versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.2 São Paulo fev. 2020 Epub 20-Mar-2020
https://doi.org/10.36660/abc.20190874
To get to know, to discover, to communicate.
François Arago
A frase do físico francês François Arago é uma das mais poderosas sínteses da atividade científica, que se inicia com a busca do conhecimento existente, se segue da descoberta de novas informações e culmina com a comunicação destas em ato contínuo. Este fluxo é fundamental para que o progresso científico alcance e transforme a sociedade. Deste modo, na área médica, as diretrizes são consideradas essenciais para organização e norteamento de condutas e de conhecimentos de forma estruturada e dentro de método preestabelecido. A elaboração de diretrizes atualizadas e consistentes é uma das tarefas mais importantes de uma sociedade de especialidade médica e envolve um esforço considerável de múltiplos especialistas no campo do conhecimento, revisores, diagramadores, entre outros. Além de tarefa laboriosa e complexa, a elaboração de recomendações tem contra si o fluxo ininterrupto de publicações que surgem todos os dias e que podem mudar o estado atual do conhecimento. Devemos destacar a amplitude, a atualidade e a extensa aplicabilidade dessa Diretriz de Cardiologia Nuclear1 elaborada em conjunto pela Área de Cardiologia Nuclear do Departamento de Ergometria, Exercício, Cardiologia Nuclear e Reabilitação Cardiovascular (DERC), pelo Departamento de Imagem Cardiovascular (DIC) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e pela Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN).
Em pouco mais de uma década, o manejo da doença arterial coronariana (DAC) crônica passou por uma modificação paradigmática em direção ao tratamento clínico otimizado que consistentemente reduz a progressão da aterosclerose e previne trombose e síndrome coronariana aguda.2 A revascularização miocárdica é indicada em casos agudos, naqueles de mais alto risco e em pacientes cujos sintomas sejam progressivos ou refratários ao tratamento medicamentoso.3,4 A Diretriz em Cardiologia Nuclear da SBC se une à Diretriz de Síndrome Coronariana Crônica, reforçando a importância dos métodos funcionais no diagnóstico da etiologia dos sintomas dos pacientes com suspeita de DAC, na identificação dos pacientes de maior risco, na tomada de decisão terapêutica e no acompanhamento da resposta ao tratamento.4 A dúvida se a revascularização miocárdica deva ser a estratégia inicial de manejo nos pacientes com DAC crônica e isquemia moderada a grave5 parece ter sido respondida com a apresentação do estudo ISCHEMIA, que não demonstrou benefício da revascularização de rotina, quando adicionada ao tratamento medicamentoso otimizado.6 Entretanto, destacamos o papel da revascularização com relação à melhora de sintomas e de qualidade de vida, o que reforça a importância da tomada de decisão compartilhada e individualizada nos pacientes que se mantêm sintomáticos a despeito do tratamento clínico otimizado. É importante ressaltar que diversas situações excluídas do estudo ISCHEMIA são contempladas em detalhes no texto da Diretriz de Cardiologia Nuclear1 São elas: pacientes com lesão de tronco de coronária, síndrome coronariana aguda recente, angioplastia nos últimos 12 meses, fração de ejeção < 35% e com sintomas progressivos ou instáveis.
É importante ressaltar que a Cardiologia Nuclear não se restringe apenas ao estudo da doença coronariana, mas passou por uma revolução nos últimos anos, com avanços nos equipamentos, softwares e traçadores que a tornam importante no manejo de diversas condições para as quais o cardiologista não dispunha anteriormente de ferramentas para atender suas necessidades. A Diretriz de Cardiologia Nuclear1 faz uma abordagem compreensiva e prática destas novas aplicações para o cardiologista. Na Figura 1 apresentamos algumas das novas aplicações em que a Cardiologia Nuclear tem importante significado prático.
Figura 1 Novas aplicações da medicina nuclear em Cardiologia em que o uso da técnica fornece informações diagnósticas, prognósticas ou guia a tomada de decisão terapêutica.
Entre as novas aplicações da Cardiologia Nuclear destacamos o uso da tomografia computadorizada por emissão de pósitrons (PET-CT) com 18-fluorodesoxiglicose (18F-FDG) e da cintilografia com leucócitos marcados. Estas foram as técnicas de medicina nuclear incluídas nos algoritmos e consensos internacionais de investigação de endocardite infecciosa em próteses valvares e na suspeita de infecção em dispositivos implantáveis como marca-passos e desfibriladores.7 A Diretriz de Cardiologia Nuclear da SBC aborda, com detalhes, as bases do uso destas técnicas na prática cardiológica moderna.
Outra importante nova recomendação de uso da PET-CT com 18F-FDG contemplada na diretriz é na sarcoidose cardíaca. Além de contribuição decisiva para o diagnóstico de sarcoidose cardíaca,8 a PET-CT é crucial para o acompanhamento da resposta ao tratamento, sendo recomendado o seu uso seriado para guiar a administração de imunossupressores e anti-inflamatórios.9
A Cardiologia Nuclear ganhou grande importância no diagnóstico de amiloidose cardíaca por depósitos de transtirretina. A positividade de uma cintilografia com traçadores ósseos, como o pirofosfato de 99m-tecnécio, na ausência da pesquisa de cadeias leves no sangue e urina, permite o diagnóstico de amiloidose cardíaca por transtirretina e se correlaciona com a biópsia cardíaca, podendo evitar a realização desta. Com o desenvolvimento de tratamentos que retardam o depósito da proteína transtirretina no coração e que reduzem a mortalidade e a morbidade, a cintilografia miocárdica com pirofosfato passou a ter relevância adicional.10,11
A utilização da cintilografia cardíaca com M-iodobenzilguianidina (123I-MIBG) tem como fundamento a oportunidade única de avaliar o componente autônomo simpático da inervação cardíaca. O comprometimento adrenérgico identificado com esta técnica permite detectar precocemente a cardiotoxicidade ligada ao tratamento do câncer, estratificar o risco de morte súbita em pacientes com insuficiência cardíaca12 e auxiliar no diagnóstico da síndrome de Tako-Tsubo.13
Um capítulo moderno e em evolução da Cardiologia Nuclear, abordado na Diretriz da SBC, é a avaliação da microcirculação. Dados do estudo Core 320 e do próprio estudo ISCHEMIA vieram confirmar que um número significativo de pacientes tem angina e isquemia, na ausência de obstruções coronarianas.14 A avaliação destes pacientes com técnicas de PET-CT permitiu identificar a presença de isquemia microvascular como a responsável pela maioria dos casos, o que implica prognóstico adverso e tratamento específico.15 A avaliação da reserva de fluxo por PET-CT é a técnica mais adequada para investigação destes casos, estando recomendada em diretrizes internacionais e na Diretriz da SBC. Com o rápido avanço de máquinas de alta performance com detectores sólidos de cádmio-zinco-telurido (CZT) e softwares aprimorados, as novas câmeras de tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) permitem imagens de alta qualidade e com baixa exposição à radiação. Trata-se de importante contribuição para avaliação destes casos, com estudos demonstrando a sua validação em comparação com equipamentos de PET-CT.16 O reconhecimento da angina microvascular reforça a importância das técnicas funcionais e de que uma avaliação da DAC centrada na anatomia da doença pode levar a subdiagnóstico nos casos de angina microvascular e a excesso de tratamento nos casos em que as lesões anatômicas não tenham significado funcional.
Uma última parte a se destacar é a interseção das diversas modalidades de imagem com equipamentos híbridos e softwares que permitem obtenção e análise de dados de Cardiologia Nuclear em concomitância com tomografia computadorizada ou ressonância magnética. A integração de informações de exames de diversas modalidades em equipamentos de SPECT-CT, PET-CT e PET-RM potencializa a quantidade e a qualidade de informações disponíveis para os cardiologistas tomarem decisões no manejo de pacientes. Mesmo a integração de informações de exames adquiridos em equipamentos separados pode aumentar o potencial de estratificação de risco e melhorar o manejo dos pacientes.17 Estudos em andamento irão permitir a melhor definição de quais grupos de pacientes irão se beneficiar de modo rotineiro destas estratégias.
Em conclusão, a Cardiologia avançou muito nos últimos anos e, no mesmo passo, a cardiologia nuclear. A nova Diretriz de Cardiologia Nuclear da SBC nos permite o conhecimento de descobertas e publicações mais significativas, de modo estruturado, em recomendações que impactam a prática da Cardiologia moderna.