versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.3 Rio de Janeiro maio/jun. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180016
A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é uma doença intrínseca do miocárdio caracterizada por hipertrofia cardíaca (espessura da parede ≥ 15 mm), não causada por sobrecarga de pressão (p.ex. hipertensão, estenose aórtica grave).1 A CMH é a cardiomiopatia primária genética mais comum, cuja prevalência está estimada em aproximadamente 1 para cada 500 adultos na população geral.2
Mais de 450 mutações foram identificadas em 20 genes responsáveis por diferentes fenótipos. Na maioria dos casos, a CMH está associada com mutações nos genes que codificam proteínas do sarcômero e exibe muitas expressões fenotípicas. Apresentamos um caso que combina todos os fenótipos.3
Uma mulher de 58 anos, hipertensa, foi admitida à unidade coronária por insuficiência cardíaca aguda. A paciente negou desconforto no peito, uso de drogas ilícitas ou doenças prévias. Percebeu dispneia progressiva, inchaço do abdômen e em ambas as pernas, além de ganho de peso. No exame físico, detectou-se edema bilateral, ascite, distensão da veia jugular, e ritmo de galope com 3 sons. O eletrocardiograma (ECG) mostrou ritmo sinusal, QRS com amplitude diminuída, e padrão de pseudo-infarto (Figura 1). O ecocardograma mostrou hipocinesia grave, com movimentação da parede lateral preservada, e aumento da espessura da parede e do ventrículo esquerdo (VE). Também foi detectada efusão pericárdica moderada. Foi administrado diurético de alça em infusão contínua. Testes de hormônios tireoideanos, ferro e proteínas de cadeia livre leve deram negativos. A angiografia coronária mostrou artérias coronárias normais.
Figura 1 O eletrocardiograma apresentou ritmo sinusal, QRS com amplitude diminuída, e padrão de pseudo-infarto.
A ressonância magnética cardíaca revelou espessura máxima da parede de 15 mm, massa ventricular esquerda de 262 g e índice de massa do VE de 178 g/m2, volume diastólico do VE de 194 mL, volume sistólico do VE de 167mL e fração de ejeção de 14%. Também foi marcante a presença de realce tardio transmural difuso com gadolinium (Figura 2A-F) (Figura 2 A-F)..
Figura 2 A ressonância magnética (RM) cardiovascular apresenta aumento do volume do ventrículo esquerdo e da espessura da parede em imagens de cine-RM adquiridas nos planos de 4 câmaras (A), eixo longo (2 câmaras), (C) e eixo curto medial. O realce tardio difuso e transmural com gadolinium é apresentado em D, E, e F, com segmentos basais preservados. (G) A biópsia endomiocárdica apresentou desorganização dos miócitos.
Diante do quadro de insuficiência cardíaca congestiva e da relação inversa da amplitude do ECG com a espessura da parede, suspeitou-se de cardiomiopatia restritiva (infiltrativa). O cateterismo cardíaco esquerdo mostrou pressão de enchimento aumentado e baixo débito cardíaco, e a biópsia endomiocárdica revelou fibrose difusa, sem alterações específicas. Como a paciente tornou-se resistente ao tratamento médico, foi submetida ao transplante cardíaco ortotópico. A paciente recuperou-se sem intercorrências e a biópsia do coração explantado foi positiva para CMH, com fibrose intersticial grave e focos extensos de desorganização dos miócitos, acometendo o VE (Figura 2.G).
A CMH é uma doença heterogênea em termos genéticos e fenotípicos. Por exemplo, a distribuição da hipertrofia pelo gene da troponina T na cardiomiopatia hipertrófica difere-se não só entre famílias como também dentro de uma mesma família.4
Informações acerca da correlação genotípica-fenotípica são escassas. Às vezes, a CMH apresenta um fenótipo "restritivo", caracterizado por enchimento restritivo e hipertrofia do VE mínima ou ausente, semelhante à cardiomiopatia restritiva idiopática.5
Um menor número de pacientes com CMH (5-10%) evoluirá para o estágio terminal da doença, que é caracterizado por dilatação do VE, redução na espessura da parede, e disfunção sistólica.6
Apesar da ausência de doença sistêmica, a presença de espessura da parede aumentada, baixa amplitude no ECG e disfunção diastólica grave é sugestiva de cardiomiopatia restritiva. O realce com gadolinium também foi característico de amiloidose cardíaca. Além disso, não havia história de doença cardíaca familiar. Apesar de a biópsia endomiocárdica haver descartado o diagnóstico de amiloidose cardíaca, também não confirmou o de CMH, provavelmente pelo fato de o ventrículo direito ter sido pouco afetado.
No presente caso, encontramos dimensões aumentadas do VE, função sistólica diminuída, hipertrofia ventricular e fisiologia restritiva, que caracterizam um fenótipo dilatado, restritivo, hipertrófico.
Sabe-se que muitas mutações genéticas podem estar presentes em um mesmo indivíduo, o que pode explicar a combinação de três características diferentes no presente caso.
Não existe relato de caso similar na literatura.
A limitação deste estudo deve-se a não realização de um teste genético, uma vez que esse ainda não está disponível em nossa instituição. Além do diagnóstico de CMH obtida por biópsia, seria de grande valor conhecer a mutação genética específica a fim de se esclarecer tal fenótipo "intrigante".