versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.1 São Paulo jul. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180136
O estudo de Stevens et al.,1 resulta de um projeto da Delloite Consultoria financiado pela Novartis com o objetivo de estimar a carga econômica que insuficiência cardíaca, infarto agudo do miocárdio, fibrilação atrial e hipertensão arterial sistêmica (HAS) impõem aos países da América Latina e apresentar os resultados de custo-efetividade da telemedicina e do contato telefônico estruturado como intervenções com potencial de amenizá-la.1 Seu foco nesta publicação é apresentar os resultados da avaliação considerando o cenário brasileiro.
Este estudo nos oferece a oportunidade de refletir sobre importantes questões relacionadas à qualidade, interpretação e aplicabilidade de estudos econômicos. Tais estudos têm ganhado cada vez mais relevância na incorporação/desincorporação de tecnologias, desenvolvimento de políticas de saúde e de programas de melhoria de qualidade assistencial. Além disso, são frequentemente utilizados em outros países como base de processos decisórios, embora isso ainda não seja uma rotina no Brasil.2
Várias diretrizes foram propostas nas últimas décadas a fim de aumentar a qualidade das publicações de estudos de avaliação econômica e a sua utilidade para o sistema de saúde. O Consolidated Health Economic Evaluation Reporting Standards (CHEERS)3 é uma coletânea dessas recomendações, recentemente atualizadas e publicadas no JAMA,2 as quais foram seguidas por Steven et al. apenas em parte.
As medidas utilizadas, por exemplo, foram retiradas de fontes não claramente relatadas pelos autores, que parecem ter desconsiderado outras comorbidades relacionadas, além da interposição das quatro condições em questão, tais como acidente vascular cerebral e insuficiência renal crônica, e a presença ou não de outras condições relevantes, tais como diabetes, apontada pelo NHS como uma das dez principais causas de disabilidade permanente e elevado consumo dos recursos da saúde na atualidade.4 Os níveis de gravidade e a heterogeneidade entre as regiões geográficas do país também parecem ter sido desconsiderados. A incidência de sequelas e a taxa de progressão dessas condições resultando em morbidade, óbitos e perda de qualidade de vida variam de acordo com a intensidade do tratamento ofertado e, portanto, diferem de região para região.5-7
Os resultados reportados do estudo na Venezuela8 e no México9 não foram citados ou discutidos pelos autores, apesar de as medidas de custo-utilidade obtidas serem idênticas ou muito próximas nos três países, sugerindo que, pelo menos em parte, os dados utilizados foram comuns às três avaliações.
O custeio com atenção primária parece ter sido inferido dos dados com despesas hospitalares, partindo-se da premissa de que os custos seriam iguais. Entretanto, em pelo menos uma revisão sistemática sobre a carga econômica da insuficiência cardíaca, as despesas hospitalares foram pelo menos três vezes maiores que as despesas ambulatoriais, incluindo os custos com procedimentos, exames e medicamentos.10
As estimativas de prevalência também parecem pouco acuradas. Segundo Picon et al.,11 a prevalência de HAS vem diminuindo cerca de 3,7% a cada década no Brasil. Na década de 90, a prevalência de HAS foi estimada em 32,9%, enquanto que de 2000 a 2010, ela foi estimada em 28,7%, o que resultaria em uma prevalência esperada entre 2010 e 2020 menor do que aquela observada nas décadas anteriores. Os autores partiram de uma prevalência de 31,2% sem explicitar exatamente qual foi a fonte utilizada para tal informação.
Na análise de custo-efetividade, as intervenções não foram claramente definidas, havendo, inclusive, discordância entre aquilo que o estudo afirma avaliar (“telemedicina”) e a tecnologia estudada pelo relatório do NHS na qual os autores dizem se basear (“telemonitoramento”).12 Especialmente para os estudos de custo-efetividade, dependendo da intervenção avaliada, os resultados podem variar diametralmente, mudando completamente as recomendações.
Além disso, os custos com sistema de saúde atribuíveis a essas quatro condições somaram 35 bilhões de reais em 2015, segundo os autores, o que representaria 1/3 do total do orçamento aprovado para a saúde pelo Congresso Nacional nesse mesmo ano,13 sugerindo que as estimativas apresentadas estão superestimadas.
Portanto, apesar da relevância do tema, o estudo de Stevens et al. não traz informações convincentes nem sobre a carga das doenças selecionadas nem sobre a razão de custo-efetividade da telemedicina ou do contato telefônico estruturado para a abordagem dessas condições. Ele tem limitações importantes que impedem que seus resultados sejam interpretados de forma clara e aplicados no cenário nacional de maneira abrangente.