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Caso 2/2014 - Mulher de 20 Anos com Transposição Corrigida, Atresia Pulmonar e Colaterais Sistemicopulmonares

Caso 2/2014 - Mulher de 20 Anos com Transposição Corrigida, Atresia Pulmonar e Colaterais Sistemicopulmonares

Autores:

Edmar Atik

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782X

Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.3 São Paulo mar. 2014

https://doi.org/10.5935/abc.20140026

Dados clínicos: Evoluiu no decurso da vida com três tipos de exteriorização clínica. A primeira caracterizava-se por dispneia e taquipneia, do nascimento até os cinco meses de idade, por hiperfluxo pulmonar e insuficiência cardíaca, com cardiomegalia e hepatomegalia. A segunda fase se caracterizou por estabilidade, sem sintomas expressivos, que se estendeu até os três anos de idade, presuntivo de fluxo sistemicopulmonar balanceado. A terceira fase, com hipofluxo pulmonar, teve cianose discreta com acentuação há dois anos. Cansaço aos esforços foi notado há quatro anos. Manteve saturação acima de 85% e há dois anos até 75%, hemoglobina = 17 g/dL e hematócrito = 62%.

Exame físico: Eupneica, cianótica +++, pulsos normais, sem turgência jugular. Peso: 54 kg; altura: 160 cm; PA: 115/60 mmHg; FC: 78 bpm; saturação de oxigênio = 78%. Aorta palpada ++ na fúrcula.

No precórdio, ictus cordis no 4.º EIC direito e impulsões sistólicas discretas na BED. Segunda bulha hiperfonética, +++, na área pulmonar, aumenta em direção à BED baixa. Sopro contínuo discreto e suave, +/++, na área pulmonar, com irradiação para o dorso. Fígado não palpado.

Exames complementares

Eletrocardiograma (Figura 1) mostrava ritmo juncional e sinais de sobrecarga do ventrículo esquerdo posicionado à direita. A onda P era negativa em II, III, aVF e precordiais. A morfologia do complexo QRS era RS em V1, rs em V6 e Rs em V6R. A onda T era negativa em I, L e mais positiva em V6R que em V6. AQRS: +160º, AT: 120º, AP: −80º.

Figura 1 Radiografia de tórax mostra o coração posicionado à direita em situs solitus, com características, conjuntamente com as do eletrocardiograma, da transposição corrigida das grandes artérias, estando o ventrículo esquerdo à direita e a aorta à esquerda. 

Radiografia de tórax Mostra área cardíaca normal (índice cardiotorácico = 0,45) à direita em situs solitus (bolha gástrica à esquerda) com arco ventricular arredondado à direita. O arco superior à esquerda era longo. Trama vascular pulmonar normal e escoliose moderada (Figura 1).

Ecocardiograma Mostrou coração em dextrocardia e situs solitus. Havia discordâncias atrioventricular e ventriculoarterial, atresia pulmonar (AP) e grande comunicação interventricular (CIV) na via de entrada de 25 mm. O tronco pulmonar não foi visualizado, assim como as artérias pulmonares. Os diâmetros das cavidades eram normais e os ventrículos tinham função normal.

Cateterismo: (Figura 2) No segundo mês de vida, visualizaram-se artérias pulmonares hipoplásicas e confluentes, irrigadas por canal arterial, que se dirigiam para o pulmão direito e o lobo superior esquerdo. O vaso colateral sistemicopulmonar da aorta descendente se dirigia para o lobo inferior esquerdo. Novo exame recente mostrou vaso superior esquerdo como colateral sistemicopulmonar, em vez do canal arterial. A artéria pulmonar esquerda tinha 8 mm; a direita, 13 mm com estenose à esquerda (diâmetro = 5 mm). As pressões em todo o circuito pulmonar eram sistêmicas (100/64 mmHg).

Figura 2 Angiografia da circulação sistemicopulmonar salienta os aspectos anatômicos descritos. As artérias pulmonares são opacificadas por vaso sistemicopulmonar superior esquerdo (A e B) e outro vaso colateral sistemicopulmonar para o lobo inferior esquerdo (D). A artéria pulmonar esquerda mostra estenose nítida (A e B) e menor que a direita, a qual se dirige para todo o pulmão direito (C). 

Diagnóstico clínico: Transposição corrigida das grandes artérias (TCGA), atresia pulmonar e comunicação interventricular em dextrocardia e situs solitus. A circulação pulmonar é nutrida por colateral sistemicopulmonar com hipertensão arterial pulmonar, em hipóxia acentuada e em evolução natural.

Raciocínio clínico: Os elementos clínicos de cardiopatias cianogênicas, que se acompanham de AP + CIV, podem ser variáveis, com sinais ora de hiperfluxo, ora de balanceamento de fluxos ou de hipofluxo pulmonar, como se salientou nesse paciente em evolução natural. O hiperfluxo inicial cedeu lugar aos demais com o predomínio do período de hipofluxo pulmonar. Nesse paciente, este último estádio decorreu da acentuação da hipertensão arterial pulmonar, não diagnosticada inicialmente. Os outros sinais clínicos foram indicativos da TCGA: segunda bulha hiperfonética na área pulmonar, que aumenta para BED baixa, orientando que a aorta emerge do ventrículo direito à esquerda, com respaldo na imagem radiográfica, na qual a aorta ascendente localiza-se à esquerda. O sopro contínuo de colaterais expressa a presuntiva atresia pulmonar associada. O ventrículo esquerdo é localizado à direita, com orientação da onda T para a direita e sobrecarga sistólica e diastólica desse ventrículo.

Diagnóstico diferencial: Cardiopatias do tipo CIV + AP se exteriorizam dessa mesma maneira, e o diagnóstico de base das outras anomalias deve ser realizado em função dos outros elementos clínicos orientadores, como demonstrado neste caso.

Conduta: Em face da hipertensão arterial pulmonar reativa acentuada, sildenafila foi introduzida na dose de 25 mg, a cada 8 h. Houve daí melhora da tolerância física e a saturação arterial subiu a 85%.

Comentários: Essa associação rara, AP + CIV + TCGA e circulação pulmonar dependente de colaterais sistemicopulmonares foi relatada apenas uma vez na literatura1.

Em geral, o quadro clínico depende de dois defeitos (CIV + AP) orientadores da fisiopatologia desse conjunto. Quando a circulação colateral se mostra aumentada com hiperfluxo pulmonar, em geral sofre estabilização e diminuição posterior, caracterizando os estádios evolutivos. O quadro hipoxêmico decorre da diminuição do fluxo pulmonar por estenoses da circulação sistemicopulmonar ou pelo desenvolvimento de hipertensão pulmonar. Em ambas as situações, o quadro se mostra arrastado naturalmente até a segunda ou terceira década da vida. Por tal fato, a indicação operatória desse paciente e de outros semelhantes deve ser sempre questionada, contrabalançando o aspecto evolutivo clínico, o pós-cirúrgico e o risco operatório.

REFERÊNCIAS

1. Ando M, Duncan BW, Mee RB. Anatomic correction for corrected transposition after after pulmonary unifocalization. Ann Thorac Surg.2003;75(3):1012-4.