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Caso 3/2017 - Mulher de 47 Anos com Insuficiência Cardíaca Refratária e Infarto Agudo Por Embolia Coronária

Caso 3/2017 - Mulher de 47 Anos com Insuficiência Cardíaca Refratária e Infarto Agudo Por Embolia Coronária

Autores:

João Gabriel Batista Lage,
Paulo Sampaio Gutierrez

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.1 São Paulo jul. 2017

https://doi.org/10.5935/abc.20170106

Trata-se de mulher de 47 anos encaminhada para tratamento médico no Instituto do Coração, natural e procedente de São Paulo, branca, solteira, 4 filhos e desempregada, porém relatando já ter trabalhado em lavoura de café no interior de MG.

À época da sua primeira consulta (25 de setembro de 2015) relatava dispneia aos mínimos esforços, ortopneia e anasarca, que se iniciaram 2 meses antes. Negava angina de peito, infarto do miocárdio prévio e síncopes. Sabia ser portadora de hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus, em tratamento em Unidade Básica de Saúde. Era tabagista (20 maços/ano), com parada do hábito havia 2 meses. Negava uso de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. Não havia história familiar de doença cardiovascular.

Fazia uso de metformina 2550 mg/dia, furosemida 80 mg/dia, carvedilol 12,5 mg/dia, e losartana 50 mg/dia.

O exame físico na primeira consulta revelava paciente em regular estado geral, dispneica em decúbito horizontal. A pressão arterial aferida era de 100/70 mmHg, a frequência cardíaca era de 102 bpm, a ausculta pulmonar revelava murmúrio vesicular abolido em base do hemitórax direito sem ruídos respiratórios anormais. A ausculta cardíaca revelava ritmo regular, em galope, por presença de terceira bulha e ausência de sopros. O abdome era globoso, tenso, indolor e com sinais de ascite volumosa. As extremidades eram frias e edemaciadas (++/4+), com pulsos simétricos.

O eletrocardiograma realizado para a consulta revelava ritmo sinusal, com frequência cardíaca de 97 bpm, sobrecarga atrial esquerda e sinais indiretos de sobrecarga atrial direita (sinal de Peñaloza-Tranchesi), baixa voltagem dos complexos QRS no plano frontal e não progressão de onda R de V1 até V4 (provável área eletricamente inativa na parede anterior) e alterações difusas da repolarização ventricular (Figura 1).

Figura 1 ECG: sobrecarga atrial esquerda e sinais indiretos de sobrecarga atrial direita (Sinal de Peñaloza-Tranchesi), baixa voltagem dos complexos QRS no plano frontal e não progressão de onda R de V1 até V4 (provável área eletricamente inativa parede anterior) e alterações difusas da repolarização ventricular. 

A radiografia de tórax mostrava velamento de seios costofrênicos bilateralmente, com derrame pleural até metade do hemitórax direito, aorta de aspecto normal e cardiomegalia global ++++/4+ (Figura 2).

Figura 2 Radiografa de tórax: velamento de seios costofrênicos bilateralmente, com derrame pleural até metade do hemitórax direito; aorta de aspecto normal e cardiomegalia global ++++/4+. 

Os exames laboratoriais monstravam: hemoglobina 14,8 g/dL; hematócrito 46%; leucócitos 9950/mm3; creatinina 0,87 mg/dL; sódio 141 mg/dL; potássio 4,3 mg/dL e sorologia para doença de Chagas negativa.

Nessa consulta, foi acrescentada espironolactona 25 mg e trocada metformina (por intolerância gastrointestinal) por glicazida 30 mg/dia.

Em consulta de retorno ambulatorial (16 de dezembro de 2015), relatou melhora acentuada da dispneia, que era desencadeada somente aos grandes esforços. O exame físico revelava ausência de turgência jugular patológica, pressão arterial de 100/70 mmHg, frequência cardíaca de 100 bpm. A ausculta pulmonar revelava murmúrio vesicular abolido em base direita, e a cardíaca, presença de terceira bulha, sem sopros. O abdome era globoso, tenso, indolor, com fígado palpável a 3cm do rebordo costal direito. Havia discreto edema de membros inferiores (+/4+). Não havia realizado os exames solicitados na primeira consulta. Nessa consulta, foi trocado carvedilol por metoprolol 50 mg/dia.

Após faltar à consulta subsequente, a paciente foi internada no dia 25 de julho de 2016, por descompensação do quadro de insuficiência cardíaca, em choque misto, com diminuição do nível de consciência e aumento dos marcadores de lesão miocárdica. Evoluiu com necessidade de dobutamina para controle hemodinâmico. Foi iniciada antibioticoterapia empírica com ceftriaxona e claritromicina, sendo a paciente posteriormente submetida a intubação orotraqueal para suporte respiratório.

A radiografia desse dia, no leito, evidenciou velamento de seios costofrênicos bilateralmente, com hipotransparência de terço inferior de hemitórax direito (derrame pleural), aumento da trama vascular pulmonar, com linhas B de Kerley e cardiomegalia acentuada (Figura 3).

Figura 3 Radiografa de tórax, no leito: velamento de seios costofrênicos bilateralmente, com derrame pleural até metade do hemitórax direito; aorta de aspecto normal e cardiomegalia global ++++/4+. 

Os exames laboratoriais revelavam: hemoglobina 14,1 g/dL; hematócrito 44%; leucócitos 15100/mm3 (bastões 6%, segmentados 84%, linfócitos 5% e monócitos 5%); plaquetas 195000/mm3; CK-MB 9,7 ng/mL; troponina I 0,654 ng/mL; ALT 42 U/L; AST 80 U/L; ureia 87 mg/dL; creatinina 1,18 mg/dL; sódio 132 mEq/L; potássio 3,5 mEq/L; relação de tempos de atividade de protrombina (INR) de 2,3; relação de tempos de tromboplastina ativada de 1,06; magnésio 1,6 mEq/L; bilirrubinas totais 3,14 mg/dL; bilirrubina direta 2,19 mg/dL; proteína C-reativa 156,50 mg/L; lactato arterial 22 mg/dL. A gasometria arterial (com oxigenoterapia) revelava pH de 7,52, pCO2 de 29,6 mmHg, pO2 de 176 mmHg, saturação de oxigênio de 99,9%, bicarbonato de 24,1 mmol/L e excesso de bases de 2,2 mmol/L.

O ecocardiograma transtorácico, à beira do leito, revelou: ventrículo esquerdo com hipocinesia difusa e fração de ejeção de 20%; ventrículo direito com hipocinesia acentuada; valvas mitral e tricúspide com insuficiência acentuada e falha de coaptação das suas cúspides; valva pulmonar com sinais de hipertensão pulmonar; discreto derrame pericárdico e presença de grande massa heterogênea em ventrículo esquerdo, medindo 30x28 mm, compatível com trombo intracavitário. A pressão sistólica da artéria pulmonar foi estimada em 65 mmHg.

A cineangiocoronariografia revelou coronárias sem lesões proximais, mas o ramo interventricular anterior apresentava lesão de 95% distal, e o ramo diagonal, oclusão distal. Não havia sinais de obstrução no ramo circunflexo e na artéria coronária direita (Figuras 4A, 4B, 4C, 4D).

Figura 4 Cinecoronariografa: 4A: OAD caudal: lesão distal de 95% em ramo descendente anterior e oclusão diagonal; 4B: OAD cranial: lesão distal de 95% e oclusão distal de diagonal; 4C: OAE cranial: lesão distal de 95% ramo descendente anterior; 4D: OAE: coronária direita sem lesões. 

Com tais achados, aventou-se a hipótese de infarto de causa embólica. A paciente foi então encaminhada para a UTI, com aumento progressivo de drogas vasoativas, posterior introdução de noradrenalina e escalonamento antimicrobiano para meropenem e vancomicina. Evoluiu com choque refratário e óbito no dia 27 de julho de 2016, com disfunção de múltiplos órgãos.

Aspectos clínicos

Este caso pode ser entendido sob dois aspectos: doença crônica e descompensação aguda. Na primeira vertente, podem-se aventar algumas possibilidades sobre a etiologia do quadro de insuficiência cardíaca da paciente. Com a sorologia negativa para Chagas e as comorbidades conhecidas, as principais hipóteses possíveis são cardiopatia hipertensiva (fase dilatada), doença da microcirculação pelo diabetes mellitus e miocardiopatia dilatada idiopática.1-3 A paciente tinha comparecido a apenas duas consultas, estando a investigação complementar ainda inacabada. Com relação ao quadro de descompensação aguda, num primeiro momento, estava relativamente claro que a hipótese infecciosa era a mais plausível e a elevação de marcadores de necrose miocárdica provavelmente estava relacionada à sepse e à instabilidade hemodinâmica (infarto agudo do miocárdio tipo 2). No entanto, após os resultados dos outros exames complementares (ecocardiograma e cineangiocoronariografia), a hipótese de infarto agudo do miocárdio de causa embólica fica mais evidente, principalmente devido à observação de trombo intracavitário no primeiro exame. A hipótese que se impõe, então, é que a disfunção importante do ventrículo esquerdo proporcionou a formação do trombo e um fragmento desse embolizou para a circulação coronariana, dando origem ao infarto agudo do miocárdio, culminando em piora da disfunção, deflagrando, por conseguinte, a cascata que levou a paciente ao óbito.

Entre as causas de êmbolos coronários temos doença valvar, miocardiopatia, aterosclerose coronária e fibrilação atrial. Em estudo de necropsia de Prizel et al.,4 um trombo intracavitário esteve presente em 33% dos casos. Não se pode afastar, no entanto, causa infecciosa sobreposta para a descompensação. (Dr. João Gabriel Batista Lage)

Hipótese diagnóstica: sindrômica: insuficiência cardíaca por cardiopatia com redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo; etiológica: cardiomiopatia dilatada.

Quadro final: infarto agudo do miocárdio por tromboembolismo para coronária e choque cardiogênico. (Dr. João Gabriel Batista Lage)

Necropsia

À necropsia, o coração apresentava dilatação global das quatro câmaras (Figura 5), sem alterações significativas em valvas e artérias coronárias. Ao estudo microscópico, não havia infiltrado inflamatório ou qualquer tipo de depósito, e as fibras musculares mostravam-se afiladas e com núcleo aumentado, denotando hipertrofia. As pontas de ambos os ventrículos apresentam trombose (Figura 5). O diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica baseou-se apenas na informação da paciente, e não havia arteriolosclerose renal. Assim, na falta de estudo genético, não é possível ter certeza de se tratar de miocardiopatia hipertensiva descompensada ou miocardiopatia dilatada idiopática, que parece mais provável.

Figura 5 Corte longitudinal do coração mostrando dilatação das cavidades. 

Havia também infarto do miocárdio, com aproximadamente 2 semanas de evolução, atingindo a região apical das paredes anterior e septal do ventrículo esquerdo (Figuras 5 e 6). O estudo microscópico das artérias coronárias mostrou-as praticamente normais ou com lesões intimais mínimas (Figuras 7A e 7B). No 6o centímetro do ramo interventricular anterior (descendente anterior), havia material ocluindo sua luz, com características típicas de trombo-êmbolo (Figura 7C).

Figura 6 Aproximação de corte longitudinal do coração mostrando a região da ponta com trombos em ambos os ventrículos (asteriscos) e infarto do miocárdio (setas). 

Figura 7 Cortes histológicos transversais de segmentos de artérias coronárias. A e B- artéria coronária direita e tronco da artéria coronária esquerda, respectivamente, ambas mostrando túnica íntima (delimitada pelas setas) sem obstruções signifcativas; C- 6° cm do ramo interventricular anterior (descendente anterior) com oclusão por trombo-êmbolo. 

Nos lobos inferiores dos pulmões, havia infartos, pequeno à esquerda e grande à direita (Figura 8). Foram considerados o fator final desencadeante do óbito.

Figura 8 Corte do pulmão direito mostrando infarto hemorrágico no lobo inferior (área triangular mais escura). 

Nos demais órgãos, encontraram-se alterações decorrentes de insuficiência cardíaca congestiva, com congestão passiva crônica, congestão visceral generalizada, anasarca e caquexia. (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Doença principal: miocardiopatia dilatada idiopática.

Causa mortis: tromboembolismo pulmonar (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Comentários

O aspecto que chama a atenção neste caso de paciente com miocardiopatia dilatada é a presença de infarto do miocárdio; em sua região, havia trombose mural, tanto no ventrículo direito quanto no esquerdo. O ponto principal é a causa do infarto. As artérias coronárias, tanto à cineangiocoronariografia quanto ao exame morfológico, não têm doença aterosclerótica significativa, mas apresentam embolização distal de ramo interventricular anterior (descendente anterior). Juntando-se o achado cineangiocoronariográfico com a existência do infarto, pode-se considerar que, de fato, esse último tenha decorrido de embolização para artéria coronária. O infarto do miocárdio - como, posteriormente, o do pulmão - deve ter sido causado por embolia a partir das tromboses ventriculares. É interessante perceber que, por coincidência, o infarto acabou acontecendo na mesma área do trombo que o originou. Outra possibilidade seria que o infarto tenha sido decorrente de outro processo, como vasoespasmo, gerando trombose, que causou a embolia terminal.

Ainda que haja na literatura relatos de casos semelhantes,5,6 o aparecimento de infarto transmural em pacientes com miocardiopatia dilatada idiopática é incomum. (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (vera.aiello@incor.usp.br)

REFERÊNCIAS

1 Luk A, Ahn E, Soor GS, Butany J. Dilated cardiomyopathy: a review. J Clin Pathol .2009;62(3):219-25. doi: 10.1136/jcp.2008.060731.
2 Hershberger RE, Lindenfeld J, Mestroni L, Seidman CE, Taylor MR, et al. Genetic evaluation of cardiomyopathy--a Heart Failure Society of America practice guideline. J Card Fail. 2009;15(2):83-97. doi: 10.1016/j.cardfail.2009.01.006.
3 Hershberger RE, Hedges DJ, Morales A. Dilated cardiomyopathy: the complexity of a diverse genetic architecture. Nat Rev Cardiol. 2013;10(9):531-47. doi: 10.1038/nrcardio.2013.105.
4 Prizel KR, Hutchins GM, Bulkley BH. Coronary artery embolism and myocardial infarction: a clinicopathologic study of 55 patients. Ann Intern Med .1978;88(2):155-61. PMID. 626443.
5 Zachura M, Sadowski M, Janion-Sadowska A, Kurzawski J, Janion M. Acute myocardial infarction due to coronary embolism originating from left ventricle thrombus in a patient with dilated cardiomyopathy and sinus rhythm. Postepy Kardiol Interwencyjnej. 2016;12(1):73-4. doi: 10.5114/pwki.2016.56956.
6 Przybojewski JZ. Myocardial infarction complicating dilated (congestive) cardiomyopathy in an industrial nitroglycerin worker. A case report (abstract). S Afr Med J. 1986;69(6):381-4. PMID. 3083516.