versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.28 no.6 São Paulo nov./dez. 2016 Epub 12-Dez-2016
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015266
A Síndrome de Down (SD) foi descrita primeiramente por John Laugdon Down (1866), mas foi caracterizada como sendo um distúrbio genético causado pela presença de um cromossomo 21 extra total ou parcial por Lejeune em 1957(1,2).
É a ocorrência genética mais comum, estimada em um a cada 800 ou 1000 nascidos vivos. O diagnóstico é confirmado por meio de uma investigação citogenética considerando uma série de sinais e sintomas, tendo como características clínicas mais encontradas o comprometimento intelectual (100%), fissura palpebral oblíqua (90%), aumento da vascularização (90%), microcefalia (85%), occipito achatado (80%), hiperextensão articular (80%) e hipotonia muscular (99%)(3).
O comprometimento auditivo em indivíduos com SD já foi bastante relatado na literatura(4-6). A perda auditiva ocorre aproximadamente em dois terços das crianças portadoras de SD, podendo esta ser do tipo condutiva, neurossensorial ou mista(7,8), sendo a maior incidência a de perdas auditivas condutivas (em torno de 80%), devido à presença de otites decorrentes das constantes infecções do trato respiratório(4,9,10).
Além disso, estudos demonstraram que a cóclea de indivíduos com SD é anatomicamente menor, mas aparentemente as anormalidades da orelha interna não são frequentes(11). No entanto, alguns autores relataram que, a partir da segunda década de vida, indivíduos com SD podem apresentar perda auditiva do tipo neurossensorial progressiva, semelhantes à presbiacusia(12).
O comprometimento em áreas centrais também pode ser verificado na SD, caracterizando-se por lesões ou disfunções. Autores justificaram estas alterações devido a falhas no mecanismo de habituação, deficiências de inibição central na aferência do estímulo ou distúrbios no mecanismo da cognição, os quais podem provocar redução das atividades neuroelétricas cerebrais(13).
A avaliação audiológica precisa em crianças com SD é um desafio, pois, na maioria das vezes, é realizada por meio de testes subjetivos, que dependem da participação e colaboração da criança. Por este motivo, estudos utilizando potenciais evocados auditivos, por serem testes objetivos, são de extrema importância nesta população.
O Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (PEATE) avalia a integridade da via auditiva até tronco encefálico e tem sido um dos testes objetivos mais eficazes para a auxiliar na identificação da perda auditiva por meio da obtenção do limiar eletrofisiológico. Estudo realizado com PEATE em indivíduos com SD encontrou diminuição nos valores de latências absolutas das ondas I, III e V em crianças com ou sem perda auditiva, inclusive perdas auditivas condutivas(14).
Outros autores, no entanto, observaram diminuição nos valores de latência das ondas I e III, e do interpico I-III, somente em crianças menores que 18 meses(15).
Desta forma, verifica-se que não existe um consenso com relação a esta diminuição nos valores de latência. Uma das justificativas para a diminuição destes valores seria a menor circunferência de cabeça da criança com SD, reduzindo a distância da transmissão do estímulo nervoso(16); e a outra seria maior velocidade de transmissão devido à mielinização precoce para a idade(15). Assim, no presente estudo, pretende-se verificar se a diminuição nos valores de latência descritos previamente pode ser observada mesmo em crianças maiores ou adolescentes.
O potencial evocado auditivo tardio relacionado a eventos (P300 ou Potencial Cognitivo) é gerado quando, entre uma série de estímulos frequentes, um estímulo infrequente e aleatório é detectado, estando relacionado com aspectos sensoriais e cognitivos no processamento da informação auditiva. Alguns estudos verificaram aumento nos valores de latência da onda P3 ou P300 em indivíduos adultos com SD(13,17). A justificativa para este achado sugerida por alguns autores é que o atraso nos valores de latência do P300 pode indicar um processo de envelhecimento precoce nestes indivíduos, sendo este procedimento útil para a identificação e prevenção de demência pré-senil(17).
Existem poucos estudos envolvendo o P300 em crianças com SD, pela própria dificuldade na aplicação do teste. Levando-se em conta os poucos estudos sobre a temática, a atual pesquisa pretende analisar o P300 sob a perspectiva de avaliar objetivamente o processamento da informação auditiva em indivíduos com SD sem perda auditiva.
Além disso, existem poucos estudos que realizaram, concomitantemente, o PEATE e o P300 na SD, em indivíduos audiologicamente normais, para a avaliação da via auditiva central, principalmente pela dificuldade de realizar estes procedimentos nesta população. Estudos anteriores sugeriram que indivíduos com SD podem apresentar padrões de respostas diferentes das encontradas em indivíduos com desenvolvimento típico, sendo que a identificação destes seria fundamental para o estabelecimento de um diagnóstico audiológico preciso.
Deste modo, o objetivo deste estudo foi caracterizar o PEATE com clique e o P300 em indivíduos com SD e audiologicamente normais.
Este trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob o número 138/11. Todos os responsáveis pelas crianças participantes do presente estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participaram 17 indivíduos com SD, na faixa etária entre sete e 15 anos (média 10,9 ± 1,6 anos), sendo oito do gênero masculino e nove do gênero feminino, que compuseram o grupo SD. Todos os indivíduos encontravam-se em terapia fonoaudiológica na instituição; 10 apresentaram histórico de otite média segundo os pais, sendo que o número de episódios de otite variou de 2 a 5 (média de 3,1 episódios).
O grupo controle (GC) foi composto por 21 crianças com desenvolvimento típico, de faixa etária entre sete e 15 anos (média 9,8 ± 1,5 anos), sendo cinco do gênero masculino e 16 do gênero feminino. Destes, 12 indivíduos apresentaram histórico de otite média segundo os pais, sendo que o número de episódios de otite variou de 1 a 3 (média de 2,42 episódios).
Os critérios de inclusão adotados para ambos os grupos foram:
•. Limiares de audibilidade menores do que 15 dBNA para todas as frequências avaliadas(18);
•. Curva timpanométrica Tipo A e presença de reflexos acústicos ipsilaterais;
•. Ausência de histórico de doenças psiquiátricas e neurológicas evidentes.
Convém ressaltar que, segundo os critérios de inclusão adotados, no momento da avaliação, os indivíduos não apresentavam comprometimento de orelha média.
Foram realizados os seguintes procedimentos:
a. Anamnese: foram coletadas informações sobre o histórico médico e otológico.
b. Meatoscopia: foi realizada previamente à avaliação audiológica para descartar possíveis interferências nos exames (presença de cerúmen, corpos estranhos, etc.). Para tanto, foi utilizado o otoscópio da marca Heine.
c. Imitanciometria (timpanometria e pesquisa dos reflexos acústicos ipsilaterais, nas frequências de 500, 1000, 2000, 4000 Hz), com o equipamento AT 235 da Interacoustic®. Todos os indivíduos foram submetidos a esta avaliação antes da realização do PEATE; no caso da realização do P300 em dia diferente do PEATE, este procedimento foi repetido para garantir a ausência de comprometimento de orelha média.
d. Audiometria Tonal: realizada nas frequências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz, utilizando-se fones de ouvido supra-aurais em cabina acústica (audiômetro modelo GSI-61, da Grason-Stadler®).
e. Avaliação Eletrofisiológica da audição: Estes procedimentos foram realizados com o equipamento portátil modelo Traveller Express da marca Biologic, de 2 canais, com o indivíduo sentado em uma poltrona reclinável, em uma sala tratada acústica e eletricamente. Os estímulos acústicos foram apresentados por meio de fone supra-aural. Os valores de impedância dos eletrodos deveriam situar-se abaixo de 5 kohms. Para cada avaliação eletrofisiológica, foram utilizados os seguintes parâmetros:
e. - PEATE: os eletrodos foram posicionados nas mastoides esquerda (M1) e direita (M2) e na fronte (Fz), utilizando-se como eletrodo “terra” a orelha contralateral. O estímulo acústico utilizado foi o clique de polaridade rarefeita, com duração de 0,1 ms, velocidade de apresentação de 19,1 estímulos por segundo, totalizando 2000 estímulos. Foram empregados filtros passa-baixo de 1500 Hz e passa-alto de 100 Hz, sendo a janela de análise de 10 ms. A intensidade do estímulo acústico, para análise da integridade da via auditiva, foi de 80 dB nNA, sendo avaliada uma orelha por vez. Para estudo do PEATE, foram analisadas as latências absolutas das ondas I, III, V, e interpicos I-III, III-V, I-V bilateralmente, de acordo com os valores de normalidade do próprio equipamento (Evoked Potential User Manual)(19).
Além da análise quantitativa, os resultados foram analisados de forma qualitativa para cada indivíduo, considerando-se o critério de normalidade das latências absolutas das ondas I, III e V acrescidos de dois desvios padrão. Sendo assim, os resultados foram classificados em:
- Normal: para latências absolutas das ondas I, III e V, para cada indivíduo (considerando-se as duas orelhas), dentro dos critérios de normalidade, acrescidos de dois desvios padrão.
- Precoce: para latências absolutas de qualquer uma das ondas (I, III e V), para cada indivíduo (considerando-se pelo menos uma das orelhas), abaixo dos valores estabelecidos, acrescidos de dois desvios padrão.
- Atraso: para latências absolutas de qualquer uma das ondas (I, III e V), para cada indivíduo (considerando-se pelo menos uma das orelhas), acima dos valores estabelecidos, acrescidos de dois desvios padrão.
- P300: Neste procedimento, foram colocados eletrodos na mastoide esquerda (M1) e direita (M2), no vértex (Cz), e na fronte (Fz) como “terra”. Foram utilizados estímulos acústicos do tipo “tone burst” nas frequências de 1000 e 1500 Hz a uma intensidade de 75 dB nNA, velocidade de apresentação de 1,1 estímulos por segundo, totalizando 300 estímulos. Foram empregados filtros passa-alto de 1 Hz e passa-baixo de 30 Hz, sendo a janela de análise de 800 ms. Foi solicitado ao participante contar em voz alta os estímulos raros (20% dos estímulos) que apareceriam aleatoriamente entre os estímulos frequentes (80% dos estímulos) – paradigma oddball, sendo avaliada uma orelha por vez.
No final da avaliação, os participantes foram instruídos a relatar o número de estímulos raros para a pesquisadora. Para certificação de que o indivíduo seria capaz de discriminar os sons raros dentre os frequentes, este foi instruído a levantar o braço ao escutar o primeiro estímulo raro. O P300 foi identificado como uma onda de polaridade positiva com latência aproximada de 300 ms pós-estímulo, obtida após a subtração do traçado correspondente aos estímulos raros do traçado correspondente aos estímulos frequentes. Foram analisados os valores de latência da onda P300. O critério de normalidade utilizado foi o proposto por McPherson(20), de acordo com a faixa etária avaliada. Cabe ressaltar que das 17 crianças do grupo SD, 15 realizaram o P300.
Além da análise quantitativa, os resultados foram analisados de forma qualitativa para cada indivíduo, com relação à latência absoluta da onda P300. Sendo assim, os resultados foram classificados em:
- Normal: quando a latência da onda P300 encontrava-se dentro dos valores estabelecidos por McPherson(20), de acordo com a faixa etária.
- Atraso: quando a latência da onda P300 encontrava-se aumentada, em pelo menos uma das orelhas, se comparada aos valores de normalidade estabelecidos por McPherson(20), de acordo com a faixa etária.
Cabe ressaltar que dois indivíduos com SD não conseguiram realizar a atividade cognitiva (contar em voz alta os estímulos raros) para a geração do P300, tendo sido, portanto, excluídos da amostra.
A análise dos resultados foi realizada de duas formas: quantitativa e qualitativa. Para a análise dos dados quantitativos, realizou-se o cálculo da média e desvio padrão para os valores de latência; para a análise qualitativa, realizou-se o estudo da ocorrência de alterações no PEATE e P300 e dos tipos de alterações encontradas por indivíduo de acordo com a normalidade descrita acima.
Para a comparação entre os dados dos grupos e das orelhas, foram utilizados os testes ANOVA, teste X2 de associação e Quiquadrado, sendo definido um nível de significância de 0,05 (5%).
Inicialmente, as orelhas direita e esquerda foram comparadas dentro de cada grupo. Como não houve diferença estatisticamente significante para nenhuma das comparações, agrupamos as orelhas para as análises quantitativas entre os grupos.
Na Tabela 1, pode-se observar as latências das ondas do PEATE e do P300 comparadas entre os grupos. Nota-se que as latências para todas as comparações realizadas são menores para o grupo SD, sendo que houve diferença estatisticamente significante para a onda V e interpicos III-V e I-V.
Tabela 1 Média e desvio padrão (em ms) das latências das ondas I, III e V, dos interpicos I-III, III-V e I-V do PEATE e da latência do P300 para os grupos SD e controle
PEATE / P300 |
Média SD |
DP SD |
Média Controle |
DP Controle |
p-valor |
---|---|---|---|---|---|
I | 1,49 | 0,14 | 1,50 | 0,10 | 0,776 |
III | 3,55 | 0,26 | 3,61 | 0,11 | 0,310 |
V | 5,37 | 0,30 | 5,59 | 0,12 | 0,002* |
I- III | 2,05 | 0,25 | 2,11 | 0,11 | 0,303 |
III – V | 1,82 | 0,20 | 1,98 | 0,07 | 0,001* |
I – V | 3,88 | 0,27 | 4,08 | 0,11 | 0,002* |
P300 | 323 | 58,80 | 329,05 | 28,54 | 0,558 |
*p-valor estatisticamente significante
Considerando as ondas I, III e V do PEATE de ambas as orelhas, foi possível observar precocidade das latências para a maior parte dos indivíduos do grupo SD, sendo que 82,35% apresentam precocidade da onda V. Em relação ao GC, todos os indivíduos apresentaram resultados normais. Houve diferença estatisticamente significante entre os grupos para a distribuição dos resultados nas três categorias (precoce, normal e atraso) para as ondas I, III e V (Tabela 2).
Tabela 2 Distribuição da ocorrência de resultados normais, precoces e atrasados no PEATE para cada um dos grupos
PEATE | Precoce | Normal | Atraso | Total | p-valor | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
SD n (%) |
C n (%) |
SD n (%) |
C n (%) |
SD n (%) |
C n (%) |
SD n (%) |
C n (%) |
||
Onda I | 9 (52,9) | 0 (0,0) |
5 (29,4) |
21 (100,0) |
3 (17,7) |
0 (0,0) |
17 (100,0) |
21 (100,0) |
<0,0001* |
Onda III | 12 (70,6) |
0 (0,0) |
3 (17,6) |
21 (100,0) |
2 (11,8) |
0 (0,0) |
17 (100,0) |
21 (100,0) |
<0,0001* |
Onda V | 14 (82,3) |
0 (0,0) |
2 (11,8) |
21 (100,0) |
1 (5,9) |
0 (0,0) |
17 (100,0) |
21 (100,0) |
<0,0001* |
*p-valor estatisticamente significante
No que diz respeito ao P300, houve predomínio de resultados dentro da normalidade para ambos os grupos (67% para SD e 100% para GC). No entanto, observou-se diferença estatisticamente significante entre os grupos para a distribuição dos resultados (normal e atraso) na análise qualitativa (Tabela 3).
Tabela 3 Distribuição da ocorrência de resultados normais e atrasados no P300 para o grupo SD (n=15) e controle (n=21)
P300 | Normal | Atraso | Total | p-valor | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
SD n (%) |
C n (%) |
SD n (%) |
C n (%) |
SD n (%) |
C n (%) |
||
Onda P3 | 10 (66,7) |
21 (100,0) |
5 (33,3) |
0 (0) |
15 (100,0) |
21 (100,0) |
0,015* |
*p-valor estatisticamente significante
No presente estudo, verificamos que não houve diferença estatisticamente significante entre as orelhas para os valores de latências absolutas e interpicos das ondas do PEATE e para os valores de latência do P300 em ambos os grupos. Tais achados concordam com estudos prévios, nos quais não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre as orelhas para os valores de latência do PEATE e do P300 em indivíduos audiologicamente normais e em indivíduos com SD(21,22). Esses resultados reforçam que, para indivíduos com SD, os valores de referência e critérios de análise para o PEATE e P300 com estímulos não complexos (cliques e tone burst) podem ser utilizados igualmente para ambas as orelhas, assim como já ocorre na prática clínica em indivíduos com desenvolvimento típico.
Em relação ao gênero, os achados não foram analisados levando-se em conta esta variável, visto que estudos anteriores não encontraram diferenças estatisticamente significantes entre os gêneros masculino e feminino para as respostas do PEATE e do P300(13).
Na comparação entre os grupos SD e GC, com relação à avaliação eletrofisiológica realizada por meio do PEATE, o grupo SD apresentou valores médios menores de latência, com diferença estatisticamente significante apenas para a latência absoluta da onda V e para os interpicos III-V e I-V, quando comparado ao GC (Tabela 1). Estes achados concordam com estudos da literatura que evidenciaram diminuição da latência absoluta da onda V e interpico I-V no grupo com SD(14,23). Ressalta-se que no estudo de Squires et al.(14) foi observada diminuição nos valores de latências de todas as ondas do PEATE em crianças com SD com ou sem perda auditiva.
Nossos resultados também corroboram estudo prévio em recém-nascidos com SD, no qual pesquisadores relataram diminuição da latência da onda V e dos interpicos III-V e I-V do PEATE quando comparados com recém-nascidos do grupo controle(24).
Já na análise qualitativa, conforme a Tabela 2, foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os grupos com relação à classificação “precoce” para os valores de latências absolutas das ondas I, III e V. Deste modo, observou-se que 58,82% dos indivíduos com SD apresentaram valor de latência precoce para a onda I, 70,58% para a onda III e 82,35% para a onda V. Estes resultados concordam com outros estudos que verificaram valores de latência absoluta reduzidos para as ondas do PEATE em SD quando comparados a indivíduos com desenvolvimento típico(15,25-27). Observaram-se, também, valores de desvio padrão maiores para o grupo SD, demonstrando assim maior variabilidade de respostas nestes indivíduos do que nas do grupo controle.
Não existe uma concordância na literatura em relação à justificativa da precocidade nos valores de latência do PEATE em SD. Dentre as diversas hipóteses, autores justificam pelo próprio fenótipo da SD, em que há uma diminuição na circunferência no tamanho do crânio e, consequentemente, menor distância entre a cóclea e tronco encefálico. Outras teorias referem precocidade no processo de mielinização em tronco encefálico; alteração na cóclea e na via auditiva ou a simplificação da via; maior velocidade de condução da fibra nervosa e tronco encefálico menor(28).
Cabe ressaltar que no presente estudo ficou mais evidente a precocidade para o valor de latência da onda V, ou seja, da região de tronco encefálico alto, identificada na análise quantitativa e qualitativa. Este dado não esteve de acordo com outros estudos realizados em crianças com SD. Muitos estudos são concordantes no que se refere a valores reduzidos para as latências das ondas III e V e para os interpicos I-III e I-V. Acredita-se que a faixa etária envolvida neste estudo possa ter interferido neste resultado. Autores verificaram precocidade nos valores de latência do PEATE apenas para crianças abaixo de 18 meses justificando para isto aspectos maturacionais, ou seja, com o desenvolvimento maturacional, as respostas para o PEATE de crianças com SD tendem a assemelhar-se às de crianças com desenvolvimento típico(15,25-27).
Esta precocidade de respostas é de extrema importância para a análise e interpretação adequadas do PEATE em crianças com SD, principalmente devido às frequentes alterações de orelha média presentes nesta população, as quais, ao invés de provocar um atraso de latências das ondas (resultado frequentemente encontrado em pacientes com perda auditiva condutiva), poderiam levar a valores de latência dentro da normalidade. Desta forma, visando à interpretação precisa do PEATE em crianças com SD, diante de valores de latência dentro da normalidade, torna-se fundamental a investigação das condições de orelha média.
É importante mencionar que os participantes com SD da presente pesquisa apresentaram histórico de otite, com média de episódios de 3,1, um pouco mais elevado que o dos participantes do grupo controle (média de episódios de 2,42). Sendo assim, o número de episódios de otite na infância é um fator que deve ser levado em consideração na análise dos resultados dos potenciais evocados auditivos, uma vez que pode influenciar a maturação das vias auditivas centrais(29).
Portanto, torna-se importante enfatizar que, ao utilizar o PEATE na avaliação audiológica de indivíduos com SD, dados normativos de indivíduos normais devem ser utilizados com cautela na interpretação dos resultados.
Quanto à análise quantitativa e qualitativa do P300 (Tabelas 1 e 3), foi encontrada diferença estatisticamente significante entre os grupos apenas para a análise qualitativa (Tabela 3). Nesta análise, observou-se que 33% dos indivíduos com SD foram classificados como tendo aumento da latência em pelo menos uma das orelhas. Os dados do presente estudo discordam de outros em que foram verificados valores médios de latência do P300 aumentados em indivíduos com SD, mas concordam ao verificar maior número de indivíduos com resultados alterados do que no grupo controle. Autores referem que o aumento da latência estaria relacionado com deficiências sensoriais e cognitivas no processamento da informação acústica(30).
Acredita-se que a heterogeneidade do grupo SD possa ter interferido nos resultados encontrados, ou seja, embora crianças com SD apresentem comprometimento cognitivo, este pode ser bastante variável, dependendo da estimulação recebida. É importante mencionar que a população com SD que compôs esta pesquisa está em acompanhamento fonoaudiológico e, portanto, está exposta a estimulação terapêutica que auxilia o seu desenvolvimento de forma global.
Neste estudo, pode-se dizer que, na análise quantitativa, devido à variabilidade de valores encontrados no grupo SD, a média dos valores de latência do P300 não foi sensível para a identificação de alteração auditiva central ou mesmo cognitiva em indivíduos com SD. Porém, foi encontrado maior número de indivíduos com SD e P300 alterado do que no grupo controle. Existem diversas hipóteses com relação à interpretação das alterações do P300, como a teoria do atraso no tempo da discriminação dos sons, ou até mesmo do envelhecimento precoce. Autores referem que a análise do P300 é bastante complexa por ser um potencial evocado auditivo resultante de múltiplos fatores cognitivos(30). No presente estudo, embora pela média das latências não tenham sido encontrados valores alterados no P300, o número de indivíduos com valores de latência aumentados pode estar relacionado ao comprometimento no processamento cortical da informação auditiva(13), que sofre influência direta de fatores externos, por exemplo, o histórico de episódios de otite na infância(29). Cabe ressaltar que os processos de atenção e memória auditiva também podem estar prejudicados nesta população, o que pode ter influenciado diretamente a geração desta resposta eletrofisiológica.
Estudos posteriores que pudessem verificar o desenvolvimento maturacional dos potenciais evocados auditivos em crianças com SD, especialmente com relação aos potenciais evocados auditivos corticais, seria de extremo interesse para melhor compreensão deste aspecto nesta população.
Crianças e adolescentes com SD podem apresentar respostas precoces para os componentes do PEATE, sugerindo que a via auditiva destas crianças necessita de menor tempo para a transmissão neural do estímulo acústico até o tronco encefálico.
Quanto ao P300, indivíduos com SD podem apresentar latências aumentadas, sugerindo comprometimento na via auditiva central quanto ao processamento cortical da informação auditiva.