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Cardiomiopatia Tóxica Dilatada: Reconhecendo uma Doença Potencialmente Reversível

Cardiomiopatia Tóxica Dilatada: Reconhecendo uma Doença Potencialmente Reversível

Autores:

Inês Rangel,
Marta Amorim,
Alexandra Gonçalves,
Carla Sousa,
Paulo Bettencourt,
Maria Júlia Maciel

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782X

Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.4 São Paulo abr. 2014

https://doi.org/10.5935/abc.20140030

Introdução

O uso de drogas ilícitas aumentou nos últimos anos1. Com relação a este aumento, há uma crescente necessidade de reconhecer e tratar adequadamente os efeitos adversos associados ao consumo de tais drogas.

Estas substâncias podem induzir diversas complicações cardiovasculares (CV), sendo estas agudas ou crônicas1. Algumas delas são os eventos isquêmicos e arrítmicos, o desenvolvimento de cardiomiopatia dilatada (CMD) e a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo (DSVE).

Existem diversos tipos de drogas com diferentes propriedades farmacológicas e fisiopatológicas, e o sinergismo é descrito entre elas1. Dentre elas, a cocaína e a heroína se destacam.

A chave para uma intervenção de sucesso com relação a um destes efeitos adversos é o alto índice de suspeita e a intervenção precoce.

Relato do Caso

Descrevemos o caso de uma mulher portuguesa, com 46 anos de idade, viciada em heroína e cocaína (consumo intravenoso e fumo) desde os 23 anos de idade, uma portadora crônica dos vírus das hepatites B e C, com um histórico prévio de tuberculose pulmonar (tratada) e hábitos de utilização moderada de bebidas alcoólicas.

A paciente foi admitida no Departamento de Emergência (DE) com dispneia sob esforço com evolução de quatro meses e piora progressiva no último mês (dispneia sob esforço leve). Ela negou dor torácica, febre, calafrios ou quaisquer outros sintomas relacionados. Ela negou ter viajado recentemente para o exterior. A paciente apresentava taquicardia (115 batimentos por minuto) e hipertensão (168/90 mmHg). Na auscultação cardíaca, ela exibiu um murmúrio holossistólico, de grau II/VI, no nível do foco mitral, com irradiação axilar. Além disso, a paciente exibiu sinais de congestão pulmonar, hepatomegalia e edemas periféricos leves.

O raio-x torácico exibiu um índice cardiotorácico elevado, sinais de cefalização vascular, com hipotransparência no nível dos terços inferiores de ambos os campos pulmonares, compatíveis com congestão pulmonar. O eletrocardiograma revelou taquicardia do sinus e bloqueio do ramo esquerdo do feixe de His (BRE). Analiticamente, ela apresentava anemia normocrômica e normocítica (hemoglobina de 11,9 g/ dL), função renal e ionograma normais; elevação geral das enzimas hepáticas (AST 287 U/L, ALT 207 U/L, Gamma-GT de 109 U/L, bilirrubina total de 2,04 mg/dL, bilirrubina direta de 0,4 mg/dL) bem como dos níveis de BNP (3600 pg/ mL). Ela apresentava ausência de elevação significativa de necrose miocárdica ou marcadores biológicos inflamatórios. A angiografia por tomografia computadorizada excluiu sinais de tromboembolia pulmonar e exibiu a presença de efusão pleural bilateral e consolidação alveolar.

Para avaliação adiciona, a paciente foi submetida a uma ecocardiografia, a qual exibiu dilatação das câmaras cardíacas da esquerda (volume ventricular esquerdo [VE] diastólico final de 125 ml/m2; volume atrial máximo de 39 ml/m2), com DSVE global e grave (fração de ejeção [FE] de 11%), com assimetrias da contratilidade segmental e dois pequenos trombos apicais foram identificados (Figura 1). A leve disfunção do ventrículo direito também era evidente.

Figura 1 Ecocardiograma transtorácico na admissão, exibindo a presença de cardiomiopatia dilatada, com regurgitação mitral devido à coaptação insatisfatória dos folhetos das válvular (A) e trombo aderindo ao ápex (seta) (B). 

Dados tais achados, conduzimos o diagnóstico de insuficiência cardíaca descompensada (IC) em uma paciente com cardiomiopatia dilatada e disfunção ventricular, com provável etiologia tóxica.

Ela iniciou o tratamento farmacológico de HF (diuréticos da alça, β bloqueadores [BB] e inibidor da enzima conversora da angiotensina [IECA]), bem como anticoagulante, com evolução clínica favorável. Ela recebeu alta no quinto dia de hospitalização, e foi orientada a comparecer na consulta ambulatorial no hospital e ao Centro de Suporte para Viciados. Ela permaneceu na classe funcional da NYHA desde o primeiro mês após a alta. Após seis meses de abstinência total das drogas, sob tratamento otimizado para IC, ela estava completamente assintomática, com valores de BNP abaixo de 10 pg/mL. A reavaliação ecocardiográfica exibiu tamanho normal da câmara cardíaca e recuperação da função sistólica biventricular (volume diastólico final de VE 57 ml/m2; volume atrial máximo de 21 ml/m2; VE FE 62%), sem evidência de trombo no interior da cavidade. O hipocoagulante oral foi suspenso, mantendo-se a terapia com BB (carvedilol) e inibidor de IECA (lisinopril).

Discussão

Todos os tipos de drogas recreativas podem induzir importantes complicações CV e elas são também responsáveis pela alta morbidade e mortalidade.

Após os canabinoides, as drogas psicoestimulantes são as substâncias ilícitas mais consumidas. A intoxicação aguda por estas drogas é uma causa frequente da recorrência ao DE, especialmente por dor torácica, bem como são uma causa importante do óbito relacionado a drogas2.

Os psicoestimulantes e opioides estiveram relacionados a DSVE. Contudo, poucos relatos clínicos ilustraram o papel da abstinência na recuperação da insuficiência cardíaca e disfunção miocárdica, que podem ser alcançados em um curto período de tempo3,4. As principais manifestações cardiovasculares, secundárias ao abuso das drogas cocaína e heroína, serão revisadas aqui.

A toxicidade CV associada aos psicoestimulantes é bem descrita e é um fenômeno independente do padrão de consumo, dosagem ou via de administração.

Os efeitos CV do abuso de cocaína se originam essencialmente da ativação do sistema nervos simpático, contribuindo para a ocorrência de arritmias e eventos isquêmicos3,5.

Os eventos isquêmicos são indubitavelmente as complicações CV mais frequentes nos consumidores de estimulantes como a cocaína2. Há até uma relação temporal entre o consumo e o evento. Descobriu-se que dois terços dos infartos agudos do miocárdio (IAM) relacionados ao efeito da cocaína ocorrente dentro das primeiras três horas após o seu consumo6.

A isquemia pode resultar do consumo máximo de oxigênio elevado pelo miocárdio, bem como do fenômeno de vasoespasmo coronário, provavelmente em relação à ativação dos receptores α-adrenérgicos nos vasos coronários5. Além disso, a cocaína promove a trombogênese, através da formação de placa aterosclerótica e ativação e agregação de plaquetas3,7.

Mais raramente, o uso crônico da cocaína está associado ao desenvolvimento de CMD e DSVE, sendo esta última potencialmente reversível com uma descontinuação do consumo7. O mecanismo que causa a disfunção sistólica inclui os efeitos tóxicos diretos da cocaína, a presença de isquemia sustentada, o estado hiperadrenérgico persistente e mecanismos inflamatórios, incluindo as alterações da produção de citosina e indução de apoptose do miócito5.

Os opioides são outro tipo de drogas recreativas. A heroína é o opiáceo mais amplamente consumido. Elas atuam através do aumento da atividade parassimpática e diminuição da atividade simpática, que pode causar bradicardia e hipotensão1.

Assim como os psicoestimulantes, este tipo de drogas também esteve associado à ocorrência de diversos tipos de arritmias, eventos isquêmicos e DSVE potencialmente reversível1,3. Acredita-se que o mecanismo mais provável de isquemia miocárdica seja também o vasoespasmo.

Além disso, a intoxicação aguda por heroína pode causar edema pulmonar não cardiogênico devido ao rompimento da integridade da membrana alvéolo-capilar.

O tratamento indicado para a maioria dos pacientes internados sob o uso de drogas recreativas é o tratamento convencional, considerando suas complicações e medidas de suporte. Contudo, a conduta para a dor torácica em pacientes consumidores de cocaína ainda permanece uma controvérsia com relação ao uso de BB, já que poderia exacerbar o vasoespasmo coronário em uma fase mais séria da síndrome coronária aguda (SCA), pela inibição do efeito vasodilatador inerente ao estímulo dos receptores β2 adrenérgicos8. Embora não existam estudos suficientes sobre a melhor estratégia terapêutica neste contexto clínico, as recomendações atuais sugerem que os nitratos e bloqueadores do canal de cálcio sejam as drogas preferidas para o controle inicial da hipertensão arterial, vasoconstrição coronariana e taquicardia (verapamil). Em caso de resposta insuficiente a esta estratégia terapêutica, é razoável administrar um β bloqueador com efeito adicional de α-bloqueador (por exemplo, labetalol)9.

Conclusão

O consumo de drogas recreativas pode induzir uma ampla gama de manifestações cardiovasculares, causando muitas condições médicas graves, as quais incluem arritmias, eventos isquêmicos e DSVE.

O caso descrito ilustra significativamente a importância do reconhecimento da etiologia tóxica, especialmente para o abuso de drogas recreativas associada à cardiomiopatia dilatada, que quando adequadamente tratada e comprovada, é potencialmente reversível e pode ter um prognóstico favorável.

REFERÊNCIAS

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7. Schwartz BG, Rezkalla S, Kloner RA. Cardiovascular effects of cocaine. Circulation. 2010;122(24):2558-69.
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