versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.21 no.4 Rio de Janeiro 2017 Epub 12-Set-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0019
A incidência da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) causa preocupação mundial desde o aparecimento dos primeiros casos de aids diagnosticados no início dos anos de 1980. É caracterizada como uma pandemia, e se destaca pelas alterações que produz na vida do indivíduo, especialmente quando ocorre a evolução da infecção para a aids. Essa síndrome compromete o sistema imunológico, pode ocasionar infecções oportunistas e, como consequência, o óbito.1
Apesar das dificuldades existentes no enfrentamento da pandemia, avanços inegáveis ocorreram no conhecimento, tratamento e prevenção da infecção pelo HIV e aids. Como resultado das experiências exitosas, as políticas atuais se concentram nos desafios futuros, como atingir o controle e o fim da pandemia até 2030, o que gerará grandes benefícios para a saúde e economia global.2
Nesse contexto, destaca-se a meta 90-90-90 cuja finalidade é intensificar o tratamento em pessoas com o vírus da aids. Essa meta significa que, até 2020, 90% de todas as pessoas vivendo com HIV saberão que têm o vírus; 90% de todas as pessoas com infecção pelo HIV diagnosticada receberão terapia antirretroviral ininterruptamente; 90% de todas as pessoas que recebem o tratamento terão supressão viral.3
Um dos aspectos mais importantes para a efetivação dessa ação consiste no diagnóstico precoce da infecção pelo HIV, evidenciando a necessidade de ampliação da cobertura dos testes anti-HIV e a atuação contínua dos serviços de testagem.4 No Brasil, as práticas de testagem e aconselhamento assumem posição de destaque nos programas de prevenção, e os testes rápidos (TRs) são adotados para ampliação do acesso da população ao diagnóstico da infecção pelo HIV.5
Esses testes podem ser realizados com o objetivo de diagnóstico em diversas situações, entre elas a Estratégia Saúde da Família (ESF), que se apresenta como uma iniciativa do Ministério da Saúde para reorientar o modelo assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da atenção primária à saúde no Brasil.6 A política brasileira de controle do HIV/aids prioriza a ESF como coordenadora e operadora do cuidado e estimula o processo de descentralização do cuidado das pessoas vivendo com HIV/aids para esse nível de atenção, a fim de aumentar o acesso tanto à assistência quanto ao diagnóstico do vírus nas unidades de saúde da família (USFs).7
Essas unidades se caracterizam como a porta de entrada do indivíduo no sistema de saúde público e devem fornecer acolhimento, diagnóstico e tratamento precoces, além de encaminhamento do indivíduo à unidade de referência, quando necessário. Nas USFs, o teste deve ser ofertado de acordo com os princípios da universalidade e acessibilidade, e realizado com o consentimento do indivíduo.8
Embora a ESF seja orientada por equipes de saúde multiprofissionais, o enfermeiro se destaca como membro importante na consolidação da Estratégia como política de saúde, atuando como protagonista nas ações de planejamento, organização e operacionalização desse serviço.9 A realização do TR para o HIV no espaço da ESF constitui-se em uma oportunidade para o enfermeiro auxiliar o indivíduo no esclarecimento de dúvidas, na identificação e na diminuição de vulnerabilidades, bem como na desconstrução de ideias preconceituosas em torno do HIV/aids.10
Ressalta-se que a testagem rápida anti-HIV no âmbito da ESF é uma ação que contribui para a identificação do estado sorológico e início imediato do tratamento com antirretrovirais, contribuindo assim para que as pessoas vivendo com HIV/aids atinjam a carga viral indetectável, reduzindo o risco de transmissão do vírus entre a população.
Nesse sentido, a testagem rápida anti-HIV fortalece a estratégia do Tratamento como Prevenção do HIV/aids, considerada uma das diretrizes da política de saúde atual mais importantes para combater a epidemia no país.7 A análise da implementação do teste na ESF, na perspectiva de enfermeiros, é primordial para verificar se há um alinhamento entre o que foi planejado pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais e o que está sendo executado nos serviços de saúde, justificando a realização do presente estudo.
Assim, essa análise permite subsidiar discussões com vistas a eventuais intervenções e adaptações que aprimorem a realização da testagem rápida anti-HIV no âmbito da ESF, demonstrando a relevância desta investigação. Dessa forma, a pesquisa tem como objetivo analisar a implementação do TR para o HIV na ESF na perspectiva de enfermeiros.
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com abordagem qualitativa. O locus para o desenvolvimento da pesquisa foram as USFs pertencentes à zona rural e urbana de 12 municípios da 4ª Gerência Regional de Saúde do Estado da Paraíba, Nordeste do Brasil. Essa região abrange os seguintes municípios: Baraúna, Barra de Santa Rosa, Cubati, Cuité, Damião, Frei Martinho, Nova Floresta, Nova Palmeira, Pedra Lavrada, Picuí, Seridó e Sossego.11 Essa região foi escolhida para a realização da pesquisa pelo fato de ter sido pioneira na implementação do TR nas USFs no Estado da Paraíba.
Os participantes do estudo foram os enfermeiros das USFs. Para a definição da amostra, utilizou-se a estratégia da coleta completa,12 de forma que todos os enfermeiros que realizavam o TR para o diagnóstico do HIV na ESF nesses municípios estivessem integrados no estudo, totalizando 16 profissionais.
Os critérios de inclusão foram os seguintes: enfermeiros que estavam realizando o TR para o diagnóstico do HIV na ESF e atuavam nos municípios da 4ª Gerência Regional de Saúde da Paraíba. A amostra foi limitada pelo critério de exclusão: enfermeiros que estavam afastados do trabalho, por licença médica ou férias, no período em que se realizou a coleta de dados. Assim, foram entrevistados 13 profissionais de nove municípios.
A coleta de dados ocorreu no período de abril a junho de 2015, por meio de roteiro de entrevista semiestruturada, o qual possibilitou a obtenção dos dados gerais dos participantes, como sexo, idade, estado civil, tempo de atuação no serviço e tempo de realização do TR anti-HIV na ESF. As questões norteadoras voltaram-se para as facilidades e dificuldades vivenciadas por este profissional no desenvolvimento da testagem rápida, os aspectos estruturais do serviço (espaço físico para execução dos testes, local de armazenamento dos kits de testagem, disponibilidade de insumos de testagem) e a capacitação profissional para executar o TR anti-HIV. As entrevistas foram gravadas e transcritas.
Os dados foram analisados pelo método da cartografia simbólica de Boaventura de Sousa Santos, sendo construídos mapas (modos de imaginar e representar o espaço real) em forma de quadros a partir de mecanismos de escala, projeção e simbolização.13
A escala expressa o grau de pormenorização da representação e delimita o espaço social que está sendo analisado. Quanto maior a escala, mais elevado o grau de detalhes.13 Nesta pesquisa foi utilizada a escala grande, representada pelos municípios onde se localizam as USFs investigadas. Com relação à projeção, todos os mapas possuem um centro, um lugar a que é atribuída uma posição privilegiada e à volta do qual se dispersam os restantes espaços (periferia).13 Na simbolização, os símbolos foram representados pelas falas dos entrevistados.13
Na fase de construção da projeção da cartografia, utilizou-se a análise temática de Bardin, a qual identifica núcleos de sentido de uma comunicação por meio de uma análise de significados que verifica a significação da presença ou frequência desses núcleos para o objeto que está sendo analisado.14 Nesse sentido, a organização do conteúdo foi feita a partir da codificação dos dados; categorização dos dados; e interação dos núcleos temáticos.14
Assim, os elementos mencionados com maior frequência, ou seja, aqueles referidos por mais de 50% dos entrevistados, foram dispostos no centro do mapa13 em forma de categorias, a saber: insuficiência dos insumos de testagem rápida anti-HIV (100%), tempo insuficiente da capacitação (84,61%), rapidez no resultado do exame (100%), falta dos insumos para operacionalização do processo de testagem (100%), e sobrecarga de atividades (92,30%).
Já os elementos menos frequentes, ou seja, abaixo de 50%, foram distribuídos na periferia,13 quais sejam: espaço físico e local de armazenamento para o teste (38,46%), ausência da participação de outras categorias profissionais na capacitação (30,76%), fácil manuseio do teste (38,46%), diminuição da recusa pelo paciente em fazer o teste (23,07%), e revelação do diagnóstico positivo de HIV (38,46%).
Para assegurar o anonimato dos participantes, seus nomes foram substituídos pela letra E (entrevistado), seguida do número correspondente à sequência de realização das entrevistas (E1, E2... E13). Da mesma forma, os nomes dos municípios foram substituídos pela letra M (município) seguida de números arábicos escolhidos de forma aleatória (M1, M2... M9).
Este artigo consiste em um recorte de uma dissertação de mestrado, cujo desenvolvimento foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 39639314.7.0000.5537; Parecer nº 977.003.
Entre os sujeitos da pesquisa, encontram-se 12 profissionais do sexo feminino e um profissional do sexo masculino. A idade dos enfermeiros variou entre 26 e 55 anos de idade, o tempo de atuação no serviço, de 1 a 29 anos, e o tempo de realização do TR anti-HIV na ESF variou entre menos de 1 ano a 3 anos.
A análise das entrevistas possibilitou a construção de quatro mapas. Os núcleos de sentido que apareceram com maior frequência nas falas dos entrevistados foram projetados para o centro do mapa em forma de categorias, enquanto que os apontados com menor frequência, projetados para a periferia. As falas dos enfermeiros sobre a infraestrutura básica (espaço físico para execução dos testes, local de armazenamento dos kits de testagem, disponibilidade de insumos de testagem) envolvida na testagem rápida anti-HIV na ESF resultaram na construção do Mapa 1:
Mapa 1 Cartografia da infraestrutura básica para implementação do TR anti-HIV na ESF segundo os enfermeiros, Paraíba, 2015
Escala |
Simbolização (Vozes dos entrevistados) |
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M1 | Não tenho a sala para a realização do teste. Não tenho o local de armazenamento. Os insumos de testagem eu recebo somente de um laboratório de cada vez. É raro vir testes de diferentes laboratórios ao mesmo tempo. O correto seria isso. No momento eu trabalho só com um tipo de teste. Então, caso haja um resultado positivo, eu repito com o mesmo teste. Não tenho opção (E10). |
M2 | Não tenho problemas com a sala. Eu tenho privacidade. Fico na sala sozinha com o paciente. Os testes ficam armazenados na geladeira da farmácia. Na geladeira que ficam somente as insulinas. O grande problema na estrutura está na falta dos testes. Mandamos a planilha mensal para a gerência, mas há cinco meses eu estou sem receber nenhum teste (E8). |
Projeção | |
Centro | Periferia |
Insuficiência dos insumos de testagem rápida anti-HIV | Espaço físico e local de armazenamento para o teste |
Todos os profissionais entrevistados relataram ter recebido capacitação para a execução do TR anti-HIV em momentos presenciais. Entretanto, o Mapa 2 apresenta a qualidade dessa capacitação:
Mapa 2 Cartografia da capacitação recebida para execução do TR anti-HIV na ESF segundo os enfermeiros, Paraíba, 2015
Escala |
Simbolização (Vozes dos entrevistados) |
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M3 | Eu achei que a capacitação aconteceu em pouco tempo. Deveria ter sido mais tempo. Faltou abordar mais intensamente a parte do aconselhamento na capacitação. Em como abordar o paciente com um resultado do teste positivo e negativo. Faltou também a discussão do encaminhamento do paciente no caso de um resultado positivo. Não sei o fluxo que deve ser seguido, não sei para onde direcionar o paciente (E2). |
M4 | A capacitação foi satisfatória para domínio da testagem, da técnica propriamente dita. Mas na parte do aconselhamento ficou a desejar. Do meu município, só quem participou da capacitação fui eu. Deveria ter convocado também outros profissionais como a assistente social e a psicóloga para estar dando um suporte (E5). |
Projeção | |
Centro | Periferia |
Tempo insuficiente da capacitação | Ausência da participação de outras categorias profissionais na capacitação |
O tempo insuficiente da capacitação produz fragilidades na abordagem do paciente submetido ao teste. São aspectos que vão além da técnica, como o preparo do profissional no aconselhamento, especialmente voltado para um paciente com um resultado positivo, e no encaminhamento dele à unidade de referência. Destacam-se ainda a participação marcante de enfermeiros na capacitação e a ausência de outras categorias profissionais, mesmo a testagem se caracterizando como um procedimento multiprofissional.
Quanto às facilidades vivenciadas pelos enfermeiros na testagem anti-HIV no contexto da ESF, as falas dos profissionais entrevistados possibilitaram a construção do Mapa 3:
Mapa 3 Cartografia das facilidades vivenciadas pelos enfermeiros no desenvolvimento da testagem rápida para o HIV, Paraíba, 2015
Escala |
Simbolização (Vozes dos entrevistados) |
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M5 | Nem todo município disponibiliza um laboratório que realiza o exame de HIV. Nós, por exemplo, mandamos para outra cidade e existe uma demanda de outros municípios para essa cidade. Quando vai chegar o exame? A facilidade é essa: você identifica algo a tempo. Isso possibilita uma intervenção precoce. Esse é o objetivo do teste rápido. Senão não seria teste rápido (E6). |
M6 | A facilidade é que não há mais rejeição entre as pacientes. Quando eu ofereço, elas já me perguntam: que dia eu posso fazer? Então isso eu acho importante, porque eu tenho 22 anos de formada e eu nunca tinha visto isso. Hoje elas já não têm nenhuma resistência para fazer o teste (E11). |
M7 | A facilidade está associada ao manuseio do teste. É muito difícil você errar. A tecnologia é bem acessível (E9). |
Projeção | |
Centro | Periferia |
Rapidez no resultado do exame | Fácil manuseio do teste Diminuição da recusa pelo paciente em fazer o teste |
Além das facilidades, os enfermeiros vivenciam dificuldades na implementação do TR anti-HIV na ESF, conforme pode ser observado no Mapa 4:
Mapa 4 Cartografia das dificuldades vivenciadas pelos enfermeiros no desenvolvimento da testagem rápida para o HIV, Paraíba, 2015
Escala |
Simbolização (Vozes dos entrevistados) |
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M8 | A dificuldade consiste no fato de a enfermeira ser sozinha para realizar o teste. Há uma alta demanda para poucos profissionais. Além disso, a quantidade de testes é limitada. Não dá para contemplar um número maior de pacientes vulneráveis (E13). |
M9 | A dificuldade é o pouco tempo que temos por causa das outras atividades desenvolvidas na ESF. Por isso, aqui no município, fazemos somente em gestantes. Pediram para divulgar para a população em geral que na unidade tem o teste rápido, mas não divulgamos porque não temos tempo para fazer. É muita coisa, a demanda é muito grande. Além disso, a quantidade de testes é pouca (E4). |
M2 | A dificuldade que eu acho é dizer ao paciente que ele está com HIV. A maioria das pessoas acha que é o fim. Que não tem jeito (E8). |
Projeção | |
Centro | Periferia |
Falta dos insumos para operacionalização do processo de testagem Sobrecarga de atividades |
Revelação do diagnóstico positivo de HIV |
De acordo com o Mapa 4, vários fatores dificultam a implementação do TR anti-HIV no âmbito da ESF na região cartografada. Existem realidades onde o enfermeiro deixa de realizar o teste devido à sua falta, ou não consegue atender a demanda por causa da quantidade limitada de kits. Além disso, a sobrecarga de atividades é preocupante, na medida em que leva um enfermeiro a deixar de divulgar o TR anti-HIV para a população devido à falta de tempo, resultante da responsabilidade por outras ações desenvolvidas no contexto da ESF.
No que se refere aos aspectos estruturais, nem todos os municípios possuem um local próprio para guardar os testes, sendo armazenados em geladeiras não exclusivas, o que foge à recomendação legal, a qual propõe que os kits de TR para HIV devam ser armazenados em geladeiras próprias ou em sala com ar condicionado, respeitando as orientações dos fabricantes quanto à temperatura, que deve variar entre 2 °C e 30 °C.15 Esse cenário dificulta o monitoramento da temperatura de armazenamento do teste e pode comprometer a confiabilidade do exame, indicando que problemas estruturais podem interferir negativamente na realização do teste pelos profissionais.
Com relação à sala, não há necessidade de ser específica para a realização do exame, mas deve assegurar privacidade ao paciente durante a testagem. Assim, o local onde o cuidado é ofertado deve possuir instalações mínimas, a fim de proporcionar um ambiente confortável e possibilitar o bem-estar tanto do usuário como do profissional.16
Os enfermeiros entrevistados ressaltam que a falta de insumos de testagem interfere significativamente na operacionalização do serviço. Na cartografia, a insuficiência dos insumos de testagem rápida envolve dois aspectos, quais sejam: falta ou quantidade reduzida de testes, e ausência de kits de testagem de diferentes marcas recebidas simultaneamente. Esse quadro traz sérias implicações para o acesso oportuno ao diagnóstico do HIV das populações na ESF da região, uma vez que, diante de um resultado reagente, um único teste não é suficiente para fornecer o diagnóstico do vírus.7 Nessa situação, o teste se comporta como um exame de triagem, perdendo uma das suas principais vantagens: fornecer o diagnóstico do HIV quase que imediatamente, sem a necessidade de realização de sorologia.7
O teste em quantidade reduzida dificulta o acesso das populações ao exame. Atualmente, há um crescimento do número de casos de HIV entre heterossexuais, mulheres e população de baixa renda. Contudo, existem altas taxas de prevalência da doença entre os grupos sociais historicamente afetados pela epidemia, como homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas e profissionais do sexo,17 apontando para a necessidade de a ESF incorporar o acesso universal ao diagnóstico do HIV, além de assegurar a equidade na assistência às populações mais vulneráveis. A oferta de TR para o HIV em serviços de base comunitária contribui para aumentar a detecção precoce do vírus, especialmente nessas populações, as quais enfrentam maiores barreiras no acesso à atenção à saúde.18
Nesse sentido, ressalta-se a importância de a gestão estar presente no processo da implementação do teste anti-HIV na ESF no que diz respeito ao estabelecimento de uma infraestrutura adequada, com a finalidade de acolher todos que procuram o serviço, levando em consideração a privacidade, a ética, o respeito às diferentes demandas trazidas pelos usuários. As vantagens proporcionadas pelo TR requerem uma estrutura mínima que disponha de local de armazenamento apropriado, de kits de diferentes marcas e em quantidade suficiente, com vistas a assegurar maior resolutividade no serviço.
As falas dos entrevistados ressaltam também os problemas relacionados à capacitação recebida para execução da testagem rápida anti-HIV. Pode-se perceber que o tempo da capacitação não foi suficiente para deixar o profissional preparado para lidar com as outras etapas envolvidas no processo de testagem, como o aconselhamento e o encaminhamento do paciente com um resultado positivo para o HIV.
Em geral, o preparo específico para atender os usuários com HIV está restrito aos centros especializados.19 Essa situação leva à descontinuidade da assistência para as pessoas com o vírus e à falta de preparo dos profissionais no tocante ao estigma, ainda associado à infecção, quando são atendidas em outros serviços do SUS.20 Um estudo5 evidenciou que os profissionais de saúde possuem dificuldade para lidar com a subjetividade do processo saúde/doença e assumir uma prática reflexiva junto ao paciente. Diante dessa situação, por vezes, eles transferem a responsabilidade de informar o diagnóstico de HIV para o profissional de psicologia.20
Assim, faz-se necessário, ao invés de capacitações pontuais, uma política de educação permanente no serviço de saúde que aborde, além dos procedimentos técnicos da testagem, os aspectos psicológicos, emocionais, sociais, os quais permeiam o HIV/aids. Esse modelo de educação busca construir ações crítico-reflexivas e participativas nos processos de ensino-aprendizagem.21 Também possibilita a reestruturação dos conhecimentos do trabalhador a partir da problematização e de demandas internas de suas práticas laborais.21
Além disso, destaca-se a importância da participação de outras categorias profissionais na capacitação para executar o TR anti-HIV a fim de contribuir para uma efetiva implementação do teste no serviço por meio do trabalho em equipe. Estudo realizado em uma Unidade Básica de Saúde localizada no Rio de Janeiro mostrou que o trabalho em equipe no contexto da ESF possibilita uma prática mais comunicativa e colaborativa, na qual os diferentes profissionais valorizam o trabalho um do outro e compartilham objetivos comuns.22
No que se refere às facilidades na implementação do TR anti-HIV na ESF, a redução do tempo de espera pelo resultado do TR anti-HIV representa um avanço importante no combate à epidemia do HIV/aids,23 uma vez que a falta de agilidade na entrega dos resultados de testes com metodologias convencionais é frequente em vários territórios brasileiros. No Rio de Janeiro, o tempo de entrega do resultado para os testes realizados pelo método laboratorial variou entre 7 e 40 dias, já, com os TRs, o tempo de espera foi de 15 minutos.24
Assim, o TR para o HIV trouxe alterações significativas na gestão do tempo, das incertezas e ansiedades provenientes de comportamentos de risco. Esse aspecto propiciou o acesso dos cidadãos ao conhecimento, quase imediato, do seu estado sorológico, tratamento medicamentoso em tempo oportuno e melhora do seguimento dos indivíduos soropositivos, o que acarretou em impactos positivos na luta contra a infecção pelo HIV/aids.23
Em abrigos de mulheres vítimas de violência doméstica nos Estados Unidos da América (EUA), o resultado do teste fornecido poucos minutos depois de sua realização foi atrativo para essas mulheres e a espera por várias semanas para obter o resultado consistiu em um fator gerador de estresse entre essa população.18 O acesso ao diagnóstico precoce melhora as expectativas de sobrevivência do indivíduo soropositivo, e a testagem tardia, na maioria das vezes, resulta em perdas de oportunidades para prevenir comorbidades, as quais culminam na morte do paciente.25
Uma pesquisa desenvolvida nos EUA mostrou altas taxas de mortalidade nos adultos com 50 anos de idade ou mais, sendo a maior parte associada ao diagnóstico tardio.26 Além disso, constatou-se ainda a importância das ações de testagem de forma ampla para toda a população como uma forma eficaz para promover a detecção precoce do HIV/aids.26 Entre as estratégias consideradas para assegurar a identificação oportuna dos pacientes soropositivos está a oferta e realização do teste de HIV na rotina de todos os serviços de saúde, incluindo a atenção primária à saúde.27
O espaço da ESF favorece a diminuição da recusa pelo paciente em submeter-se ao teste, identificada na região pesquisada. A ESF, como uma forma de reorganizar o modelo assistencial de saúde, traz um novo modo de agir à medida que sinaliza para uma abordagem de intervenção social, não mais focada no saber médico-curativista, mas centrada na educação, promoção e proteção da saúde.28
Outra facilidade na testagem anti-HIV apontada pelos enfermeiros da região cartografada foi o fato de o TR apresentar simplicidade no seu manuseio. O método simples e fácil de usar se constitui em um dos aspectos que o caracterizam como uma boa alternativa para o diagnóstico do HIV, pois os testes laboratoriais convencionais são operacionalmente complexos, requerem profissionais especializados e infraestrutura laboratorial apropriada.23 Por sua vez, os TRs anti-HIV não necessitam de estrutura laboratorial ou profissional especializado para a sua execução, nem de coleta e transporte especializados, o que facilita o acesso do indivíduo ao exame.23
Entretanto, a quantidade limitada de testes, apontada como uma dificuldade vivenciada pelo enfermeiro da região pesquisada, leva muitos profissionais ao não atendimento da demanda espontânea e à priorização de determinados grupos, como as gestantes. O diagnóstico do HIV durante a gestação consiste em uma das estratégias do Ministério da Saúde para redução da transmissão vertical, uma vez que possibilita a realização de intervenções nessa fase e também no parto.10 Contudo, outros grupos populacionais são excluídos por falta de testes nas USFs da região pesquisada.
As falas também projetam para o centro a sobrecarga de atividades vivenciada na USF. Nesse serviço de saúde, a prática do enfermeiro é planejada de acordo com as ações pré-estabelecidas pelo Ministério da Saúde na área de saúde da criança, saúde da mulher, controle da hipertensão arterial e do diabetes mellitus, controle da tuberculose, entre outras.29
Também são executadas atividades de trabalho burocrático de coordenação e de gerência do serviço, as reuniões na Secretaria de Saúde, as capacitações para os agentes comunitários de saúde e auxiliares de enfermagem.30 Nesse sentido, a flexibilização do processo de trabalho da ESF para incorporação de outras demandas que extrapolem as prioridades delimitadas nacionalmente ainda é um desafio.31
A inserção do TR na rotina da ESF implica em uma reorganização do processo de trabalho da equipe e do serviço como um todo, uma vez que essa prática requer uma atenção para o tempo de atendimento, reformulações de fluxo da demanda, de funções e de oferta de atividades no serviço. Vale ressaltar, também, que a realização do TR anti-HIV na região pesquisada ocorre de forma ínfima, considerando que a região possui 12 municípios e apenas 13 enfermeiros realizavam o TR, o que compromete a efetividade da descentralização da testagem na localidade.
Na região pesquisada, a comunicação de um resultado positivo de HIV ao paciente constitui-se em fator que traz dificuldade no processo de implementação do TR na ESF. Apesar de todos os avanços para o enfrentamento da epidemia, as pessoas acometidas pela aids vivenciam uma realidade complexa, porque a doença ainda é vista pela população como morte, causando medo, estigma, discriminação e, em muitos países, marginalização.32
Comportamentos de negação são observados frequentemente em pessoas com HIV/aids, como reflexos do medo de revelar para a sociedade a condição de ser soropositivo. Esse quadro está associado às representações de doença contagiosa e letal que foram construídas no início da epidemia e perduram ainda hoje.33
Dessa forma, o resultado de um TR positivo para HIV produz repercussões significativas na vida das pessoas e produz demandas específicas de atenção à saúde. A revelação do diagnóstico requer profissionais capacitados para o aconselhamento, ajudando a pessoa soropositiva a encontrar meios para enfrentar o diagnóstico.34
Este estudo apresenta como limitação o fato de ter sido desenvolvido somente com enfermeiros. Nesse sentido, faz-se mister aprofundar os achados encontrados, desenvolvendo futuros estudos que considerem tanto a perspectiva dos usuários quanto a dos gestores, uma vez que foram encontradas importantes dificuldades estruturais no processo de implementação do teste anti-HIV na ESF.
Este estudo analisou a implementação do TR anti-HIV na ESF na quarta região de saúde da Paraíba. Os problemas relacionados à disponibilidade dos insumos de testagem na região são barreiras para o acesso das populações ao teste nas USFs. Assim, fazem-se necessários o planejamento e a atuação conjunta do Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais para fornecimento constante e em quantidade suficiente de kits de exames para esses serviços, a fim de evitar a exclusão de determinados grupos populacionais no que se refere à realização do TR anti-HIV gerada pela falta de insumos.
Verificou-se a necessidade de ampliação da oferta do teste para a população não gestante, de modo a favorecer, por meio de ações locais, a resposta global contra a epidemia do HIV/aids. Isso requer, além de um fornecimento adequado de kits de testagem, uma expansão da capacitação para outros membros da equipe (técnico de enfermagem, médico, odontólogo) por meio da implantação de uma política de educação permanente nas USFs e da organização do trabalho em equipe, proporcionando o diagnóstico do HIV no primeiro contato com o usuário.
Além disso, os agentes comunitários de saúde podem, por meio da busca ativa, participar na divulgação e captação de outros usuários para a realização do teste. A abordagem ao usuário soropositivo pode ser melhorada por meio da implantação e apoio do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), da articulação com a rede de serviços especializados, integrados em um trabalho multidisciplinar centrado no usuário.
Por meio desta pesquisa, foi possível reconhecer potencialidades e fragilidades na implementação do TR anti-HIV na ESF, fornecendo subsídios para estimular revisões e correções desse processo, a fim de melhorar a prática do enfermeiro nesse campo de atuação e promover uma efetiva realização e ampliação do TR anti-HIV na atenção primária à saúde.