versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.5 Rio de Janeiro set./out. 2019 Epub 11-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190045
O carcinoma cuniculado (CC), também conhecido como epitelioma cuniculado, é uma variante rara do carcinoma de células escamosas (CCE), que geralmente não apresenta malignidade citológica(1,2). O CC foi originalmente descrito na sola dos pés e por um longo tempo acreditou-se que se restringisse à pele(2). O tumor foi documentado pela primeira vez por Aird et al. (1954), que verificaram três casos de CC plantar(1,3). O CC oral foi retratado pela primeira vez por Flieger e Owinski (1977)(1,4). Em 2017, a classificação da Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o CC oral como um neoplasma que invade os tecidos ósseos, submucosos ou subcutâneos, formando a chamada "toca de coelho", com criptas preenchidas por queratina que são importantes para a distinção entre este neoplasma e outras variantes do CCE oral(1,2,5). Até a presente data, aproximadamente 50 casos de CC oral foram relatados, em geral acometendo a maxila e a mandíbula, seguidas pelo assoalho bucal, trígono retromolar, tonsilas, mucosa bucal e língua. Curiosamente, 16 casos de CC gengival foram relatados até agora. Além disso, o CC também tem sido retratado em outros locais de mucosa, incluindo pênis e esôfago(1,2,6-9).
Embora o CC tenha sido incluído na classificação da ONU(2,10), diferenciá-lo de carcinoma verrucoso (CV) permanece controverso, já que alguns autores consideram o CC uma variante de CV, enquanto outros têm sugerido que o CC representa uma entidade distinta, com potencial para agressividade local(2,11). Um estudo anterior afirmou que esses neoplasmas representam diferentes variantes do CCE oral, e suas principais características distintivas são: 1. clinicamente, o CC exibe uma superfície séssil rosada a vermelha levemente papilar ou de aparência corrugada, embora o CV tipicamente se apresente como uma lesão verrucosa branca com mais projeções de superfície distintivas e uma superfície hiperqueratótica verrucosa/frondosa; 2. histopatologicamente, a presença de um componente invasivo tortuoso em CC contrasta com a apresentação mais sutil de CV de "frente invasiva/borda que avança"(12).
Portanto, o objetivo deste estudo é descrever as características clinicopatológicas de um CC gengival adicional. Também revisamos a literatura, destacando seu diagnóstico diferencial.
Uma paciente de 67 anos, branca, foi encaminhada com queixa de uma massa tumoral indolor, que apresentava supuração, no corpo mandibular esquerdo com vários meses de evolução. A história médica e o exame extraoral pouco contribuíram, e a paciente negou o uso de fumo e álcool. O histórico dentário anterior revelou extração dos dentes 37 e 38 e diagnóstico de osteomielite supurativa crônica no local. O exame intraoral revelou uma massa exofítica localizada na gengiva mandibular esquerda, área dos dentes 37 e 38, que apresentou secreção purulenta amarela, tanto espontaneamente quanto à palpação. O exame radiográfico mostrou uma lesão osteolítica com bordas mal definidas e irregulares (Figura 1). Foi realizada uma biópsia incisional profunda, que microscopicamente mostrou uma exuberante e bem diferenciada proliferação epitelial escamosa, com frequentes invaginações, delimitando cavidades pseudocísticas, preenchidas por paraqueratina e células descamadas. O estroma fibrovascular mostrou numerosas células inflamatórias mistas. Na parte mais profunda, era possível ver o osso lamelar trabecular e focos de reabsorção óssea em estreita relação com proliferação epitelial escamosa bem diferenciada (Figura 2). O diagnóstico final de CC foi estabelecido. A paciente foi submetida à ressecção cirúrgica (Figura 3), e o espécimen mostrou características histopatológicas semelhantes. Após um seguimento de um ano, a paciente permanece bem, sem recorrência ou alteração.
FIGURA 1 A) massa exofítica localizada na gengiva mandibular esquerda. Extração dentária prévia e osteomielite supurativa crônica foram observadas nessa área; B) radiografia panorâmica mostrando uma área osteolítica com bordas mal definidas e irregulares
FIGURA 2 A análise microscópica mostrou intensa proliferação de epitélio escamoso bem diferenciado, com frequentes invaginações (A, 5×). O estroma fibrovascular mostrou numerosas células inflamatórias (B, 5×). Note a grande área de deposição de queratina (asterisco), focos de reabsorção óssea em estreita associação com exuberante proliferação do epitélio escamoso com invaginação proeminente (C, 5× e D, 20×). Coloração hematoxilina-eosina
O CC foi originalmente chamado epitelioma cuniculado, que se acreditava ser restrito ao tecido cutâneo, mais especificamente a superfície plantar do pé. Entretanto, desde sua primeira descrição, ele é citado por acometer sítios anatômicos não cutâneos, incluindo esôfago, laringe, pênis e mucosa oral(1,2,7,9,11). Sem estrita correlação clinicopatológica, seu diagnóstico é difícil, já que o CC pode imitar lesões benignas ou reativas, como abscesso, cistos, hiperplasia fibrosa inflamatória e lesão papilomatosa, entre outras(1,2,11).
O CC oral é uma variante rara do CCE, descrito pela primeira vez por Flieger e Owinski, em 1977(4). Até agora, cerca de 50 casos de CC oral foram relatados(9). Do mesmo modo que no presente caso, o local mais acometido pelo CC é a gengiva mandibular(1,2,4,9,12-18), com 11 casos afetando a gengiva mandibular e cinco, a gengiva maxilar. Apesar disso, nosso caso apresentou dificuldades diagnósticas como aquelas anteriormente descritas, e somente após a evolução do tumor e a consulta ao serviço especializado, foi feito o diagnóstico correto. As características clinicopatológicas do CC oral mostram uma ampla faixa etária (que varia de 7 a 92 anos) com média de idade de 67 anos, e uma discreta predileção pelo sexo masculino(1,9). Ainda assim, em duas séries recentes de casos de CC oral, observou-se uma discreta predileção pelo sexo feminino(1,9,12). Entre os casos de CCE oral citados por Ogawa et al. (2004), a taxa de incidência de CC foi 2,7%, comparada com 3,5% de CV(1,19).
É necessário comentar que alguns casos de CC foram erroneamente diagnosticados como CV(12), desse modo, a verdadeira incidência de CC oral pode ter sido subestimada. O CV também é uma variante distinta do CCE bem diferenciado e, como o CC, caracteriza-se por uma proliferação epitelial bem diferenciada e ausência de atipia celular evidente. Por outro lado, no CV o padrão de crescimento é exofítico, enquanto no CC o padrão de crescimento é endofítico e infiltrativo, caracterizado pela presença de complexa ramificação de criptas preenchidas de queratina. A presença de uma secreção amarela de mau cheiro (geralmente à palpação) é um achado típico no CC e não foi descrito no CV(2). Além do mais, o CV pode, em algum momento, causar erosão óssea, mas não penetra profundamente na submucosa subjacente e no osso, diferentemente do CC(2,7,11,20).
Diferentes fatores etiológicos podem ter contribuído para o desenvolvimento do CC, inclusive trauma local, inflamação e radiação. A infecção por papilomavírus humano (HPV tipo 11)(21) mostrou-se presente em alguns casos de CC comprometendo o tecido cutâneo, enquanto outros estudos falharam em corroborar qualquer relação com seu equivalente oral(1,2,17,20). Fatores de risco como fumo e álcool têm sido considerados agentes etiológicos; contudo, a maioria dos pacientes acometidos negou o uso dessas substâncias(2,15).
A análise histopatológica do CC oral, sem informação clínica, é desafiadora, especialmente pela falta de atipia citológica. Em geral, assim como ocorreu no presente caso, uma biópsia superficial em um estádio inicial pode levar a um diagnóstico errôneo, tal como lesão epitelial benigna, hiperplasia fibrosa inflamatória ou pseudoepiteliomatosa e osteomielite(1). De fato, após a biópsia incisional profunda e estrita correlação clinicopatológica, chegamos ao diagnóstico correto.
Um diagnóstico clínico de CC oral deve ser levado em conta na avaliação de uma úlcera que não cicatriza, crescimento verrucoso exofítico, aumento gengival de origem desconhecida, lesão tipo tecido de granulação e lesão fungante(1). Ademais, o CC oral também pode causar perda dentária e simular abscessos ou cistos, tal como ilustrado no presente caso e em outros casos previamente relatados(2,13,15). Depois da revisão de literatura, fica evidente que cerca de dois terços dos casos de CC foram inicialmente mal diagnosticados, atrasando o manejo apropriado desses pacientes. Por essa razão, adquirir amostra de tecido adequada para a análise microscópica em estrita correlação clinicopatológica é fundamental para evitar erro de diagnóstico(2).
A excisão cirúrgica é o tratamento de escolha para o CC. Recomenda-se uma excisão local ampla com margem cirúrgica livre > 5 mm(22). Mesmo assim, há relato de uma recorrência de CC mandibular com bom prognóstico depois da segunda excisão(16). Apesar de sua agressividade local, metástases regionais e a distância são muito raras, e o prognóstico global é bom(1,2,14,15). Em casos de invasão óssea, deve-se fazer uma maxilectomia subtotal ou mandibulectomia(1), como descrito em nosso caso. Até o presente, há só alguns relatos sobre quimioterapia e/ou radioterapia no tratamento do CC. Por causa do seu comportamento agressivo local, o benefício de radioterapia e/ou quimioterapia é controverso. O papel da radioterapia, que alguns alegam poder provocar uma transformação anaplásica, ainda está sujeito a debate(1,2).
Em síntese, apesar de vários casos relatados, o CC oral é muitas vezes diagnosticado incorretamente, sobretudo nos estádios iniciais, e isso ocorreu em cerca de um terço dos casos. O CC oral acomete com frequência a gengiva mandibular, apresenta discreta predileção pelo sexo feminino, com média de idade de 67 anos, sendo sua apresentação clínica altamente variável, em geral simulando um processo reativo ou inflamatório. Logo, uma estrita correlação clinicopatológica é essencial para evitar erros diagnósticos. Deve-se distinguir o CC de outras variantes do CCE oral, particularmente o CV. A excisão cirúrgica permanece o tratamento de escolha para o CC oral.