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Cardiotime de Bioética Útil para a Gestão de Crise à Beira do Leito

Cardiotime de Bioética Útil para a Gestão de Crise à Beira do Leito

Autores:

Max Grinberg

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782X

Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.2 São Paulo ago. 2014

https://doi.org/10.5935/abc.20140115

Crise é o momento na progressão da doença em que fica evidente a tendência ou à melhora ou à piora. Crises que acontecem mais tardiamente têm melhor prognóstico.

Hipócrates (460-370 a.C.)

O médico, na boa-fé, assume responsabilidade civil e criminal ao fazer juízos éticos para os quais nem sempre está preparado.

Karen Williams Teel, pediatra que sugeriu colegiados para dividir responsabilidades, na década de 1970

Preâmbulo

Crise à beira do leito (CBL) é incidente com alta tensão na medicina. A antevisão dos rumos é difícil, e a probabilidade de agravamento no curto prazo é alta1 - 4.

Ligada ou não a erro profissional, representa habitualmente esperanças frustradas. Envolve profissional da saúde, paciente, familiar, instituição e sistema de saúde, em variadas combinações.

Em cardiologia, o simbolismo do coração, o pressuposto social de cardiopatia, os níveis preocupantes de morbimortalidade e a frequência da urgência e da emergência exercem influência "etiopatogênica". Entendimentos de desatenção à pessoa, de limitação técnica como negação de atendimento e de má prática em recomeços não pretendidos iluminam cenários formados pela fragmentação da condução do caso e pela dissintonia de comunicação5 , 6.

A Necessidade

A confiança na pessoa do cardiologista das gerações evitava a manifestação de críticas, todavia profundas mudanças sociais, culturais, econômicas e tecnológicas expõem o cardiologista atual ao juízo leigo que lhe foge ao controle. A avaliação do seu empenho pelos resultados pretendidos mas não assegurados sofre o efeito modelador das culturas - não exclusivamente a que vivemos - sobre a experiência da enfermidade. O modelo biocultural faz o portador de cardiopatia, em dado momento da sua vida e em dado nível de expectativa diagnóstica, terapêutica e prognóstica, representar-se em dimensão múltipla, que transpassa o modelo biomédico calcado em processos celulares7 e abrange funções físicas e ocupacionais, estado psicológico, interação social e sensação somática8.

A observação de "lógicas" entre paciente, familiar, fonte pagadora, instituição e sistema de saúde reforça que não bastam a integridade de caráter e o juramento de Hipócrates para que o cardiologista esteja imune a "colonizações de impasses" à beira do leito. É por isso que a boa comunicação, o respeito a preferências e a valores e o interesse pelo bem-estar alheio são promotores de "harmonia humana" na passagem do caso por organogramas atualizados de conduta técnico-científica.

É panorama onde a bioética apresenta-se como instrumento de resguardo a "antígenos" CBL. A pretensão é auxiliar no senso de alerta às (im)previsibilidades da natureza humana e da infraestrutura, no senso prático da pronta resposta e no senso crítico da conformidade com a ética, a moral e a legalidade jurídica.

O estetoscópio, símbolo do ser cardiologista, ganha, assim, uma parceira para a ausculta de qualquer ruído. Ele, nos focos tradicionais do tórax; a bioética, nos focos de apertos e de inversões de fluxos pela "circulação de sangue quente" no meio ambiente da beira do leito.

A Proposta

Nos Estados Unidos, 81% dos hospitais e 100% daqueles com pelo menos 400 leitos possuem consultorias éticas5. Muitas delas adotam já uma segunda edição (2011) do Core Competencies for Health Care Ethics Consultation elaborado pela American Society for Bioethics and Humanities.

Os cardiologistas precisam repercutir esse uso da bioética no Brasil. Hospitais brasileiros com serviços de cardiologia - particularmente aqueles com programas de treinamento para o jovem cardiologista - têm o compromisso moral de dar destaque resolutivo e educativo a uma gestão de CBL apoiada pela bioética, quer pelos percalços da insatisfação em si, quer pelos riscos da resposta mal estruturada.

O recurso humano não deve se restringir a um único consultor - seria insuficiente pela pluralidade da atuação em cardiologia. Um comitê é burocrático - comportamento avesso à formação de praticidade do cardiologista em geral.

Já uma equipe (time) é vantajosa3. Ela personifica a agilidade e estimula o entusiasmo e a criatividade. Cada membro conhece suas responsabilidades e reconhece as dos demais9.

O time trabalha de modo proativo ou reativo, com mais ou menos formalidade, até em uma pré-consulta apenas, mas sempre indissociado da conduta técnico-científica envolvida e partilhando responsabilidades10.

A identidade do time está na conjunção de liderança, assistência à situação, auxílio mútuo e comunicação. A força é gerada em padrões de conceitos e de métodos apoiados na bioética. Assim, identidade forte associa independência, proatividade, reatividade, solidariedade, neutralidade, não autoritarismo, imediatidade e resolubilidade.

É estimulante para o cardiologista dispor de um cardiotime de bioética para o assistir a identificar/processar/decidir sobre conflitos e dilemas quando se sentir em turbulência na complexidade do sistema de atenção à saúde e atenção a determinado paciente. Como exemplo, a situação que conjuga insuficiência cardíaca, idade avançada e (não) consentimento livre e esclarecido reúne os três temas mais apreciados por um time de consultoria ética, a saber: terminalidade da vida, (in)capacidade para tomar decisões e respeito à autonomia11.

Os membros devem se ver e ser vistos como parte da atenção ao conflito. É premissa da construção trifásica da reputação rumo à excelência9: retratar a cultura existente, o histórico de crises e os recursos; planejar estratégias e treinamento supervisionado; cuidar da mixagem de competências individuais, do aperfeiçoamento organizacional e do feedback ao resolutivo e ao preventivo com impacto em transformações da cultura local.

Desenvolvimento do Cardiotime de Bioética

Interdisciplinaridade

Diversas formações profissionais são bem-vindas: médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, ouvidor, fisioterapeuta, farmacêutico, advogado, filósofo, entre outros. Eles compartilham ou complementam-se em três competências:

1. De avaliação: compreende habilidades de identificação e análise da crise e busca por referenciais em artigos, diretrizes e normas.

2. Processual: abrange o manejo das facilidades organizacionais envolvendo o respeito à documentação e ao uso de rotinas de procedimentos, os agendamentos de encontros, os redirecionamentos e os acionamentos de consultores ad hoc.

3. Interpessoal: emprega comunicação empática, comunicação não violenta, faz fluir a comunicação entre as partes, coteja as visões morais e dá aceitabilidade aos valores éticos e legais.

O domínio da expertise anti-CBL tem sido alvo de discussão internacional12 , 13. A certificação por sociedade de especialidade ou por pós-graduação é atraente e deve ser projetada entre nós. Contudo, é campo que admite o modo informal do caso a caso com supervisão na eterna sala de aula sobre obrigações e deveres chamada beira do leito.

Pela troca interdisciplinar, os membros desenvolvem um formato de objetivos, papéis e métodos que é distinto do que cada um está acostumado na rotineira atuação profissional.

Disponibilidade de tempo e facilidade de acionamento

O CTB necessita estar disponível. Além de ser importante fator de aderência, a presteza do "presente!" evita ações e reações precipitadas, essencialmente emocionais, que prejudicam a resolubilidade, levam ao agravamento da crise, inclusive estimulam radicalizações e, ademais, comprometem nomes e imagens profissionais e institucionais - transitória ou permanentemente.

A oportunidade do acionamento, além da clássica natureza presencial, conta com as facilidades de contato pelas tecnologias da informação e da telecomunicação.

A sequência de acompanhamento é guiada pelo timing da utilidade. Há situações exigentes de resolução mais imediata (paciente Testemunha de Jeová em emergência cirúrgica numa dissecção de aorta) e há situações que requerem um processo mais demorado de análise e negociação (casos em que o cerne da questão é o diagnóstico diferencial difícil por atipias de manifestação).

Atributos pessoais

O poder e a influência dos membros devem se manter autorregulados. Seus valores não devem ser impositivos, e seus passos precisam ser claramente reconhecidos como guiados por combinação de tolerância (entendida como algo que se poderia impedir no campo da opinião), paciência (no sentido de tranquilidade e perseverança), compaixão, humildade e integridade14.

Suporte institucional

A contrapartida institucional ao comprometimento voluntário dos membros do CTB é o compromisso com o suporte de necessidades básicas, incluindo:

  • Independência de pressões desabonadoras da integridade.

  • Compensação de horários de trabalho.

  • Interação fluida com o coordenador.

  • Facilidades de acesso à literatura.

  • Auxílio à educação continuada.

Educação

A interação do CTB com os envolvidos em uma CBL, direta ou indiretamente, o registro das ocorrências e dos resultados obtidos e os perfis dos envolvidos abrangem corolários educativos e estímulo a pesquisas:

  • Reconhecimento do momento conveniente para acionar.

  • Prudência antes da consultoria.

  • Apreensão do racional processual.

  • Habituar-se aos passos costumeiros.

  • Domínio de técnicas para evitação.

  • Domínio de técnicas para se antecipar.

Estudos sobre consultas de natureza ética15 e a vivência brasileira nos conselhos de medicina indicam que o principal objetivo pedagógico referente aos dois últimos itens é a boa prática da comunicação oral e escrita.

Tornar a solicitação mais compreensível

Etapa pré-mobilização é o CTB certificar-se de que a questão encaminhada se enquadra no conceito de CBL16.

Não infrequentemente, os casos envolvem difícil diagnóstico diferencial do nível crítico do impasse e suscitam uma discussão preliminar esclarecedora sob distintos ângulos pelos quais são analisáveis falhas no diagnóstico, no tratamento, na prevenção e na comunicação.

Definir a relevância

As boas práticas em cardiologia dão respostas proporcionais à gravidade do quadro clínico. Da mesma forma, é prioridade do CTB o conflito em situação de evidente ameaça à vida do paciente.

Expandir a informação e preencher lacunas

O movimento é o de um bumerangue. O problema parte da beira do leito e a ela retorna como solução, idealmente. A eficiência do trajeto de ida e volta não pode deixar de contar com uma independente confirmação ou aquisição de sequências de informações relevantes.

Conciliar sistematização e brevidade

Recomendações breves tendem a ser mais aplicadas pelo staff cardiológico na assistência à urgência/emergência do portador de cardiopatia. Contudo, os membros do CTB não podem deixar de atender sistematizações anti-CBL validadas, nem sempre resultantes em imediatismo, muito embora procurem dar o ritmo de mais possível brevidade à resolução.

Integrar ética, moral e legalidade ao processo de consultoria

O CTB tem de acreditar que está atuando de modo imparcial por estrita obediência a leis, códigos e normas. É neutralidade que não admite julgamentos moralizantes nem conflitos de interesse, nem hesitações em reformular o curso da orientação e, muito menos, que sempre haverá uma resposta adequada.

Conclusão

A cardiologia no Brasil ampliou-se na prevenção primária e secundária. Mais conhecimentos dos eventos permitiram mais controle dos riscos em nossa população pluriétnica e multicultural. Ajustes de hábitos lideram recomendações preventivas. Não é diferente perante o potencial de insatisfações e de conflitos.

O CTB reforça o valor do hábito de combinar empatia, reflexão, profissionalismo e confiança17, a chamada competência narrativa, que eleva o nível da compreensão cognitiva, simbólica e afetiva da comunicação verbal e não verbal. A supervisão - individualidade a individualidade dos casos - inclui proposições conceituais e contribui para o aperfeiçoamento do "conhece-te e a ti mesmo e ao outro", o que dá sentido e valor ao estilo do cardiologista no meio ambiente à beira do leito. Em outras palavras, ajuda na construção da memória sobre os passos já vivenciados pelo cardiologista, é eficaz para a boa qualidade da "ecologia" à beira do leito, que reduz o risco de CBL17 , 18.

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