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Carcinoma ameloblástico decorrente de um ameloblastoma preexistente

Carcinoma ameloblástico decorrente de um ameloblastoma preexistente

Autores:

Hugo Costa Neto,
Andrea F. Carmo,
Ana Luiza D. L. Andrade,
Rodrigo R. Rodrigues,
Adriano R. Germano,
Roseana A. Freitas,
Hébel C. Galvão

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial

versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774

J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.5 Rio de Janeiro set./out. 2019 Epub 11-Nov-2019

http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190049

INTRODUÇÃO

O carcinoma ameloblástico (CA), equivalente maligno do ameloblastoma, é um raro tumor epitelial odontogênico(1), que pode irromper primariamente ou surgir de um ameloblastoma preexistente. Esse fato contribui para a dificuldade em diferenciar o CA de um ameloblastoma clássico benigno, especialmente em casos em que o espécime biopsiado não contém material adequado suficiente para o diagnóstico(2).

Na terceira edição da Classificação de Tumores de Cabeça e Pescoço da Organização das Nações Unidas (ONU), foi feita uma tentativa de subclassificar o CA em três tipos: o tipo primário, o tipo secundário intraósseo (não diferenciado) e o tipo secundário periférico (não diferenciado). Essa subclassificação foi considerada desnecessária para uma lesão tão rara e não tinha justificativa por razões comportamentais. Desse modo, em 2017, a ONU classifica o CA como uma entidade única, embora o texto reconheça suas variadas características histológicas(3).

O CA é um tumor que exibe traços citológicos malignos e crescimento invasivo, juntamente com o padrão histológico convencional de ameloblastoma(4).

Na literatura, CAs que nascem de ameloblastomas preexistentes são muito raros. Além disso, é difícil atribuir prognóstico ao paciente, devido às raras informações bem documentadas no acompanhamento(5). Assim, não há consenso sobre o tratamento dessa lesão(6). Este relato descreve um caso de CA que se desenvolveu de um ameloblastoma preexistente na região maxilar e oferece um levantamento de casos citados entre 2008 e 2017.

RELATO DE CASO

Em novembro de 2013, uma paciente leucoderma de 42 anos procurou o serviço de Cirurgia Maxilofacial e Traumatologia do Departamento de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com queixa de desconforto em dente próximo a uma área previamente operada. Durante a anamnese, a paciente relatou a ressecção cirúrgica de uma lesão maxilar esquerda em dezembro de 2011, cujo diagnóstico histopatológico foi amelobastoma (Figura 1).

FIGURA 1 A) múltiplos ninhos e cordões de epitélio odontogênico demonstrando diferenciação colunar periférica com polarização reversa. Zonas centrais assemelham-se a retículos estrelados (HE, 500 µm); B) magnificação mais alta destaca as células colunares periféricas exibindo polarização reversa (HE, 100 µm)HE: hematoxilina e eosina. 

Ao exame intraoral, verificou-se uma lesão na maxila esquerda com aspecto tumoral, eritematoso e inserção séssil, de aproximadamente 1 cm, com uma superfície irregular, exibindo áreas ulceradas. Os exames de imagem revelaram radiolucência e radiodensidade em uma radiografia panorâmica e na tomografia computadorizada, respectivamente, em que se observaram a ruptura da cortical óssea e a invasão do seio maxilar. Logo, a paciente se submeteu a uma biópsia incisional, que apresentou laudo histopatológico de ameloblastoma (Figura 2).

FIGURA 2 A) visão clínica pré-operatória da primeira recorrência da lesão; B) TC que mostra uma imagem hipodensa com ruptura da cortical óssea e invasão do seio maxilar (seta amarela); C) ilhas de células hipercromáticas com paliçadas periféricas e zonas centrais parecem retículo estrelado (HE, 200 µm); D) aspecto clínico pós-operatório TC: tomografia computadorizada; HE: hematoxilina e eosina. 

A paciente retornou para controle três e seis meses após a remoção da lesão, sem mudanças clínicas ou de imagem. Entretanto, após um ano buscou o serviço com uma segunda recorrência, clinicamente apresentando uma inserção séssil, tumoral, eritematosa, de aproximadamente 2 cm de comprimento, com superfície irregular, não delimitada e área de ulceração. Os estudos de imagem não revelaram nenhum envolvimento ósseo, caracterizando-o como ameloblastoma periférico.

O seguimento pós-operatório da paciente ocorreu uma, duas e quatro semanas após a cirurgia. Somente um ano depois a paciente retornou apresentando a terceira recorrência. Durante o exame clínico, foi observada uma inserção séssil tumoral e eritematosa, cobrindo o hemiarco esquerdo inteiro, com uma tumoração irregular, de superfície não delimitada e áreas de ulceração. A histologia revelou fragmentos de neoplasia maligna de origem odontogênica epitelial, mostrando atipia celular e pleomorfismo, hipercromatismo nuclear, focos degeneração cística e necrose. O estroma era composto por tecido conjuntivo fibrovascular denso com áreas de infiltrado inflamatório mononuclear leve. Também se observaram áreas focais de desmoplasia (Figura 3).

FIGURA 3 − A) visão clínica pré-operatória da última recorrência da lesão; B) TC que mostra imagem hipodensa com ruptura extensiva da cortical óssea e invasão do seio maxilar (seta amarela); C) fragmentos de neoplasma maligno de origem epitelial odontogênica, mostrando atipia celular e pleomorfismo, hipercromatismo nuclear, focos de degeneração cística e necrose (HE, 500 µm); D) áreas focais de desmoplasia (HE, 100 µm) TC: tomografia computadorizada; HE: hematoxilina e eosina. 

Em vista do diagnóstico, a paciente foi encaminhada ao serviço oncológico de referência do estado, onde foi removido cirurgicamente o processo alveolar da maxila esquerda e administrado radioterapia em doses semanais de 70 Gy durante dois meses. Nenhuma complicação ou recidiva foi relatada até o momento.

DISCUSSÃO

Carcinoma ameloblástico é um termo introduzido por Shafer et al. (1974)(7), usado para descrever um tumor derivado da transformação maligna das células epiteliais do ameloblastoma. Segundo a ONU, o CA é definido como uma malignidade epitelial odontotogênica primária rara e classificada como uma entidade diagnóstica única(3).

O surgimento do CA a partir de um ameloblastoma preexistente é extremamente raro, e somente 16 casos em 13 artigos científicos escritos em língua inglesa foram encontrados na literatura pesquisada nos últimos 10 anos (Tabela). Esse fato justifica a reclassificação da neoplasia, feita na última (quarta) edição da Classificação de Tumores de Cabeça e Pescoço da ONU, considerando que as características clínicas, radiográficas e histopatológicas das lesões, independentemente do tipo de aparência, são semelhantes. Poucas séries de caso estão disponíveis: os dados sobre as características clinicopatológicas do CA derivam, principalmente, de relatos de caso individuais. Portanto, descrições de novos casos podem ajudar na melhor compreensão das características biológicas deste raro câncer ondontogênico. Os mecanismos propostos para mudanças citológicas que transformam um clássico ameloblastoma benigno em um CA são controversos. O exato mecanismo para a transformação maligna do ameloblastoma atualmente é desconhecido. Uma das hipóteses é a possibilidade que o estímulo inflamatório repetitivo depois do tratamento cirúrgico de ameloblastomas recorrentes seja associado ao potencial de transformação maligna(8).

TABELA Revisão dos carcinomas ameloblásticos originários de ameloblastomas nos últimos 10 anosz 

Caso Autor Gênero/idade Localização Tratamento inicial Tratamento/
tratamento final
Metástase Recidivas/
acompanhamento (meses)
Desfechos/
prognóstico
1 Jindal(10) M/60 Mandíbula Cirurgia não especificada Ressecção alargada da mandíbula - -/19 Livre de doença
2 Karakida(8) M/43 Mandíbula - Mandibulectomia e
dissecção cervical
- Não/46 Livre de doença
3 Fujita(18) M/71 Mandíbula - Administração oral de fluoropirimidina e ressecção marginal - Sim/9 -
4 Pundir(14) F/40 Mandíbula - Hemimandibulectomia - -/- Livre de doença
5 Kamath(11) M/75 Mandíbula Hemimandibulectomia - Não -/- Morte
6 Lin(9) M/30 Maxila Enucleação e curetagem Ressecção radical Pulmão Sim/≅ 88 Paciente recusou tratamento adicional
7 Yoshioka(16) M/17 Mandíbula Enucleação (paciente e família recusaram cirurgia radical) Tratamento com feixe de íons de carbono Pulmão Sim/21 Morte
8 Makiguchi(13) F/84 Mandíbula Ressecção segmentar Ressecção cirúrgica e radiação Não Sim/- -
9 Nobusawa(17) F/84 Mandíbula Mandibulectomia segmentar Ressecção cirúrgica Fígado Não Morte
10 Li(15) M/36 Mandíbula - Ressecção parcial - Sim/120 Recorrência
F/40 Mandíbula - Ressecção alargada - -/120 Livre de doença
M/47 Maxila - Ressecção parcial - Sim/108 Recorrência
M/75 Mandíbula - Ressecção alargada Pulmão -/36 Metástase
11 Tempaku(19) M/58 Maxila - Ressecção e radiação Não -/- Doença
12 Gunaratne(6) M/66 Mandíbula posterior Tratamento cirúrgico conservador Ressecção cirúrgica Não Não/18 Livre de doença
13 Fonseca(12) F/27 Mandíbula posterior - Controle paliativo Não -/- Morte
14 Presente caso F/44 Maxila Enucleação e curetagem Ressecção cirúrgica e radiação Não Sim/18 Livre de doença

O dilema diagnóstico é ainda mais complicado em espécimes cuja biópsia contém material relativamente limitado. A identificação de crescimento tumoral ameloblastomatoso invasivo (em forma de invasão perineural, endoneural, muscular e/ou vascular) oferece evidências definitivas para o diagnóstico de CA(2). Gunaratne et al.(2015)(6), entretanto, não relataram consenso histológico em relação ao CA. Alguns parâmetros são descritos como ajuda diagnóstica, incluindo a presença de ilhas ou lençóis de epitélio ameloblastomatoso e a ausência de áreas similares ao retículo estrelado do órgão do esmalte. Além dessas características, o CA pode incluir hipercromatismo, nucléolos proeminentes, atipia celular, necrose, calcificação e invasão neural e vascular(8,9). Todas as características histopatológicas foram observadas no caso aqui relatado, com exceção da invasão neural e vascular. Alguns autores relatam uma variante de células fusiformes(10-12).

Makiguchi et al.(2013)(13) relatam que a taxa de recidiva dessa lesão é de 28,3% em pacientes tratados com ressecção cirúrgica do CA, enquanto a recidiva em casos tratados com tratamentos conservadores, como enucleação ou curetagem, é de 92,3%

Como o CA é extremamente raro um protocolo terapêutico ainda não foi bem definido. De acordo com a nossa revisão, protocolos terapêuticos envolvendo uma ampla ressecção cirúrgica com margem de segurança para tecidos moles e duros parece ser o tratamento mais eficaz(6,8,10,14,15). Para Gunaratne et al. (2015)(6), a radioterapia adjuvante pode ser benéfica para margens positivas ou exíguas ou em casos apresentando comprometimento linfonodal, mas regimes de quimioterapia não mostram evidência de benefícios. No presente caso, relatamos a ressecção do processo alveolar da maxila esquerda associada com radioterapia a doses semanais de 70 Gy por dois meses, sem complicações pós-cirúrgicas ou recorrências até o momento.

Quando nenhuma intervenção é realizada, o CA apresenta um curso agressivo, com extensa destruição local e metástases(6). O pulmão é o local mais comum de difusão, embora metástases para o fígado também tenham sido descritas(9,15-17).

Este relato descreveu um caso de CA surgido de um ameloblastoma recorrente, que culminou na apresentação de vários componentes resultando em diagnóstico de malignidade. Desse modo, o potencial de transformação maligna deveria ser considerado em ameloblastomas recorrentes, enfatizando a importância da vigilância do ameloblastoma, que é o mais comum tumor epitelial benigno da maxila.

CONCLUSÃO

O CA é uma entidade rara, e a descrição de novos casos pode revelar, principalmente por meio de tratamento e seguimento clínico, características que ajudem a melhor compreensão do comportamento do CA. Além do mais, o conhecimento clínico e histopatológico dessa malignidade é essencial para evitar possíveis confusões no seu diagnóstico e no seu plano de tratamento.

REFERÊNCIAS

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