibilidade de rompimento da relação violenta22.
No Ceará, do mesmo modo que no Brasil, os fatores associados à violência doméstica, em especial a psicológica, estão relacionados à idade (acima de 30 anos), baixa escolaridade, raça (cor não branca), não possuir trabalho remunerado, padrão de relacionamento afetivo (fixo e duradouro) e histórico de violência (ter sofrido ou convivido com violência durante a infância)23-26.
Entretanto, em outros países, há divergência nestas questões relacionadas à vulnerabilidade social e pessoal de mulheres agredidas. Um estudo multipaíses demonstrou que os fatores de risco para violência doméstica estão associados a ter tido outros relacionamentos amorosos, principalmente se houver filhos, ter sofrido outros tipos de violência, uso de álcool e a atitude de aceitação da violência pela mulher27. Sonego et al.28 relatam que o tipo de violência a qual esta mulher é submetida influencia sua percepção, por exemplo, quando sofre apenas violência psicológica ela não interpreta isso como abuso/violência, mas como algo “normal”, apenas quando esta extrapola para o plano físico, torna-se anormal.
Ciúme, motivos banais e uso de substâncias psicoativas são elementos presentes no cotidiano de violência das mulheres estudadas. Dossi et al.29 relatam que o ciúme é a principal causa de violência entre parceiros íntimos, o que se deve ao sentimento de posse do homem sobre a mulher. Relata ainda que o uso de drogas está associado com episódios de violência (92%) e que os motivos banais e corriqueiros são responsáveis por transformar agressividade em agressão. A percepção das mulheres agredidas refletem esses achados:
…ele me bate porque está no calor, porque não recebeu dinheiro, porque diz que sonhou comigo traindo ele… (abrigada em 2007).
A agressão física, prevalente no estudo, acarreta inúmeras lesões traumáticas que se manifestam sob a forma de equimoses, fraturas e distúrbios orgânicos, como dores imprecisas e múltiplas queixas, mas que são pouco descritas nos prontuários e aparentemente pouco investigadas durante o atendimento inicial do abrigo30,31.
A experiência de violência física por vezes repercute com as vivências em saúde sexual e saúde reprodutiva destas mulheres. Como neste estudo, Campbell et al.32 demonstraram associação entre violência doméstica por parceiro íntimo e afecções uroginecológicas (DST, infecções do trato urinário, dor pélvica, sangramentos vaginais, infecções vaginais e fibroses). Isso pode se explicar pelo fato de que a maior parte dessas mulheres também é vítima de abuso sexual, sendo forçadas a manterem práticas e/ou relação sexual com o parceiro agressor. Os relatos mostram que o “estupro marital” ocorre tanto por medo da agressão como em consequência desta:
… ele me força a ter relação com ele… eu aguento porque tenho medo… (abrigada em 2006).
Este estudo revela ainda as violências múltiplas e repetidas, predominantes entre as mulheres abrigadas. Muitas, relataram histórico de abuso sexual desde a infância ou adolescência, como nas falas a seguir:
… quando eu era pequena, tinha dois irmãos que abusavam de mim… (abrigada em 2006)
… não tive infância… fui estuprada por um tio com 8 anos e depois por outro tio quando tinha 12 anos… meu pai já tentou abusar de mim… (abrigada em 2010)
O abuso sexual, o medo da agressão, as questões de gênero, dentre outros elementos de vulnerabilidade desta mulher, também a expõe a gravidezes indesejadas. Estudo realizado no Nordeste do Brasil revelou que 32,4% das gravidezes não planejadas são de mulheres vítimas de violência de gênero. Os fatores associados a isso são o uso ineficiente de contraceptivos, atitudes de desaprovação do parceiro e a recusa do parceiro em usar contraceptivos, configurando-se também como uma forma de violência, já que a mulher em relacionamentos violentos não tem controle sobre as relações sexuais que mantém33, corroborando com o presente estudo, como pode se ver isso neste relato:
… meu marido não deixava eu usar nenhum anticoncepcional… nem camisinha, nem comprimido… (abrigada em 2006)
…ele me obrigava a tomar remédio pra perder o menino…mas eu não perdi… (abrigada em 2004)
Acrescente-se a este cenário as múltiplas experiências de violência vivenciadas durante a gestação, que as coloca e expõe seus conceptos a inúmeras situações de risco. Ribeiro et al.34 relatam que a violência na gestação é mais comum do que as doenças rotineiramente investigadas no pré-natal (pré-eclâmpsia e diabetes) e que a forma mais comum é a psicológica (41,6%). Além disso, a violência triplica a chance de gestantes realizarem pré-natal inadequado35. As mulheres atendidas no abrigo reafirmam estes achados:
… em uma gravidez eu cheguei a perder o neném e na outra ele quebrou meu braço… (abrigada em 2005)
… meu filho nasceu com epilepsia por causa de uma surra que eu levei… na minha última gravidez ele nem deixou eu fazer as consultas… (abrigada em 2006)
… eu dei entrada no hospital mais de 20 vezes na minha última gravidez por causa das agressões… ele também não deixava eu ir para o pré-natal (abrigada em 2006)
Deste modo, a ocorrência de transtornos mentais, bem como o uso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas (álcool, tabaco e maconha.) é comum entre as mulheres abrigadas, sendo o uso de drogas e de transtorno do estresse pós-traumático prevalente entre mulheres que sofrem violência sexual, psicológica ou abuso físico36,37. Atualmente, entre mulheres urbanas de baixa renda, tem sido descrita uma tríade de coocorrência de agravos à saúde, a SAVA sindemia, que se refere à ocorrência de uso de drogas pesadas, violência íntima por parceiro e HIV/AIDS e esta também está fortemente associada à depressão mesmo que a mulher conte com apoio social37.
O aumento do uso de tabaco e álcool, encontrado no estudo, também tem sido relacionado como consequência direta da situação de violência experimentada entre essas mulheres10,28. As mulheres podem consumir álcool e outras drogas em uma tentativa de “automedicar” a dor e o mal-estar advindos da convivência com situações violentas e traumáticas38.
Blasco-Ros et al.39 relatam que mulheres que sofriam violência psicológica associada à física tem maior potencial de saírem da situação de violência e, consequentemente, maior chance de recuperação da saúde mental. Kernic et al.40 acrescentam que a redução da sintomatologia de transtornos mentais está associado à cessação da violência. Assim, o abrigamento parece ser uma medida efetiva de melhoria das questões relacionadas ao sofrimento mental e físico entre mulheres vitimas de violência.
Já outra vertente de discussão sobre o abrigamento e a saúde mental destas mulheres afirma que ao mesmo tempo em que protegem, por serem locais de endereço sigiloso, geram muitas perdas (do lar, dos bens, do convívio familiar e do emprego) e reforçam a ideação de que o agressor pode tomar uma atitude de vingança e represália à mulher que denunciou e revelam a ineficiência do Estado em prover respostas para a segurança, reafirmando a ‘onipotência’ do agressor e eximindo o Estado de garantir o direito de ir e vir41,42.
Este estudo sinaliza que grandes mudanças ocorreram no atendimento à mulher abrigada no Estado do Ceará, mas ainda são escassos os registros das informações quanto às consequências físicas e psicológicas da(s) agressão(ões). Deste modo, não basta um serviço especializado e uma equipe bem treinada, multiprofissional e interinstitucional que garanta atendimento e providências adequados31,43, é preciso uma reorganização dos serviços com mudanças no modo de atender e um maior envolvimento da equipe multidisciplinar no acompanhamento das mulheres e no desenvolvimento de ações de prevenção à violência20.
A escassez de estudos na área da saúde; as perdas de resultados devido a mudanças que ocorreram nas fichas de admissão das mulheres na instituição; a inexistência de padronização do preenchimento das fichas com inúmeros componentes qualitativos; além da inexistência de profissional de saúde para atendimento inicial e os fatores próprios dos estudos seccionais são elementos que contribuíram para a limitação deste trabalho.
Poucas mudanças ocorreram no perfil de saúde de mulheres vítimas de violência doméstica atendidas pelo Estado após a LMP. Mudanças relevantes ocorreram no padrão de assistência oferecido, tais como maior investigação, promoção e registro de atividades relacionadas à saúde, no entanto, há ainda pouca investigação sobre as repercussões físicas e psicológicas das agressões sofridas.
Sugere-se inclusão de profissionais na equipe da casa-abrigo que possam contribuir para o atendimento das mulheres com um olhar voltado para as repercussões físicas da agressão e o emponderamento das mulheres sobre sua saúde através de práticas de educação em saúde e cidadania.