versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.4 São Paulo out. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140132
O envelhecimento e a sobrevida dos seres variam entre as espécies vivas, animal ou vegetal, assim como dentro da mesma espécie. Esse processo é parcialmente determinado por características genéticas. Já são conhecidas mutações capazes de prolongar a vida de vermes, moscas e camundongos pelo retardo do processo de envelhecimento1. Como a maioria dos processos biológicos se conserva na evolução, admite-se que genes iguais ou semelhantes possam regular a sobrevida do homem.
Ao lado de fatores genotípicos, fatores ambientais, bem como o estilo de vida e eventuais doenças, também estão relacionados à longevidade.
Quais os limites no atendimento ao paciente geronte octogenário ou centenário? Os parâmetros dessa atuação devem ser guiados por várias vertentes: avaliação objetiva por meio de estudos de risco/benefício, custo/benefício, qualidade de vida e aspectos culturais, éticos, filosóficos e religiosos.
Em 1997, William Parmley, na página do presidente, no JACC2, perguntava "Estamos praticando cardiogeriatria?" e analisava que, por um lado, sim, pois atendemos, e muito, a essa população, e por outro lado, não, pois não estamos preparados para o atendimento ao paciente idoso. Dez anos depois, James T. Dove insiste que continuamos mal preparados para o "mister" e isso ocorre devido à falta de treinamento de nossos médicos3.
O aumento na longevidade obriga os médicos a se prepararem para o atendimento pelo novo modelo de paciente. O cardiologista, pela própria epidemiologia da doença cardiovascular, é o responsável lógico pela saúde do idoso. É marcante o aumento da prevalência de idosos cardiopatas nos prontos-socorros, ambulatórios e enfermarias de nossos hospitais, tanto que muitos serviços criaram ambulatórios específicos para atendimento em cardiogeriatria. Esses pacientes se apresentam, menos frequentemente, como cardiopatas isoladamente, mas como cardiopatas com doenças associadas.
O atendimento ao idoso deve ser feito de modo diferenciado e com competência, entretanto o que observamos, em geral, é que o clínico cardiologista está despreparado para essa função. É necessário, desde os bancos da graduação, que o aluno seja treinado para esse fim.
Em 3 de junho de 1992, um grupo de médicos reuniu-se na Santa Casa de São Paulo e criou o Grupo de Estudos Brasileiro em Cardiogeriatria, da Sociedade Brasileira de Cardiologia (Gebrac), elegendo na ocasião seu primeiro presidente, o Prof. Dr. Mauricio Wajgarten. O objetivo do grupo era divulgar e estimular o estudo dos assuntos da cardiologia no idoso.
Em 2002, proferimos conferência no Congresso da Sociedade Brasileira de Cardiologia, "Por que cardiogeriatria?", pela qual pontuávamos a necessidade da formação em cardiogeriatria, pois esse era o segmento populacional que crescia, e salientávamos que não se tratava de especialização, mas de diferenciação de um médico, capaz de entender e atuar nos diferentes aspectos da cardiopatia no idoso. Chamávamos a atenção para a necessidade de se transformar o grupo em departamento, fato que ocorreu na gestão da Prof.ª Dr.ª Claudia Gravina, em 2005, quando se constituiu o Departamento de Cardiogeriatria da Sociedade Brasileira de Cardiologia (Decage-SBC). Desde então estabeleceram-se no país grupos interessados no estudo da matéria, que oferecem cursos locais, encontros regionais e congressos nacionais, muitos em conjunto com as sociedades de geriatria, o que enriquece os debates.
Em 2002 e 2010, foram publicadas a primeira4 e a segunda5 diretrizes em cardiogeriatria, a última com participação de representantes do American College of Cardiology. Colegas do departamento participaram, ainda, da publicação de livros6 e tratados de geriatria e gerontologia7.
Em 2006, o Decage-SBC teve oportunidade, em conjunto com a Society of Geriatric Cardiology, de realizar uma jornada, durante o congresso do American College of Cardiology, cujas aulas foram de elevado nível e resultaram em publicação específica8,9. O fato se repetiu na atual gestão, no congresso do ACC 2014, especificamente para discussão das nossas diretrizes.
Estão entre os objetivos do Decage-SBC:
Formação de médicos e outros profissionais da saúde no atendimento ao idoso cardiopata;
Educação continuada;
Pesquisa e realização de estudos multicêntricos8;
Divulgação de tópicos em cardiogeriatria para profissionais de saúde e público leigo, como ocorrido no congresso Decage 2012 realizado em Gramado (RS).
Progressos tecnológicos e terapêuticos ocorridos nos últimos 20 anos permitiram o tratamento com sucesso das cardiopatias em adultos e, como consequência, ocorreu aumento expressivo da sobrevida. As mudanças ocorridas na história natural das doenças criam novas doenças ou, anos depois, o mal reaparece com nova roupagem, no doente já idoso.
A abordagem do idoso é geralmente baseada em evidências para a população adulta. Quando há estudos específicos com idosos, eles são selecionados, sendo excluídos aqueles com fragilidade ou grave comorbidade, o que reforça nossa distorcida visão do idoso cardiopata10.
O idoso deve ser avaliado pelo conceito sobre o qual temos insistido, da indivisibilidade da clínica médica. As especialidades são a demonstração de nosso limite de competência. Devido à profundidade e enormidade do conhecimento, somos incapazes de atender de modo integral a todas as áreas da medicina e instituímos a divisão do paciente em especialidades e subespecialidades, o que no idoso é indesejável. Não estamos, em geral, diante de um cardiopata de idade avançada, mas de um paciente com várias queixas, várias doenças, muitas vezes frágil e que apresenta, entre outras, uma cardiopatia.
O idoso apresenta três características, em maior ou menor intensidade, e que devem ser consideradas: fragilidade, incapacidade e comorbidade11.
A comunicação com o geronte é também peculiar, motivada por déficit de audição, visão, atenção, memória, compreensão e até de insuficiente proficiência literária12.
O idoso, em geral, recebe menos atenção à sua saúde, porém no nosso entender os benefícios dos progressos alcançados devem ser aplicados também nessa população. Apesar do maior risco dos procedimentos, também são maiores os benefícios. Devemos evitar o que definimos como iatrogenia de omissão13,14, quando deixamos de atuar onde os benefícios de determinado tratamento já foram demonstrados.
O atendimento ao idoso deve ser diferenciado e despojado de qualquer generalização, estereotipagem ou preconceito15. O médico deve ser treinado a ver o doente geronte não como um cardiopata, mas como um todo, com doenças associadas e limitações relacionadas ou não à cardiopatia16.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia fez publicar, em 2012, sua I Diretriz sobre processos e competências para a formação em cardiologia no Brasil17. O documento pontua as recomendações para a formação do cardiologista e para a aquisição do título de especialista. Ao referir-se aos assuntos específicos são citadas, entre outras, as doenças cardiovasculares no paciente idoso. Cabe, então, aos departamentos e grupos de estudos estabelecerem os conteúdos pedagógicos dos itens descritos na diretriz.
O treinamento para atendimento pleno do idoso deve contemplar, no nosso entender:
Avaliação geriátrica global, física, funcional e psicossocial, incluindo conhecimento sobre a dinâmica familiar do idoso;
Processo de envelhecimento e fisiologia do idoso;
Treinamento de trabalho e coordenação com equipe multiprofissional;
Discussão dos aspectos éticos e legais do idoso;
Discussão de morte com dignidade e respeito às escolhas do paciente (sobrevida e qualidade de vida);
Aspectos econômicos e institucionalização;
Farmacocinética e farmacodinâmica dos medicamentos no idoso, polifarmácia e interação medicamentosa;
Aspectos de nutrição aplicados no idoso;
Prevenção geral e específica cardiovascular;
Medicina baseada em evidência no idoso;
Treinamento em comunicação;
Evitar iatrogenia de omissão;
Ser um clínico nos moldes clássicos da medicina.
Os instrumentos de treinamento devem incluir:
Atendimento em ambulatório específico para idosos;
Leitos de enfermaria na clínica e cirurgia;
Interconsulta com outras áreas de atendimento a pacientes idosos;
Atendimento em pronto-socorro e UTI;
Seminários com especialistas (medicina legal, economistas, advogados etc.) nas diferentes áreas de atendimento;
Discussão de estudos com idosos;
Promoção de estudos com idosos.
Para trabalhar todos esses aspectos do paciente idoso, o cardiologista deve estar treinado e preparado18.
O envelhecimento é um contínuo processo de modificações que se estabelecem com o tempo, com progressão individual, dependente de múltiplos fatores. A medicina do geronte dependente desse processo é individual e obriga que o clínico esteja preparado para observar as consequências e vulnerabilidades do envelhecimento, com a perspectiva de que nosso paciente possa ultrapassar os cem anos com qualidade de vida.