versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.110 no.5 São Paulo maio 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180080
Paciente evolui com dispnéia aos esforços habituais há dois anos, com progressão a baixo débito cardíaco e síncope recentes, tratado na ocasião com dobutamina e drogas anticongestivas habituais. Em uso atual de furosemida 40 mg, espironolactona 25 mg e losartana 12,5 mg.
Exame físico: Bom estado geral, eupneico, acianótico, pulsos normais nos 4 membros. Peso: 70 Kgs, Alt.: 160 cm, PAMSD: 90 x 60 mm Hg, FC: 94 bpm.
Precórdio: Ictus cordis não palpado, sem impulsões sistólicas. Bulhas cardíacas hipofonéticas, sopro sistólico discreto em borda esternal esquerda. Fígado não palpado e pulmões limpos.
Eletrocardiograma: Ritmo sinusal, distúrbio de condução pelo ramo esquerdo, com QRS largo de 169 ms (AQRS= 0°), onda T negativa em I, aVL e V6 (AT = +155°), sobrecarga bi-atrial, onda P apiculada e alargada (AP = +77°) (Figura 1).
Figura 1 Eletrocardiograma mostra o distúrbio de condução pelo ramo esquerdo além da sobrecarga bi-atrial e da orientação diagnóstica da onda T para o ventrículo esquerdo à direita. Radiografia de tórax com cardiomegalia à custa do arco ventricular e do átrio esquerdo. Ecocardiograma em projeção de quatro câmaras com aumento acentuado do ventrículo direito à esquerda, desvio do septo interventricular para à direita e aumento do átrio esquerdo.
Radiografia de tórax: Aumento da área cardíaca a custa do arco ventricular esquerdo arredondado e do átrio esquerdo em duplo contorno, com elevação do brônquio esquerdo. Trama vascular pulmonar congesta, aumento da aorta descendente, arco médio dilatado. Índice cardiotorácico de 0,61. (Figura 1)
Ecocardiograma: Conexões átrio ventricular e ventrículo arterial discordantes, septos atrioventriculares íntegros. O septo ventricular está abaulado para a direita. Insuficiência tricúspide acentuada à esquerda (anel tricúspide = 36 mm). Átrios acentuadamente dilatados. Disfunção sistólica com hipocinesia difusa do ventrículo direito (VD), TAPSE = 0,7 cm. Ventrículo esquerdo com disfunção acentuada (Figura 1).
Angiotomografia de coronárias: Circulação coronária com dominância à esquerda. A irrigação do VD à esquerda se origina do tronco arterial que nasce do seio de Valsalva posterior, do qual se bifurca nas artérias circunflexa, ventricular posterior e marginal. Há ainda irrigação do ventrículo direito pela artéria ventricular anterior, ramo da artéria coronária que nasce do seio de Valsalva anterior. O ventrículo esquerdo à direita é irrigado pela artéria que nasce do seio de Valsalva anterior em ramo fino que se dirige para a sua face anterior (Figura 2).
Figura 2 Angiotomografia das artérias coronárias mostra os ramos ventricular anterior, direito e esquerdo, que nascem do seio de Valsalva anterior, em B. Do seio de Valsalva posterior nascem as artérias mais volumosas que irrigam plenamente o ventrículo direito à esquerda (A e C), compostas pela artéria circunflexa e ventricular posterior, além da marginal.
Holter: Ritmo sinusal, sem arritmias.
Ressonância Magnética Nuclear do miocárdio: Disfunção importante do ventrículo direito (FE = 29%), VDFVD = 154 ml/m2, assim como do ventrículo esquerdo (FE = 36%), VDFVE = 73 ml/m2. Átrio direito preservado e átrio esquerdo com aumento acentuado. Realce tardio juncional anterior e inferior e nas vias de saída dos ventrículos. Regurgitação tricúspide acentuada.
Ergoespirometria: Consumo máximo de oxigênio de 16,4 ml/kg/min, 76% do VO2 máximo atingido (56% do predito para idade), ponto de compensação respiratória não foi atingida. Slope VE/VCO2 de 31.
Diagnóstico Clínico: Transposição corrigida das grandes artérias, sem defeitos associados, em disfunção acentuada biventricular.
Raciocínio Clínico: Havia elementos clínicos de orientação diagnóstica da transposição corrigida das grandes artérias, salientando-se a disfunção ventricular tardia, verificada há poucos anos por cansaço. Além disso, foram identificados elementos eletrocardiográficos, principalmente a partir da orientação da repolarização ventricular, com eixo elétrico da onda T orientado para o ventrículo esquerdo à direita. O diagnóstico foi bem estabelecido pela ecocardiografia e ressonância nuclear magnética. A provável causa da disfunção ventricular tardia é a insuficiência coronária relativa do ventrículo direito hipertrófico e sistêmico, apesar da boa irrigação coronária verificada pela angiotomografia.
Diagnóstico diferencial: Em paciente adulto, evocam-se todas as outras causas de disfunção ventricular, como miocardiopatia isquêmica e miocardiopatia dilatada de várias outras origens.
Conduta: Em face da disfunção bi-ventricular acentuada, houve indicação de transplante cardíaco.
Comentários: A transposição corrigida das grandes artérias, sem defeitos associados, ocorre entre 10 a 15%. Pacientes em evolução natural e aqueles operados sob as técnicas funcionais evoluem na idade adulta para graus variados de disfunção do ventrículo direito sistêmico.1,2 Ela é progressiva com a idade mais avançada e ocorre em cerca de 50 a 80% destes casos. Dos oito pacientes de maior idade publicados na literatura, cinco deles apresentavam-se com insuficiência cardíaca congestiva.3 A síndrome congestiva pode ser explicada pela insuficiência coronária relativa relacionada ao ventrículo direito sistêmico e hipertrófico. Neste aspecto, o fluxo coronário diminuído foi bem demonstrado na literatura e reconhecido como consequência da disfunção ventricular direita, tornando-se a sequela principal da anomalia a longo prazo. A diminuição do fluxo coronário após vasodilatação com adenosina, resultando em vasoreatividade alterada e possíveis mudanças na microcirculação, pode explicar a disfunção ventricular.4 Assim, a melhor opção para esses pacientes tende ser a correção anatômica pelo duplo switch, atrial e arterial, em algum estágio da doença.1,2