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Caso 1/2016 - Homem de 56 Anos de Idade, Portador de Comunicação Interatrial e Hipertensão Arterial Pulmonar, Internado por Síndrome de Eisenmenger

Caso 1/2016 - Homem de 56 Anos de Idade, Portador de Comunicação Interatrial e Hipertensão Arterial Pulmonar, Internado por Síndrome de Eisenmenger

Autores:

Carolina Santana,
Antonio Augusto B. Lopes,
Antonio Fernando Lins de Paiva,
Luiz Alberto Benvenuti

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.106 no.3 São Paulo mar. 2016

https://doi.org/10.5935/abc.20160035

Homem de 56 anos de idade, natural e procedente de São Paulo capital, portador de comunicação interatrial (CIA) e hipertensão arterial pulmonar, foi internado por dispneia, hipoxemia e edema de membros inferiores.

O paciente foi atendido pela primeira vez no Hospital do Coração em setembro de 1996, após dois meses de cansaço aos esforços grandes e diagnóstico de aumento de área cardíaca em radiografia de tórax.

O exame físico (11 set 1996) revelou frequência cardíaca de 80 bpm, pressão arterial de 120/80 mmHg, semiologia pulmonar normal, semiologia cardíaca com desdobramento fixo e amplo de segunda bulha, além de sopro sistólico +/4+ em bordo esternal esquerdo.

Foi feito o diagnóstico de CIA com hipertensão arterial pulmonar.

O eletrocardiograma (ECG) de 1996 revelou sobrecarga ventricular direita (Figura 1).

Figura 1 ECG (1996). Ritmo sinusal, sobrecarga ventricular direita 

A radiografia revelou abaulamento da pulmonar, diminuição da circulação pulmonar e cardiomegalia (+/4+).

O ecocardiograma (dez 1996) revelou: espessura de septo e parede posterior, 8 mm; diâmetros de ventrículo esquerdo (VE) (diastólico/sistólico), 50/30 mm; diâmetros de aorta, átrio esquerdo e ventrículo direito (VD), 35 mm, 40 mm e 54 mm, respectivamente. A motilidade segmentar do VE era normal e o VD hipocinético. As valvas eram normais e a pressão de artéria pulmonar foi estimada em 84 mmHg.

A cintilografia de perfusão e inalação pulmonar (1997) foi interpretada como baixa probabilidade de tromboembolismo pulmonar e compatível com hipertensão pulmonar.

O cateterismo cardíaco (22 jul 1997) revelou: CIA; hipertensão arterial pulmonar; coronárias sem lesões obstrutivas; discreta compressão do tronco da coronária esquerda pelo tronco da artéria pulmonar; VE hipertrofiado e com hipocinesia difusa moderada. As pressões e oximetria são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1 Manometria e oximetria em cateterismo cardíaco 

Manometria (mmHg) Oximetria (sat%)
Sist Diast 1 Diast 2 Média
AD 6 77,6
VD 80 0 5 76,1
TP 80 32 50 76,1
AE 5 93
VE 125 0 10 93
Ao 125 80 95 93,4

AD: átrio direito; VD: ventrículo direito; TP: tronco pulmonar; AE: átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo; Ao: aorta; Sist: sistólica; Diast: diastólica.

A hipertensão pulmonar foi considerada desproporcional ao efeito do shunt esquerda-direita, não sendo indicada a correção do defeito do septo interatrial.

Foram prescritos varfarina, digoxina, furosemida e captopril.

Outros achados laboratoriais: hemoglobina, 19,3 g/dl; hematócrito, 56%; plaquetas, 176.000/mm3; e leucócitos, 8.000/mm3.

O paciente evoluiu estável com dispneia aos grandes esforços até 2006, quando tinha 49 anos de idade.

As reavaliações laboratoriais de dez 2005 revelaram: hemoglobina, 21,6 g/dl; hematócrito, 66%; plaquetas, 146.000/mm3; INR, 1,9; colesterol total, 136 mg/dl; HDL, 45 mg/dl; LDL, 77 mg/dl; triglicérides, 68 mg/dl; glicose, 82 mg/dl; creatinina, 1 mg/dl; potássio, 4,4 mEq/l; sódio, 143 mEq/l; dímero D < 25 ng/ml.

A tomografia de tórax revelou sinais de enfisema pulmonar e ausência de sinais de tromboembolismo pulmonar, sendo sugestiva de hipertensão arterial pulmonar.

A prova de função pulmonar (29 dez 2005) revelou: FVC= 2,77 L (94%); FEV1= 3,09 L (66%); FEF 25%-75%= 3,32 (32). Após broncodilatador: FVC= 3,81 L (101%); FEV1= 2,3 L (74%); FEF 25%-75%= 1,25 (38%). Tal resultado é compatível com leve grau obstrutivo (FEV1) e redução acentuada da porção intermediária da respiração, FEF 25%-75%, compatível com obstrução de pequenas vias aéreas.

Em junho de 2006, apresentou piora da dispneia e da dor torácica, considerando-se a hipótese diagnóstica de tromboembolismo pulmonar.

A angiotomografia pulmonar (30 jun 2006) revelou sinais de falha de enchimento no ramo lobar inferior da artéria pulmonar esquerda, com falha de enchimento em ramo segmentar superior à esquerda e calcificações parietais; área de perfusão em mosaico nessa região; moderado derrame pleural à esquerda e cardiomegalia. As medidas obtidas foram: tronco da artéria pulmonar, 47,9 mm; ramo da artéria pulmonar direita, 41 mm; ramo da artéria pulmonar esquerda, 36,2 mm.

Um ano após esse episódio, procurou atendimento médico por dor em hemitórax esquerdo e tosse. Foi reavaliado com nova tomografia que revelou presença de grande trombo no tronco da artéria pulmonar, estendendo-se ao ramo esquerdo e interlobar descendente, excêntrico, com calcificações marginais. Observaram-se ainda trombo menor, marginal, distal na artéria pulmonar direita, opacidades heterogêneas e espessamento septal difuso na base do pulmão esquerdo e derrame pleural à esquerda. A relação diâmetro do VD/diâmetro do VE foi aproximadamente 1. As medidas foram: tronco da artéria pulmonar, 38,9 mm; artéria pulmonar direita, 42,4 mm; artéria pulmonar esquerda, 37,4 mm.

Foram feitos os diagnósticos de tromboembolismo pulmonar crônico e pneumonia. Levofloxacina foi prescrita.

O ecocardiograma (12 jul 2007) revelou disfunção sistólica biventricular acentuada, VD com dilatação acentuada e auto-contraste preenchendo toda a cavidade. Não foram visibilizados trombos, e a via de saída do VD era dilatada. Havia dilatação de tronco e ramos pulmonares de grau acentuado e imagem ecodensa filamentosa em tronco pulmonar sugestiva de trombo. O VE mostrava hipocinesia difusa, sendo visibilizadas a emergência da coronária esquerda e a sua bifurcação aparentemente sem sinais de compressão. Observaram-se, ainda, acentuada dilatação dos átrios, regurgitação tricúspide de grau moderado (poderia estar subestimada pela disfunção do VD), regurgitação mitral moderada e derrame pleural bilateral.

Dois meses depois (set 2007), procurou a emergência do InCor com quadro de dispneia de repouso, taquicardia, hepatomegalia, ascite e edema de membros inferiores. O ECG revelou taquicardia atrial. Foi feito o diagnóstico de insuficiência cardíaca congestiva, sendo necessário o uso de dobutamina intravenosa e a administração de furosemida endovenosa, com compensação do quadro. Foram acrescentadas espironolactona e amiodarona às medicações em uso.

Novo cateterismo cardíaco (set 2007) revelou: pressões de artéria pulmonar, 80/32 mmHg (média, 50 mmHg); coronárias sem lesões; e VE com hipocinesia difusa de grau moderado a acentuado.

Recebeu alta hospitalar com prescrição de furosemida (60 mg/dia), espironolactona (25 mg/dia), hidroclorotiazida (25 mg/dia), amiodarona (200 mg/dia), varfarina (2,5 mg), clopidogrel (75 mg/dia), omeprazol (40 mg/dia) e restrição hídrica de 1800 ml/dia.

No mês seguinte (out 2007), foi novamente internado por descompensação cardíaca, sendo detectado hipotireoidismo.

Uma nova avaliação ecocardiográfica (out 2007) revelou dilatação de câmaras direitas, CIA de 35 mm, regurgitação tricúspide de moderada a intensa, pressão sistólica de VD de 66 mmHg e dilatação de artérias pulmonares.

A ultrassonografia de abdome (10 out 2007) revelou hepatomegalia com esteatose leve. Após esse período, sildenafila (40 mg, 3x/dia) foi introduzida e o paciente evolui com cansaço aos esforços maiores.

O exame físico (jul 2011) revelou paciente em bom estado geral, corado, hidratado, cianótico (3+/4+), anictérico, afebril, eupneico. A saturação era de 80% em ar ambiente, a frequência cardíaca, de 76 bpm, a pressão arterial, de 120/80 mmHg e havia aumento do diâmetro anteroposterior do tórax. A ausculta pulmonar era normal e a ausculta cardíaca revelou hiperfonese de segunda bulha em área pulmonar, sem sopros. O abdome era normal e não havia edema.

O ECG (2011) mostrou ritmo sinusal com sobrecarga ventricular direita (Figura 2).

Figura 2 ECG (2011). Ritmo sinusal, sobrecarga ventricular direita. 

A angiotomografia de artérias pulmonares (maio 2011) revelou: dilatação do tronco da artéria pulmonar (43 mm) e ramos principais direito (37 mm) e esquerdo (36mm), inferindo-se hipertensão pulmonar. O tronco da pulmonar apresentava calcificações parietais. Havia falhas de enchimento do contraste circunferenciais, compatíveis com trombos murais, no ramo esquerdo do tronco da artéria pulmonar e artéria interlobar ipsilateral. Havia ainda falha de enchimento associada a afilamento acentuado das artérias do brônquio do lobo superior esquerdo e das artérias dos segmentos basais esquerdos, com exceção da artéria do segmento basal posterior, achados compatíveis com tromboembolismos pregressos (Figuras 3 e 4).

Figura 3 Angiotomografia. A. Coração: dilatação de ventrículo direito e grande comunicação interatrial (CIA); B. Artérias pulmonares: tronco pulmonar (TP), artéria pulmonar direita (APD) e artéria pulmonar esquerda (APE) dilatadas com trombos murais e calcificações. 

Figura 4 Angiotomografia do tórax. A. Corte sagital. Artéria pulmonar esquerda e ramo do lobo inferior esquerdo - extensos trombos murais e calcificações; B. Via de saída do ventrículo direito (VD) e tronco de pulmonar (TP) dilatado; presença de trombos murais em pulmonar. 

(Dr. Antonio Fernando Lins de Paiva, radiologista)

O novo ecocardiograma (set 2011) foi semelhante ao de 2007, exceto pelo tamanho da CIA, que mediu 24 mm. Havia redução discreta da fração de ejeção do VE (FEVE= 52%).

Foi acrescentada bosentana (125 mg, 2x/dia) e o paciente evoluiu em classe funcional II até final de 2012.

No início de 2013, houve piora da dispneia e episódio de dor em hemitórax esquerdo, tendo procurado hospital próximo ao seu domicilio, onde sofreu sangria, com melhora do quadro. O hematócrito era 67%.

O paciente foi admitido no pronto-socorro em 01 de junho de 2013, com piora da dispneia 2 dias antes da admissão até aos mínimos esforços. Associava os sintomas a quadro gripal. Referiu também aumento do volume abdominal, edema de membros inferiores, piora da cianose, diminuição do débito urinário e tosse com secreção esbranquiçada e coriza.

Ao exame, apresentava: saturação do sangue em ar ambiente, 68%; frequência cardíaca, 85 bpm; pressão arterial, 99/60 mmHg; cianose, 3+/4+; murmúrio vesicular diminuído difusamente, com estertores crepitantes em bases. A ausculta cardíaca revelou bulhas rítmicas hipofonéticas e desdobramento fixo da segunda bulha. O abdome apresentava sinais de ascite e fígado palpável a 3 cm do rebordo costal direito. Havia edema (2+/4+) de membros inferiores. Inicialmente, dobutamina foi administrada (5 mcg/kg/min), sendo reduzida para 3,3 mcg/kg/min no dia seguinte, por melhora do quadro hemodinâmico. Em virtude da história prévia de quadro gripal, oseltamivir foi administrado.

O ECG revelou bloqueio de ramo direito e sobrecarga ventricular direita (Figura 5).

Figura 5 ECG (2012). Bloqueio de ramo direito e sobrecarga ventricular direita. 

A radiografia de tórax (01 jun 2013) mostrou aumento de hilo, hipovascularização periférica de pulmões, abaulamento de pulmonar, aumento de área cardíaca (4+/4+) à custa de VD (Figura 6).

Figura 6 Radiografia de tórax PA (01 jun 2013) - aumento dos hilos pulmonares, diminuição da vascularização pulmonar periférica; cardiomegalia com desdobramento do arco médio esquerdo (aumento da artéria pulmonar). 

Os exames de laboratório (01 jun 2013) revelaram: gasimetria venosa: pH, 7,33; PCO2, 44,6 mmHg; pO2, 29,1 mmHg; saturação de oxigênio, 44,7%; bicarbonato, 22,8 mmol/l; excesso de base, (-) 3,3 mmol/l; sódio, 126 mEq/l; potássio, 3,8 mEq/l; lactato, 42 mg/dl; hemácias, 6,9 milhões/mm3; hemoglobina, 22 g/dl; hematócrito, 63%; leucócitos, 5020/mm3 (5% bastonetes, 60% segmentados, 29% linfócitos, 6% monócitos); plaquetas, 424.000/mm3; creatinina, 0,92 mg/dl; ureia, 34 mg/dl; magnésio, 1,40 mEq/l; proteína C reativa, 7,25 mg/l; TP (INR) 2,9; TTPA (rel) 1,49; dímero D, 536 ng/ml; fibrinogênio, 186 mg/dl.

O ecocardiograma (03 jun 2013) revelou: dilatação de VD, 60 mm; VE 59x46 mm; moderada redução da FEVE (44%); comunicação atrial de 35 mm, com fluxo da direita para a esquerda; regurgitação tricúspide acentuada; pressão sistólica de VD, 50 mmHg; regurgitação mitral acentuada; aumento acentuado do átrio direito e moderado do átrio esquerdo (realizado à beira do leito, paciente com cateter de O2 e recebendo dobutamina) (Figura 7).

Figura 7 Ecoardiograma transtorácico. Painel da esquerda mostrando corte paraesternal em eixo curto, onde se observa dilatação do tronco pulmonar (TP) e ramos direito e esquerdo (APD e APE). Painel da direita mostra corte paraesternal em eixo longo onde se nota dilatação do ventrículo direito (VD) e retificação do septo interventricular. Ao: aorta; VE: ventrículo esquerdo. 

No sexto dia de internação (06 jun 2013), apresentou piora da dispneia, acentuação da cianose e do edema e piora radiológica, sendo introduzidas ceftriaxona, claritromicina e furosemida intravenosas, além de aumento da dose de dobutamina.

Os exames de laboratório (06 jun 2013) revelaram: ureia, 20 mg/dl; creatinina, 0,83 mg/dl; sódio, 132 mEq/l; potássio, 4 mEq/l; lactato venoso, 20 mg/dl; TP (INR) 2,6; TTPA (rel) 1,32; dímero D, 434 ng/ml; hemoglobina, 20,1 g/dl; hematócrito, 63%; leucócitos, 4460/mm3 (70% neutrófilos, 1% eosinófilos, 1% basófilos, 15% linfócitos e 13% monócitos); plaquetas, 117.000/mm3; albumina, 3,1 g/dl; proteína C reativa, 49,07 mg/l.

A radiografia (06 jun 2013) revelou velamento do pulmão direito e dos 2/3 inferiores do pulmão esquerdo.

Na noite do dia seguinte (20h de 07 jun 2013), apresentou parada cardiorrespiratória em atividade elétrica sem pulso. Foi iniciada a ressuscitação cardiopulmonar e depois, intubação orotraqueal. À drenagem por punção de hemitórax direito, observou-se saída de ar. Não respondeu às manobras e faleceu.

Aspectos Clínicos

A CIA é a cardiopatia congênita mais comum no adulto. Caracteriza-se por uma comunicação entre os átrios, sendo classificada em quatro tipos (ostium primum, ostium secundum, seio venoso e defeito do seio coronariano). Apenas as comunicações do tipo ostium secundum são verdadeiros defeitos do septo atrial. As demais formas derivam de defeitos em outras estruturas, ocasionando a comunicação entre as cavidades atriais.

A CIA tipo ostium secundum é a mais comum, correspondendo a cerca de 80% dos casos, e ocorre pela excessiva reabsorção do septum primum ou crescimento deficiente do septum secundum.1

A apresentação clínica da CIA tem, em geral, aspecto insidioso. A comunicação entre os átrios causa shunt esquerda-direita desde o nascimento; porém, a maioria das crianças é assintomática. A malformação é detectada no exame físico pela presença de um sopro sistólico em borda esternal esquerda. Portanto, os sintomas geralmente se iniciam na adolescência ou no adulto jovem. Na quinta década de vida, cerca de 75% a 80% dos pacientes são sintomáticos.1

No caso clínico apresentado, temos um paciente já na quinta década de vida, com diagnóstico de CIA após aparecimento de sintomas de insuficiência cardíaca direita. O diagnóstico foi tardio com evidência de hipertensão pulmonar secundária a essa malformação congênita. Nessa fase, o paciente já apresentava shunt reverso direita-esquerda com contraindicação para correção da CIA.1

A indicação para correção cirúrgica de uma CIA é a presença de CIA significativa ou de sobrecarga ventricular direita associada, mesmo na ausência de sintomas. A avaliação de correção da comunicação deve ser criteriosa e cuidadosa, pois correções tardias podem acarretar sérias complicações.2

A correção inadvertida da comunicação pode piorar a hipertensão pulmonar, pois o fechamento do shunt direita-esquerda pode ocasionar aumento da pressão arterial pulmonar e piora da insuficiência cardíaca direita. Além disso, em casos mais avançados, em que já existe disfunção sistólica de VE associada, o fechamento da CIA aumenta a pressão do capilar pulmonar, com consequente edema pulmonar.2

Alguns parâmetros devem ser avaliados antes da indicação da correção da CIA. Dentre esses podemos citar: saturação de oxigênio normal em repouso ou aos esforços, shunt esquerda-direita na análise ecocardiográfica, pressão sistólica da artéria pulmonar inferior a 70 mmHg.2 Todos esses parâmetros estão ausentes no caso clínico apresentado.

Nosso paciente, com diagnóstico tardio e CIA complicada com hipertensão pulmonar, já apresentava contraindicação cirúrgica. A CIA não corrigida resultou em shunt reverso direita-esquerda e evoluiu para síndrome de Eisenmenger, estágio final de doença obstrutiva vascular pulmonar secundária a shunt esquerda-direita pré-existente.1

A síndrome de Eisenmenger está associada a diversas complicações, como arritmias, insuficiência cardíaca, trombose pulmonar e sistêmica e hemoptise. Associa-se ainda a disfunção renal, abscesso cerebral, gota e litíase biliar.3

No caso clínico em questão, o paciente, ao diagnóstico, já tinha insuficiência cardíaca direita e disfunção de VD. Com a evolução da doença, apresentou episódios recorrentes de trombose arterial pulmonar. A prevalência de trombose é aumentada nessa população devido à hipoxemia que resulta em policitemia secundária e, consequentemente, maior risco trombótico. Sugere-se que a chance de trombose arterial pulmonar aumente com a idade, provavelmente devido à evolução da disfunção endotelial ao longo do tempo.4 Assim, em paciente com baixo risco de sangramento, a anticoagulação deve ser discutida, mesmo antes da trombose manifesta.

O paciente foi medicado para insuficiência cardíaca e a anticoagulação oral foi iniciada mesmo antes da manifestação de trombose arterial pulmonar. Evoluiu estável por um período de 10 anos e, em seu seguimento, teve medicações otimizadas com introdução posterior de vasodilatadores pulmonares. Os vasodilatadores são ferramentas essenciais no tratamento da síndrome de Eisenmenger, com melhora de classe funcional, maior tolerância ao exercício e melhor desempenho no teste de caminhada de 6 minutos.5

Mesmo com tratamento medicamentoso adequado, o paciente evoluiu com piora clínica progressiva e morte por complicações da doença (evolução da insuficiência cardíaca e trombose arterial pulmonar).

Este caso ilustra a importância do diagnóstico precoce da CIA, para correção do defeito congênito em tempo adequado, antes de evolução para complicações.

(Dra. Carolina Santana e Prof. Antonio Augusto Lopes)

Hipótese diagnóstica: hipertensão pulmonar em estágio final (síndrome de Eisenmenger) por comunicação interatrial.

(Dra. Carolina Santana e Prof. Antonio Augusto Lopes)

Necropsia

O coração apresentava forma globosa e volume muito aumentado, pesando 832 g. Ao exame externo, notava-se proeminência do VD. Após abertura das cavidades, verificou-se hipertrofia excêntrica das quatro câmaras, principalmente das situadas à direita, que exibiam intensa dilatação. Havia grande CIA na fossa oval (tipo ostium secundum), medindo 3,5 x 3,0 cm (Figura 8). O septo ventricular era íntegro e não havia outras malformações cardíacas. O exame histológico revelou hipertrofia dos cardiomiócitos e fibrose intersticial do miocárdio de ambos os ventrículos, sem evidências de lesões isquêmicas (infarto). O tronco da artéria pulmonar estava dilatado, medindo 4,0 cm de diâmetro, e exibia aterosclerose complicada, com áreas de calcificação. A artéria pulmonar direita mostrava aterosclerose calcificada, com trombose parcial em organização, e seus ramos parenquimatosos exibiam intensa dilatação. O processo era semelhante no pulmão esquerdo, porém a trombose era muito mais extensa, acometendo numerosos ramos arteriais, de forma oclusiva, inclusive ao nível do hilo pulmonar (Figura 9). O exame histológico dos pulmões confirmou a extensa trombose arterial em organização detectada ao exame macroscópico e revelou ainda trombose organizada e recanalizada de arteríolas (Figura 10), trombose recente focal de artéria de pequeno calibre e pequeno infarto hemorrágico no lobo inferior do pulmão direito (Figura 11), áreas de hemorragia alveolar, antracose, evidências histológicas de bronquite crônica e enfisema pulmonar difuso. Foi achado do exame histológico pequeno adenocarcinoma in situ no pulmão direito, medindo 9 mm. Havia aterosclerose da aorta de grau moderado, com placas calcificadas. Não havia pneumotórax ou evidências de broncopneumonia.

Figura 8 Vista anatômica das câmaras cardíacas direitas abertas evidenciando hipertrofia excêntrica com intensa dilatação. Note a grande comunicação interatrial, situada ao nível da fossa oval (asterisco duplo). 

Figura 9 Corte macroscópico do pulmão esquerdo mostrando aterosclerose e calcificação de ramos da artéria pulmonar, que se encontram extremamente dilatados e com extensa trombose oclusiva em organização (setas). 

Figura 10 Corte histológico evidenciando trombose organizada e recanalizada de arteríola do parênquima pulmonar. Hematoxilina-eosina, X 200. 

Figura 11 Corte histológico do lobo inferior do pulmão direito mostrando infarto hemorrágico recente. Hematoxilina-eosina, X 50. 

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Diagnósticos anatomopatológicos - Comunicação interatrial na fossa oval; hipertensão pulmonar secundária; insuficiência cardíaca congestiva com acentuada cardiomegalia; extensa trombose em organização das artérias pulmonares e ramos; trombose recente focal de artéria de pequeno calibre e pequeno infarto hemorrágico no lobo inferior do pulmão direito; enfisema pulmonar provavelmente relacionado ao tabagismo crônico; adenocarcinoma in situ do pulmão direito.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Comentários

Homem de 56 anos de idade, portador de CIA ampla, acentuada hipertensão pulmonar secundária e síndrome de Eisenmenger. Foi atendido inicialmente em nosso serviço aos 37 anos de idade, quando se diagnosticou defeito cardíaco congênito. Naquela ocasião, já apresentava acentuada hipertensão pulmonar, não sendo indicada a correção cirúrgica. De fato, a correção cirúrgica dos defeitos congênitos que cursam com hipertensão pulmonar deve ser precoce, antes que a mesma adquira maior importância e se torne irreversível. Por vezes, em determinada circunstância, recorre-se à biópsia pulmonar para gradação da hipertensão, o que contribui para avaliar a possibilidade de correção cirúrgica.6,7 O paciente evoluiu com insuficiência cardíaca congestiva, hiperglobulia com acentuada elevação do hematócrito e episódios de trombose das artérias pulmonares. Havia ainda inversão do fluxo através da CIA, com sentido direita para a esquerda, caracterizando a síndrome de Einsenmenger.8

A necropsia confirmou a presença da grande CIA e da hipertensão pulmonar. Havia acentuada dilatação das artérias pulmonares e ramos, com extensa trombose em organização, acometendo inclusive vasos hilares. Esses achados podem ocorrer na hipertensão pulmonar de qualquer etiologia, mas, neste caso, a trombose era muito exuberante, o que provavelmente se relaciona à acentuada elevação do hematócrito e estado pró-trombótico do paciente, descrito na síndrome de Eisenmenger no adulto.8,9 É interessante notar que, nessas circunstâncias, ocorre trombose e não tromboembolia das artérias pulmonares, pois trata-se de fenômeno local e não embolização de trombo formado em outro território vascular. O óbito decorreu de choque cardiogênico, devido a insuficiência cardíaca e extensa trombose das artérias pulmonares, agravado por infarto pulmonar hemorrágico.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

REFERÊNCIAS

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2 Lopes AA, Mesquita SM. Atrial septal defect in adults: does repair always mean cure? Arq Bras Cardiol. 2014;103(6):446-8.
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4 Caramuru LH, Maeda NY, Byhlowski SP, Lopes AA. Age-dependent likelihood of in situ thrombosis in secondary pulmonary hypertension. Clin Appl Thromb Hemost. 2004;10(3):217-23.
5 Gatzoulis MA, Beghetti M, Galiè N, Granton J, Berger RM, Lauer A, et al. Longer-term bosentan therapy improves functional capacity in Eisenmenger syndrome: results of the BREATHE-5 open-label extension study. Int J Cardiol. 2008;127(1):27-32.
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