versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.32 no.4 São Paulo 2020 Epub 10-Fev-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20202019072
A deglutição é um processo neuromuscular sinérgico, sequencial e harmônico(1). Esta é dividida em diferentes fases que envolvem a manipulação do bolo alimentar por meio de movimentos mastigatórios, preparação do bolo para ejeção e a deglutição propriamente dita. É responsável pelo transporte do alimento da boca até o estômago de modo eficiente, ou seja, sem risco de penetração e aspiração. O ato de deglutir possibilita a nutrição e a hidratação, porém podemos afirmar que esta função estomatognática transcende essas finalidades(2,3). A alimentação é também um ato social, desta forma, podemos dimensionar sua importância na qualidade de vida das pessoas(1).
Os desvios dessa função configuram processos disfágicos, que se caracterizam pela alteração do processo da deglutição, bem como são sempre um sintoma orbitando uma causa de base. Tais desordens podem aumentar o risco de infecções pulmonares, desnutrição, desidratação e mortalidade(4-6).
A avaliação clínica pode ser integrada, quando possível, com exames complementares objetivos. Uma das avaliações instrumentais considerada padrão ouro é a videonasoendoscopia funcional da deglutição, que visa esclarecer a dinâmica da deglutição, permitindo identificar alterações anatômicas e/ou funcionais das estruturas. Por meio do exame, é possível analisar a eficiência do processo da fase faríngea da deglutição(6-8).
Com base nos achados dos exames de videonasoendoscopia funcional da deglutição realizados em um hospital de referência do município de Porto Alegre, um evento chamou a atenção de membros da equipe executora. As imagens de muitos exames, em diferentes pacientes, sinalizaram a descida de resíduo contrastado, após encerrada fisiologicamente a deglutição de ofertas de testagem. Durante as avaliações, havia a necessidade de descrever este evento, porém não havia nenhuma descrição e/ou classificação para a ocorrência em protocolos. Há aspecto semelhante ao do escape precoce, mas não corresponde à etapa fisiológica esperada para esse. Dessa forma, o presente estudo objetiva descrever e caracterizar esse escape de resíduo alimentar, considerado tardio pela equipe e não descrito em literatura vigente.
Trata-se de um estudo transversal observacional retrospectivo. O projeto foi avaliado pela Comissão Científica e Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e aprovado sob o número 2.262.802.
A amostra, por conveniência, foi composta por 200 exames analisados, todos realizados em ambulatório especializado em distúrbios da deglutição.
Atendendo aos critérios de inclusão deste estudo, foram inseridos pacientes de ambos os gêneros, com e sem patologia de base com impacto em deglutição, bem como, com e sem queixas para essa função. Pacientes que não possuem uma doença de base específica podem apresentar, com o avanço da idade, um declínio da função da deglutição decorrente do processo de envelhecimento, tendo ou não percepção da alteração. Analisada essa condição, optou-se por inseri-los no estudo. Os sujeitos portadores de alterações estruturais anatômicas foram excluídos da amostra.
Todos os sujeitos inseridos na pesquisa ou seus responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os pacientes foram submetidos à videonasoendoscopia funcional da deglutição, como avaliação instrumental de possíveis alterações no processo. O exame foi realizado por médicos otorrinolaringologistas, com acesso de uma fibra óptica flexível (Nasofibroscópio Flexível Henke Wolf Ultra-Slim 3.4 mm 30 cm), a qual foi introduzida através da cavidade nasal até a laringofaringe, sem aplicação de anestésico tópico local, eliminando interferência na sensibilidade nessa região.
Para a realização das avaliações, os indivíduos foram posicionados sentados na cadeira do exame de frente para o médico. Durante a execução do exame, o paciente permaneceu com o corpo parado com controle do segmento cefálico, com angulação média de cabeça no plano Frankfurt, simulando sua posição durante uma refeição normal. No decorrer do procedimento, o otorrinolaringologista realizou uma avaliação detalhada das estruturas que compõem a anatomia do trato vocal. Inicialmente, analisaram-se as paredes laterais e posterior da faringe, base de língua, valécula, epiglote e recessos piriformes, pregas vocais vestibulares e pregas vocais verdadeiras em repouso. Com a fibra óptica já posicionada na região da laringofaringe, foram ofertados pelo fonoaudiólogo os alimentos, em diferentes volumes e consistências, pastosa, líquida e sólida, corados com corante alimentício azul anis (fabricado pelo Duas Rodas Industrial Ltda.). Os alimentos utilizados foram água para a consistência líquida, água espessada para a pastosa e biscoito cream cracker para a consistência sólida. Os exames foram gravados e identificados em um DVD para posterior análise.
A coleta de dados ocorreu por meio da análise de cada exame anteriormente gravado. As imagens foram estudadas individualmente pelo pesquisador, com o objetivo de identificar e selecionar imagens que constatem o evento em estudo. Posteriormente, os exames passaram por três juízes com expertise para confirmar os achados nos exames selecionados.
Cabe-se ressaltar que, o posicionamento da fibra óptica pode sofrer alterações no decorrer da videoendoscopia da deglutição, sendo necessário que o otorrinolaringologista reajuste o enquadramento com o reposicionamento da fibra óptica. É imprescindível que durante a gravação do exame se tenha uma ampla visualização, incluindo base de língua, na qual podem ocorrer eventos importantes para uma interpretação da função de deglutição.
Com o intuito de nomear a ocorrência em análise, intitulou-se o evento de escape posterior tardio, no qual o termo posterior refere-se à direção do resíduo alimentar, para trás, em direção laringofaríngea. O termo tardio remete a tempo, por ser depois de finalizada a deglutição.
Atendendo ao propósito de caracterizar a população que evidenciou o escape posterior tardio, analisaram-se variáveis como faixa etária, gênero, patologia de base e consistência do alimento na qual o evento ocorreu.
As variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio padrão e as variáveis categóricas por frequências absolutas e relativas. Para comparar as consistências, o teste de Cochran foi aplicado. Para avaliar a associação entre as variáveis categóricas, o teste Qui-quadrado de Pearson em conjunto com a análise de resíduos ajustados foi aplicado. O nível de significância adotado foi de 5% (p≤0,05) e as análises foram realizadas no programa SPSS versão 21.0.
Foram analisados 200 exames de videonasoendoscopia funcional da deglutição e o evento em estudo foi observado em 45 (22,5%) destes. A amostra foi composta por sujeitos entre 46 e 87 anos. A Tabela 1 caracteriza a amostra do presente estudo.
Tabela 1 Caracterização da amostra
Variáveis | n=45 |
---|---|
Idade (anos) - média ± DP | 65,2 ± 9,7 |
Faixa etária – n(%) | |
<60 | 13 (28,9) |
60-69 | 17 (37,8) |
≥ 70 | 15 (33,3) |
Gênero – n(%) | |
Masculino | 20 (44,4) |
Feminino | 25 (55,6) |
Patologia – n(%) | |
Doença Neurológica | 28 (62,2) |
Refluxo gástrico | 1 (2,2) |
Neoplasias | 3 (6,7) |
Sem doença de base | 13 (28,9) |
Legenda: n = número de sujeitos; DP = desvio padrão
Os exames selecionados para o estudo apresentaram o escape residual posterior tardio em pelo menos uma consistência. Um dos cruzamentos realizados consta na Tabela 2, que se refere à ocorrência do escape com a faixa etária.
Tabela 2 Dados do exame de deglutição conforme faixa etária
Variáveis | <60 anos (n=13) |
60-69 anos (n=13) |
70 anos ou mais (n=15) |
P |
---|---|---|---|---|
Consistências – n(%) | ||||
Pastoso | 0,162 | |||
Não | 8 (61,5) | 6 (35,3) | 10 (66,7) | |
Sim, na mesma consistência | 5 (38,5) | 11 (64,7) | 5 (33,3) | |
Líquido | 0,031 | |||
Não | 9 (69,2)* | 7 (41,2) | 3 (20,0) | |
Sim, na mesma consistência | 4 (30,8) | 10 (58,8) | 12 (80,0)* | |
Sólido | 0,592 | |||
Não | 5 (38,5) | 7 (41,2) | 6 (40,0) | |
Sim, na mesma consistência | 0 (0,0) | 3 (17,6) | 1 (6,7) | |
Sim, na consistência anterior | 8 (61,5) | 6 (35,3) | 7 (46,7) | |
Sim, na mesma consistência e consistência anterior | 0 (0,0) | 1 (5,9) | 2 (6,7) |
*Associação estatisticamente significativa pelo teste dos resíduos ajustados a 5% de significância
Legenda: n = número de sujeitos; P = probabilidade de significância
A deglutição é um processo fisiológico que exige uma adequada coordenação e integridade de órgãos, músculos e nervos para que seja eficiente e coordenada. O envelhecimento é um processo natural que acarreta um declínio neural, estrutural e funcional, impactando as fases da deglutição(9,10). O presente estudo obteve uma média de faixa etária entre os sujeitos de 65,2 ± 9,7, na qual a maioria possuía uma doença de base, que certamente potencializou o declínio da eficiência da deglutição. Entretanto devemos destacar a alta porcentagem de indivíduos (28,9%), sem uma patologia orbitando, os quais também apresentaram o escape posterior tardio no momento da avaliação (Tabela 1).
A fase preparatória oral consiste na manipulação do alimento. É necessário que aconteça a trituração e pulverização para formar um bolo alimentar coeso e adequado a fim de que permita melhor condução do bolo nas regiões faríngea e esofágica. Os lábios, bochechas, língua e arcada dentária são estruturas importantes para a manutenção do alimento na cavidade oral, evitando o escape anterior e/ou posterior(11,12).
A deglutição do idoso é impactada pelo envelhecimento. Há uma degeneração fisiológica natural das fibras nervosas e musculares e componentes anatômicos craniofaciais. Esse declínio funcional é definido como presbifagia(13). Nos idosos, a fase oral pode ser prejudicada por apresentar aspectos deletérios como, prolongamento da preparação do bolo alimentar, escape anterior por dificuldade em realizar o vedamento labial, diminuição da força mastigatória e propulsora, atraso na ejeção do bolo, mobilidade de língua reduzida, perda de dentição natural, próteses dentárias mal adaptadas e redução das papilas linguais que compromete a aferência sensorial(14). Além disso, também ocorrem impactos na fase faríngea e esofágica, como diminuição de elevação laríngea, abertura do esfíncter superior esofágico e movimentos peristálticos(15).
A hipótese da equipe é que o evento em estudo seja uma característica da presbifagia, a qual se refere ao envelhecimento natural que aflige a funcionalidade do sujeito. É caracterizada por perturbações fisiológicas do mecanismo da deglutição, devido ao envelhecimento neural e muscular(16). Ressalva-se que há consequências do envelhecimento nas outras fases da deglutição, contudo o objetivo do estudo de caracterizar o escape posterior tardio compete à eficiência da fase oral da deglutição, portanto iremos nos deter a este processo.
A língua é o principal agente dessa fase, ela forma, posiciona e faz a busca do bolo alimentar na cavidade oral. Os movimentos da língua no vestíbulo e no assoalho é uma estratégia para que nenhum resíduo alimentar permaneça na cavidade oral.
Diante de um déficit de mobilidade e sensibilidade, há o risco de o alimento permanecer nessas regiões e causar uma desorganização posterior. A fase oral da deglutição inicia-se a partir da propulsão posterior do bolo alimentar pela língua, da cavidade oral para a orofaringe, ultrapassando a arcada amigdaliana, e finaliza com o desencadeamento do reflexo da deglutição, um processo importante para a continuidade do transporte do bolo alimentar. Nenhum resíduo alimentar permanecerá na cavidade oral se esta fase for eficiente(2,12,17). O escape posterior tardio da deglutição se caracteriza pela descida de um resíduo alimentar após a deglutição fisiologicamente finalizada, portanto o surgimento do escape tardio é consequência de uma ineficiência da fase oral, que possibilita a contenção de alimento em regiões da cavidade oral.
A incidência de disfagia é precária de dados epidemiológicos. Indivíduos acima de 60 anos possuem uma sugestão de incidência entre 16% e 22%; 20% a 40% em pacientes com doenças de Parkinson e Acidente vascular encefálico(18). As informações encontradas na literatura corroboram achados do estudo, em que o evento prevaleceu nos indivíduos com doença de base neurológica.
Observou-se em distintos pacientes da amostra o escape posterior tardio de resíduo alimentar. Os perfis dos sujeitos da amostra, idade e patologia de base, são influenciados pela população encaminhada para a realização da avaliação instrumental. Nos exames incluídos no presente estudo, a ocorrência do escape posterior de resíduo alimentar sucedeu após os pacientes terem finalizado a deglutição do alimento ofertado, considerando-se as três deglutições após a oferta ou até que estivesse sem resíduo a cavidade oral. O referido escape foi observado no intervalo entre uma oferta de alimento e outra, sendo que, em alguns casos, a descida do resíduo acontecia durante a fala e/ou abertura de boca do sujeito.
A avaliação da deglutição inicia-se pela consistência pastosa, líquida e, por fim, a sólida. Identificou-se o evento em todas as consistências, entretanto o paciente que apresentou o escape tardio em uma consistência não necessariamente o apresentou nas demais. A amostra contemplou os sujeitos que apresentaram o escape tardio em todas as consistências ou apenas em uma/duas (Tabela 2). É importante destacar que, em alguns casos, o escape ocorreu em um episódio, e não, necessariamente, durante toda a testagem daquela consistência.
É importante observar que os escapes tardios durante as ofertas das consistências pastosa e líquida ocorreram nas respectivas consistências testadas. Sob a oferta da consistência sólida, observou-se a descida da consistência líquida, em oferta pregressa, durante a mastigação.
A análise do evento com a faixa etária mostra uma significância na população com idades mais avançadas da nossa amostra, dado que vai ao encontro da hipótese dos pesquisadores. Outro achado é a ocorrência do escape posterior tardio mais frequente na consistência líquida, sendo a que exige maior organização funcional, pois demanda maior coordenação da fase oral.
Diante do exposto, é relevante diferenciar o escape posterior precoce(19,20) do escape posterior tardio. A diferença está em qual momento da deglutição o escape transcorreu, se previamente à deglutição inicial ou posteriormente.
Embasados na fisiologia de cada fase da deglutição, podemos fazer inferências sobre o evento em estudo. Como discutido anteriormente, é possível que uma incompetência da fase oral esteja implicando o escape posterior tardio da deglutição. Pode-se inferir que o alimento se deposita em assoalho de boca e/ou vestíbulos e gere uma desorganização depois de finalizada a deglutição. Desta forma, assim como no escape posterior precoce, é necessário adotar manejos a fim de que se evitem resíduos na região faríngea, levando o sujeito ao risco de penetração e/ou aspiração laringotraqueal. Infere-se que o escape posterior tardio seja uma particularidade da presbifagia, alterações funcionais e estruturais decorrentes do envelhecimento natural de todo ser humano, que concomitantemente com uma patologia de base é agravada.
Como limitador do estudo, podemos relatar o posicionamento inadequado da fibro durante a gravação ou danos de áudio e imagem, o que resultou na exclusão desses exames da análise.
A partir dos dados analisados e descritos acima, caracterizou-se e descreveu-se o escape posterior tardio da deglutição. A observação do evento estudado ocorreu em 22,5% (45) do total de exames (200). O evento sempre ocorreu após ter sido concluída a deglutição de oferta anterior.
O escape tardio ocorre predominantemente na consistência líquida, em indivíduos mais velhos da nossa amostra, sem predomínio do gênero.
Esse achado tem importante repercussão clínica, sendo assim necessário adotar manejos a fim de que se evitem resíduos na região faríngea, levando o sujeito ao risco de penetração e/ou aspiração laringotraqueal. Considera-se importante ressaltar a necessidade de mais estudos para obtenção de maiores conhecimentos e evidências em relação aos achados do estudo.