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Carcinoma adenoide cístico: imuno-histoquímica e diagnóstico diferencial, um relato de caso

Carcinoma adenoide cístico: imuno-histoquímica e diagnóstico diferencial, um relato de caso

Autores:

Mara Luana B. Severo,
Caio César S. Barros,
Lourival C. O. N. Rocha,
Lucemário S. Macêdo,
Márcia Cristina C. Miguel,
Éricka Janine D. Silveira

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial

versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774

J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.5 Rio de Janeiro set./out. 2019 Epub 11-Nov-2019

http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190044

INTRODUÇÃO

O carcinoma adenoide cístico (CAC) na cavidade bucal surge comumente das glândulas salivares menores do palato duro; geralmente acomete pacientes após a quarta década de vida, com predileção pelo gênero feminino(1,2).

O CAC exibe um aumento lento no volume, às vezes ulcerado, e, em estágios mais avançados, pode ocorrer destruição óssea(3,4). Devido à possibilidade de invasão perineural dessa neoplasia, o paciente pode apresentar dor e perda da função do nervo facial, ou paralisia(1).

Microscopicamente, o CAC é composto de células mioepiteliais e células ductais; exibe núcleos angulosos, hipercromáticos e citoplasma claro, dispostos em um estroma de tecido conjuntivo fibroso denso. São reconhecidos três padrões histopatológicos: cribriforme, tubular e sólido, que podem coexistir em diferentes proporções(1,2,4,5). O padrão CAC sólido apresenta pequenas células cuboides basofílicas e cuboides com pouco citoplasma; associa-se a um pior prognóstico devido à alta taxa de invasão tumoral, à alta capacidade de metástase a distância - que geralmente ocorre nos pulmões - e ao alto potencial de recidiva(1,5); e se assemelha a outras neoplasias epiteliais(2,6-9). Portanto, a imuno-histoquímica pode auxiliar o patologista no momento do diagnóstico.

Nesse contexto, o presente estudo tem como objetivo relatar um caso de CAC com padrão sólido em um paciente adulto, com base no perfil imuno-histoquímico e no diagnóstico diferencial dessa neoplasia.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, branco, 52 anos de idade, procurou atendimento odontológico em uma clínica particular da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, com queixa de perda de sensibilidade e dor na região maxilar direita. Nos exames clínicos e radiográficos iniciais, não foram encontradas alterações que justificassem a queixa inicial do paciente. O cirurgião-dentista (CD) fez o encaminhamento para uma avaliação do cirurgião de cabeça e pescoço. Não foram observadas anormalidades no exame médico, e o paciente foi encaminhado novamente ao CD, que decidiu, devido às queixas, realizar um tratamento endodôntico no elemento 12.

Um mês após o tratamento endodôntico, o paciente retornou à clínica com queixa de aparecimento de manchas arroxeadas na gengiva. O exame clínico intraoral revelou aumento de volume com coloração arroxeada, duro, assintomático e sem sangramento, localizado na face vestibular da gengiva inserida adjacente ao elemento 12 (Figura 1). Também foi observada mobilidade em todo o segmento dentário anterior superior. Diante desses achados, o CD solicitou exame de tomografia computadorizada (TC), que apresentou laudo sugestivo de neoplasia maligna.

FIGURA 1 Aspecto clínicoAspecto intraoral do paciente, evidenciando aumento de volume arroxeado, localizado na região gengival da maxila, em área adjacente ao ápice do elemento 12. 

Biópsia incisional sob anestesia local foi realizada; o material foi enviado para análise microscópica. Os achados histopatológicos revelaram neoplasia maligna de origem epitelial glandular, caracterizada pela proliferação de células epiteliais cuboides e núcleo pálido. Infiltração sob a forma de ninhos e lençóis, áreas de comedonecrose e invasão perineural (Figura 2A), muscular (Figura 2B) e óssea (Figura 2C) foram observadas. Tais características são consistentes com a variante sólida do CAC.

FIGURA 2 MicroscopiaA) invasão perineural; B) invasão muscular; C) invasão óssea de ninhos e ilhas de células tumorais (100 µm, HE). HE: hematoxilina e eosina. 

Para descartar outras lesões com características histopatológicas semelhantes às do CAC, foi realizado um painel imuno-histoquímico, utilizando o sistema de detecção ENVISION (EnVisionTM G|2 Doublestain System, Dako North America Inc., Carpinteria, Califórnia, EUA), descrito na Tabela. Após o diagnóstico, o paciente decidiu realizar o tratamento em outro estado, portanto, as informações sobre o desfecho clínico do caso não estão disponíveis.

TABELA Anticorpo primário, fabricante, clone e imunoexpressão (Envision Flex System) 

Anticorpo primário Clone Imunoexpressão
Anti-AE1/AE3 AE1/AE3 Positiva
Anticalponina CALP Negativa
Anti-CD10 56C6 Negativa
Anti-CD56 123C3 Positiva células raras
Anticromogranina A Policlonal Negativa
Anti-CK19 RCK 108 Negativa
Anti-CK20 Ks20.8 Negativa
Anti-CK5/6 D5/16 B4 Negativa
Anti-CK7 OV-TL 12/30 Positiva
Anti-CK8/18 B22.1+B231 Positiva/focal
Anti-C-kit Y145 Positiva/focal
Anti-GFAP Policlonal Positiva células raras
Anticitoqueratina de alto peso molecular (34βE12) 34βE12 Positiva/focal
Anti-Ki-67 MIB-1 Positiva (20%)
Anti-p63 DAK-p63 Negativa
Anti-S100 Policlonal Positiva
Antissinaptofisina DAK-SINAP Negativa
Anti-α-SMA 1A4 Positiva/focal

CK: citoqueratina; GFAP: proteína glial fibrilar ácida; α-SMA: alfa actina de músculo liso.

DISCUSSÃO

As neoplasias malignas que afetam as glândulas salivares são relativamente raras, representando menos de 7% dos cânceres de cabeça e pescoço. Destes, apenas 10% são diagnosticados como CAC(4).

O CAC pode ocorrer em vários locais anatômicos, incluindo glândulas salivares maiores e menores, glândulas lacrimais e glândulas da cavidade nasal(1,2). O envolvimento perineural ocorre entre 29,4% e 62,5% dos casos e é considerado uma possível via de disseminação de células neoplásicas(1).

O presente estudo relata um caso de CAC com invasão intraóssea da maxila, uma localização incomum quando comparada com os casos da literatura(1,2,4). A sintomatologia dolorosa é um achado clínico infrequente, especialmente nos estágios iniciais; perda da função do nervo facial ou paralisia pode ocorrer subsequentemente devido à alta capacidade de invasão neural e perineural dessa neoplasia(1). No estudo apresentado, o paciente relatou ambos os sintomas, compatíveis com a invasão perineural evidenciada no exame histopatológico.

O diagnóstico de CAC, assim como o da maioria dos tumores da glândula salivar, baseia-se nas características histopatológicas da lesão(10). O CAC exibe três padrões arquiteturais: tubular, cribriforme e sólido(1,2,4,5). O padrão sólido é o mais agressivo por conta da proliferação de pequenas células tumorais em ninhos, ilhas e lençóis de células basaloides invasoras, semelhantes às características morfológicas encontradas no presente caso(5).

Em algumas situações, especialmente em casos de biópsias incisionais, o diagnóstico de CAC pode ser difícil, uma vez que o fragmento da lesão pode não ser representativo para a análise. Assim, quando necessário, a imuno-histoquímica pode auxiliar no estabelecimento de um diagnóstico definitivo.

Quando o CAC apresenta predominantemente a variante sólida, com escassez ou ausência de variantes cribriformes e/ou tubulares, o diagnóstico tende a ser mais complexo, pois apresenta características morfológicas semelhantes aos tumores com características basaloides, como carcinoma basocelular, carcinoma escamoso basaloide (CEB), carcinoma indiferenciado ou aplásico sinonasal (SNUC) e neurocitoma central (NC)(2).

O CBC é um tumor raro, responsável por 2,9% das neoplasias malignas de glândulas salivares(6). O padrão sólido do CAC é o mais frequente e, quando apresentado na forma isolada e associado à necrose, leva ao diagnóstico diferencial de CAC sólido(2). Sua coloração imuno-histoquímica para marcação é variável: as células basais são marcadas positivamente para S100 e vimentina e parcialmente para uma variedade de citoqueratinas [(CK) 5, 6, 8, e 17], enquanto as células ductais expressam forte ligação para CK e parcial para a proteína S100. As células neoplásicas são negativas para alfa actina de músculo liso (α-SMA)(6). No presente caso, houve expressão difusa para α-SMA, descartando essa hipótese.

Outra lesão importante para diagnóstico diferencial é o CEB(2). Este é um subtipo incomum e bastante agressivo do carcinoma de células escamosas; ocorre mais frequentemente no trato aerodigestivo superior, tendo como sítios primários a cavidade oral, a faringe, a laringe e a traqueia(7). Células neoplásicas apresentaram imunocoloração para CK de alto peso molecular e antígeno carcinoembrionário (CEA), confirmando a histogênese epitelial da lesão(7). Neste estudo, houve expressão focal positiva da membrana da CK de alto peso (34βE12), positiva para CK7, o que evidenciou a marcação das células luminais, sendo positiva para S100, marcando fortemente a população de células não luminais.

O SNUC é uma neoplasia maligna rara e agressiva de histogênese incerta, que ocorre nos seios paranasais; os indivíduos afetados apresentam dor facial, obstrução nasal e epistaxe como primeiros sintomas(2,8). A maioria dos carcinomas nasais indiferenciados reage com as CK e são focalmente positivos para o antígeno de membrana epitelial (EMA), enquanto a enolase específica para neurônios, a sinaptofisina e a cromogranina podem apresentar imunorreatividade irregular(8). Em relação ao presente caso, observou-se marcação negativa para CK19, sinaptofisina e cromogranina, excluindo-se essa hipótese.

NC geralmente se localiza no sistema ventricular; afeta adultos jovens na segunda ou terceira década de vida. São imunopositivos para marcadores neurais, como sinaptofisina e enolase específica de neurônios, e negativos para proteína glial fibrilar ácida (GFAP) e proteína de neurofilamento, facilitando o diagnóstico(9). O presente caso foi negativo para sinaptofisina e apresentou expressão focal positiva de GFAP em células raras, o que colaborou para descartar o diagnóstico de NC.

Salha et al. (2016)(2) relataram um caso de CAC intraósseo sólido com origem nos seios paranasais com expansão para a cavidade oral. Neste estudo, a avaliação imuno-histoquímica observou marcação positiva e difusa para AE1/AE3, CK7 e CD117, além de expressão focal para as proteínas CK5/6, 34βE12, CAM5.2 e S100. Ademais, o tumor também teve forte expressão nuclear para p16 e immunoblotting negativo para p63, p40, enolase específica de neurônio, CD56, CEA, CD99, fator de transcrição da tireoide 1 (TTF-1), receptor de androgênio/estrogênio (RA/E) e receptor de progesterona (RP), descartando possíveis lesões de origem neural(2).

Os resultados imuno-histoquímicos encontrados no presente caso são semelhantes aos relatados por Salha et al., nos quais foram observados immunoblotting positivo e difuso para AE1/AE3 e CK7. A intensa marcação de CK7 indica a presença aumentada de células luminais (Figura 3A). Da mesma forma, foi observada marcação positiva para S100 em células não luminais. O immunoblotting para CK8/18 foi focal e compatível com imunocoloração para carcinoma de origem glandular salivar. A α-SMA, que geralmente é ausente ou focal no CAC sólido, apresentou expressão difusa, evidenciando algumas células com diferenciação mioepitelial (Figura 3B).

FIGURA 3 Imuno-histoquímicaImunoexpressão do CAC sólido, na qual o tumor apresentou expressão difusa para (A) CK7 e (B) α-SMA (100 µm). CAC: carcinoma adenoide cístico; CK: citoqueratina; α-SMA: alfa actina de músculo liso. 

CONCLUSÃO

As neoplasias das glândulas salivares intraósseas são raras, mas devem ser consideradas no momento do diagnóstico, pois o atraso para a identificação correta da lesão pode comprometer a evolução clínica do paciente em alguns casos. O CAC, quando presente em sua variante sólida, traz dificuldades diagnósticas, uma vez que essa lesão apresenta morfologia semelhante à de outras neoplasias. Portanto, destaca-se a importância de se reconhecer o CAC em sua forma sólida, discutir seu diagnóstico diferencial e enfatizar a necessidade de se estabelecer um diagnóstico correto para o manejo clínico e o tratamento adequado.

REFERÊNCIAS

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10 Luna-Ortiz K, Villavicencio-Valencia V, Rodríguez-Falconi A, Peteuil N, Mosqueda-Taylor A. Adenoid cystic carcinoma in a mexican population. J Maxillofac Oral Surg. 2016; 15(2): 236-42.