versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.3 Rio de Janeiro maio/jun. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180020
A doença cardiovascular constitui atualmente uma das principais causas de internação hospitalar no Brasil na população geral, sendo a principal causa de internação em pacientes idosos.1
Com o advento de novas tecnologias no tratamento da doença cardiovascular, a sobrevida do cardiopata aumenta e, com o envelhecimento, manifestam-se outras comorbidades, como hipertensão arterial, diabetes, insuficiência renal e disfunção cognitiva.2,3
Com o avançar da idade, o próprio sistema cardiovascular apresenta alterações fisiológicas, como aumento progressivo da pressão arterial sistólica, redução da capacidade aeróbica e diminuição das respostas reflexas do sistema nervoso autônomo.4
Isoladamente, o aumento da idade eleva o risco cardiovascular do paciente seja pela avaliação do escore de risco de Framingham e do SCORE, que são utilizados em assintomáticos, seja pela avaliação da prevalência de doença coronariana pelo escore de Diamond.5,6
Em pacientes com doença coronariana, a idade é importante fator preditor de risco de eventos futuros, tanto em escores de doença coronariana aguda, como o GRACE, como na avaliação de risco pré-operatório, como o EuroSCORE.7,8
Permanecem dúvidas quanto aos fatores preditores de óbito cirúrgico, definido como óbito ocorrido em até 30 dias do procedimento cirúrgico, na população brasileira de pacientes a partir dos 70 anos de idade.
O objetivo do nosso trabalho foi avaliar as características epidemiológicas dos pacientes submetidos à cirurgia de revascularização miocárdica em um hospital especializado do Sistema Único de Saúde (SUS), e analisar os preditores de risco de óbito cirúrgico e as complicações inerentes ao procedimento.
Coorte retrospectiva do banco de dados de cirurgia cardíaca do Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio de Janeiro (RJ), operados no período de dezembro de 2004 a março de 2012.
Faziam parte deste banco de dados variáveis demográficas, clínicas, laboratoriais, ecocardiográficas e angiográficas do pré-operatório, do intraoperatório, do pós-operatório imediato realizado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e do pós-operatório tardio realizado na enfermaria, totalizando 327 variáveis, além do estado vital em 30 dias. No presente estudo foram analisados os dados demográficos, clínicos, laboratoriais, ecocardiográficos e angiográficos do pré-operatório do paciente, e a necessidade de realizar cirurgia valvar combinada, e tendo sido considerado o tipo de evolução (alta vs. óbito em até 30 dias do procedimento). A angina pectoris foi graduada pelos critérios da Canadian Class Society (CCS).9
Para a realização deste estudo, obteve-se a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa do instituto, sob o número 0117/110906.
A análise estatística foi realizada por meio do registro das frequências, das médias e seus respectivos desvios padrão, ou da mediana e dos quartis, quando apropriado. Para comparar os grupos de desfecho, foi utilizado teste t de Student, quando as variáveis apresentaram distribuição normal, ou teste U de Mann-Whitney, quando a normalidade não foi observada. Nas variáveis dicotômicas, o qui quadrado ou o teste exato de Fisher, quando apropriado, foram aplicados. Para estudar a associação entre as variáveis independentes e o desfecho, foi utilizada a regressão logística multivariada em duas etapas, indo à etapa final as variáveis que tivessem valor de p < 0,20 na primeira etapa. Foi utilizado o programa STATA 14 da StataCorp LP. Foi empregado um valor de alfa de 0,05. Todos os testes foram bicaudais.
As características epidemiológicas estão apresentadas na tabela 1. Foram 372 pacientes, sendo, em sua maioria, do sexo masculino, com mediana de idade de 74,26 anos e índice de massa corporal médio de 26,2 kg/m2. Em relação aos fatores de risco, os pacientes apresentavam hipertensão arterial sistêmica (93,2%), diabetes (29,0%) e tabagismo corrente (4,3%). Mesmo com média de creatinina dentro da normalidade, os pacientes apresentaram clearence de creatinina diminuído. A taxa de mortalidade da população estudada foi de 19,35% (72 pacientes) em 30 dias.
Tabela 1 Características demográficas e clínicas da população estudada
Característica | |
---|---|
Idade, anos (mediana e interquartis) | 74,26 (71,77-77,08) |
Homens | 67,2 |
Índice de massa corporal | 26,2 ± 4,1 |
Hipertensão arterial sistêmica | 93,2 |
Diabetes melito | 29,0 |
Tabagismo | 4,3 |
Infarto agudo do miocárdio prévio | 19,4 |
Acidente vascular cerebral prévio | 5,3 |
Clearence de creatinina | 51,77 (42,38-61,86) |
Creatinina | 1,1 (1,0-1,38) |
Cirurgia de revascularização miocárdica prévia | 2,1 |
Angioplastia coronariana percutânea prévia | 9,1 |
Angina | 80,9 |
Angina instável | 27,6 |
Angina estável | 72,4 |
Lesão de tronco de coronária esquerda | 41,9 |
Lesão em descendente anterior proximal | 62,0 |
Trivasculares | 75,0 |
Fração de ejeção | 62,0 (49,0-69,0) |
Classe funcional 3 ou 4 pela NYHA | 9,2 |
Óbito em 30 dias | 19,3 |
Resultados expressos em mediana (interquartis), porcentagem ou média ± mediana. NYHA: New York Heart Association.
Na análise univariada (Tabelas 2 e 3), foram marcadores do óbito cirúrgico: cirurgia de urgência, cirurgia valvular combinada, cirurgia prévia, doença vascular periférica, classe funcional III/IV pela New York Heart Association (NYHA), diâmetro atrial esquerdo aumentado, menor uso de estatina no pré-operatório, maior necessidade do uso de nitratos no pré-operatório, insuficiência aórtica moderada/grave, estenose aórtica moderada/grave e insuficiência tricúspide moderada/grave.
Tabela 2 Análise univariada da mortalidade cirúrgica pela presença das variáveis categóricas potencialmente preditoras do óbito cirúrgico
Variável | Óbito (%) | Sobrevivente (%) | Valor de p |
---|---|---|---|
Cirurgia combinada | 40,00 | 15,82 | < 0,001 |
Classe funcional 3 ou 4 pela NYHA | 38,24 | 17,26 | 0,003 |
Cirurgia de urgência | 40,91 | 18,00 | 0,004 |
Uso de estatina no pré-operatório | 16,84 | 30,43 | 0,017 |
Doença vascular periférica | 30,16 | 17,12 | 0,018 |
Cirurgia prévia | 31,37 | 17,35 | 0,019 |
Insuficiência tricúspide moderada/grave | 60,00 | 18,44 | 0,019 |
Insuficiência aórtica moderada/grave | 38,89 | 18,07 | 0,029 |
Insuficiência mitral moderada/grave | 34,78 | 17,93 | 0,040 |
Estenose aórtica moderada/grave | 32,81 | 16,03 | 0,002 |
Nitratos no pré-operatório | 33,33 | 17,99 | 0,051 |
Betabloqueador no pré-operatório | 32,81 | 28,57 | 0,056 |
Sexo masculino | 17,60 | 22,95 | 0,220 |
Diabetes | 15,74 | 20,91 | 0,253 |
Lesão de tronco de coronária esquerda | 18,59 | 19,52 | 0,822 |
NYHA: New York Heart Association.
Tabela 3 Análise univariada da mortalidade cirúrgica pela presença das variáveis contínuas potencialmente preditoras do óbito cirúrgico
Variável | Sobrevivente | Óbito | Valor de p |
---|---|---|---|
Dimensão átrio esquerdo, cm | 3,91 (3,84-3,98) | 4,13 (3,94-4,32) | 0,0129 |
Índice de massa corporal, kg/m2 | 26,11 (25,72-26,50) | 26,80 (25,36-28,24) | 0,3162 |
Idade, anos | 74,15 (71,73-7,08) | 74,81 (72,16-77,23) | 0,3505 |
Fração de ejeção do ventrículo esquerdo, % | 58,77 (57,12-60,43) | 55,76 (51,62-59,90) | 0,7250 |
Pressão sistólica da artéria pulmonar, mmHg | 35,50 (32,11-38,89) | 39,83 (33,97-45,68) | 0,9114 |
A análise multivariada foi realizada em duas etapas e, na etapa final, encontramos como preditores independentes de óbito a presença de doença vascular periférica, a necessidade de cirurgia de urgência e o procedimento combinado com troca valvar (Tabelas 4 e 5).
Tabela 4 Análise multivariada dos fatores preditores do óbito cirúrgico na etapa inicial
Fator | Odds ratio | Erro padrão | IC95% | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Cirurgia de urgência | 4,4952 | 2,5857 | 1,4559-13,879 | 0,009 |
Doença vascular periférica | 2,5038 | 0,9111 | 1,2271-5,1091 | 0,012 |
Dimensão do átrio esquerdo | 1,4488 | 0,3623 | 0,8874-2,3655 | 0,138 |
Cirurgia combinada | 2,1760 | 1,2039 | 0,7357-6,4358 | 0,160 |
Cirurgia prévia | 1,6740 | 0,6984 | 0,7390-3,7925 | 0,217 |
Insuficiência tricúspide moderada/grave | 3,1501 | 3,1348 | 0,4479-22,152 | 0,249 |
Betabloqueador no pré-operatório | 0,6536 | 0,2706 | 0,2903-1,4715 | 0,304 |
Estenose aórtica moderada/grave | 1,4779 | 0,7335 | 0,5587-3,9096 | 0,431 |
Estatina no pré-operatório | 0,8023 | 0,3059 | 0,3800-1,6941 | 0,564 |
NYHA 3-4 | 1,3249 | 0,6894 | 0,4777-3,6742 | 0,589 |
Nitratos no pré-operatório | 1,2760 | 0,8513 | 0,3451-4,7179 | 0,715 |
Insuficiência aórtica moderada/grave | 0,9405 | 0,5882 | 0,2761-3,2041 | 0,922 |
IC95%: intervalo de confiança de 95%; NYHA: New York Heart Association.
Tabela 5 Análise multivariada dos fatores preditores do óbito cirúrgico na etapa final
Fator | Odds ratio | Erro padrão | IC95% | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Cirurgia combinada | 3,8651 | 1,2871 | 2,0123-7,4236 | < 0,001 |
Cirurgia de urgência | 4,8608 | 2,3881 | 1,8558-12,732 | 0,001 |
Doença vascular periférica | 2,4773 | 0,8218 | 1,2931-4,7463 | 0,006 |
IC95%: intervalo de confiança de 95%.
A cirurgia de revascularização miocárdica tem como objetivo a correção da isquemia miocárdica consequente à obstrução das artérias coronárias, objetivando o alívio dos sintomas, a melhora da qualidade de vida e o retorno do paciente à função laboral, bem como o aumento da expectativa de vida.9
Trata-se de um método de revascularização com maiores porcentuais de revascularização completa e de diminuição de episódios anginosos. Em contraponto, temos taxa de dias hospitalizados e incidência de complicações durante a internação cirúrgica maiores, o que coloca a cirurgia como uma segunda alternativa para pacientes que necessitam de uma revascularização.9
As características epidemiológicas dos pacientes submetidos à cirurgia de revascularização miocárdica apresentam a maioria dos pacientes do sexo masculino com média de idade de 60 anos, hipertensão arterial como fator de risco mais prevalente e com função ventricular esquerda preservada.10,11
No entanto, o idoso apresenta maior número de comorbidades comparando com o paciente mais jovem. Além destas comorbidades, o sistema circulatório do idoso apresenta alterações derivadas do envelhecimento, como aumento da rigidez arterial, piora da função diastólica e maior extensão da doença arterial coronariana.12-14
Comparativamente ao paciente mais jovem, o paciente mais idoso apresenta maior mortalidade em relação à revascularização − seja cirúrgica ou percutânea. Porém, comparando com a revascularização percutânea, os benefícios em longo prazo no idoso submetido à cirurgia são maiores, principalmente em relação ao maior alívio sintomático e à menor necessidade de novas revascularizações.15
Diversos trabalhos evidenciam que a idade leva ao aumento no risco de óbito. Santos et al. observaram que pacientes acima de 65 anos apresentam um risco 2,3 vezes maior de óbito em relação aos pacientes mais jovens; Rocha et al. compararam pacientes maiores e menores de 70 anos, encontrando taxa de mortalidade de 8,9% nos mais velhos e de 3,6% nos mais jovens − esta coorte não envolveu pacientes submetidos à cirurgia combinada, que é um importante preditor de mortalidade.16,17
Diferentemente, Aikawa não identificou impacto na mortalidade dos pacientes mais idosos (> 65 anos) (5,8% vs. 2,0%), porém identificou um índice maior de complicações no pós-operatório nos idosos em comparação com os mais jovens (30% vs.14%).14
Já temos relatos de séries cirúrgicas envolvendo octogenários em procedimentos de revascularização miocárdica isolada mostrando que estes pacientes apresentam um risco maior de evolução para óbito intra-hospitalar, porém, quando comparamos com pacientes que vão para cirurgia de maneira eletiva ou com menos comorbidades, o risco se assemelha ao dos pacientes mais jovens.18,19
A mortalidade dos pacientes mais idosos foi bem maior do que a avaliada na população geral em trabalho realizado previamente pelo nosso grupo. A avaliação de todos os pacientes apresentou índice de 10,3% comparado com 22,3% da coorte atual. Porém, ao compararmos com algumas coortes de pacientes maiores de 70 anos, vemos taxas de mortalidade bem semelhantes.10,20
Em relação aos preditores de mortalidade, já é sabido que a cirurgia de emergência em idosos apresenta impacto negativo em relação ao prognóstico na evolução pós-operatória dos pacientes com risco de óbito de até 55 vezes maior em algumas séries.21
A presença de doença aterosclerótica periférica guarda íntima relação com a idade e o maior número de fatores de risco para doença coronariana. Associado a isso, existem relatos de que a qualidade do enxerto é pior nestes pacientes. O estudo PREVENT IV demonstrou que os pacientes com doença vascular periférica apresentam risco 3,3 vezes maior de morte, infarto ou novas revascularizações em 5 anos, porém sem impacto nos primeiros 30 dias após a cirurgia. Este fato é sustentado por outros dois trabalhos que demonstraram que o impacto da doença vascular periférica reside no longo prazo. No entanto, nenhum destes trabalhos estudou somente a população mais idosa, fato que pode explicar porque a combinação de idade avançada com doença vascular periférica apresenta um prognóstico mais sombrio que a doença vascular periférica isolada no pós-operatório de revascularização miocárdica.22-24
Ao realizarmos comparações com outras populações, precisamos ter em mente algumas peculiaridades dos pacientes estudados. Nossos pacientes eram do SUS, que, em sua maioria, apresentam condição socioeconômica mais desfavorável que os de rede particular e de outros países, além de terem um menor acesso a atendimento especializado.25
Os preditores de óbito cirúrgico nos septuagenários nesta amostra estudada foram a necessidade de cirurgia de emergência, o procedimento valvar combinado e a presença de doença vascular periférica.