versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.4 São Paulo out. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140141
Dados clínicos: Sopro cardíaco foi auscultado de rotina com dois anos de idade em criança do sexo feminino, que permaneceu assintomática e sem uso de medicação específica.
Exame físico: Eupneica, acianótica, pulsos normais. Peso: 18,6 Kg, Altura: 109 cm, PA: 100/60 mmHg, FC: 90 bpm, saturação O2 = 99%. A aorta não era palpada na fúrcula.
No precórdio, ictus cordis não era palpado e não havia impulsões sistólicas. As bulhas cardíacas eram normofonéticas, mais audíveis na borda esternal direita, sendo a segunda bulha desdobrada constante e com sopro sistólico discreto, +/++ de intensidade, timbre rude, na área aórtica, irradiado para a borda esternal direita, maior que à esquerda. O fígado era palpado a 1 cm da reborda costal direita.
Eletrocardiograma: Mostrava ritmo sinusal e morfologia RS nas precordiais direitas e rs em V6 compatível com sobrecarga de ventrículo direito. A repolarização ventricular era normal. AP: +20º, AQRS: +250º, AT: +30º.
Radiografia de tórax: Mostra hipoplasia do pulmão direito com aumento da área cardíaca posicionada à direita e trama vascular pulmonar aumentada. Havia sinal de imagem vascular à direita na imagem retrocardíaca com contorno que lembrava uma cimitarra (Figura 1).
Ecocardiograma: Bi-Doppler mostrou aumento nítido das cavidades direitas, dilatação do tronco pulmonar e da artéria pulmonar esquerda. Comunicação interatrial ostium secundum de 5 mm com shunt da esquerda para a direita. As veias pulmonares à esquerda drenam normalmente no átrio esquerdo normal e as veias direitas na veia cava inferior dilatada, próximo ao átrio direito. As medidas eram: VD = 26, VE = 31, TP = 21, APD = 7, APE = 13, anel T = 22, anel M = 16, anel P = 15 anel Ao = 15 mm, PSVD = 37 mmHg, FEVE= 66%, (Figura 2).
Cateterismo cardíaco: Confirmou o diagnóstico da síndrome de Cimitarra com drenagem anômala das veias pulmonares direitas em veia cava inferior e comunicação interatrial. Constatou-se por injeção de contraste na aorta descendente presença de vaso colateral sistêmico-pulmonar que se dirigia para o lobo inferior direito (sequestro pulmonar) que sofreu embolização através colocação de quatro molas (Figura 2). As pressões eram em: AD = 11, VD = 40/12, TP = 36/8-17, CP = 16, AE = 12, VE = 82/17, Ao = 90/60-70 mmHg.
Diagnóstico clínico: Síndrome de Cimitarra em hipoplasia do pulmão direito e comunicação interatrial, com shunt da esquerda para a direita, e sequestro pulmonar do lobo inferior direito, em criança assintomática.
Raciocínio clínico: Os elementos clínicos eram compatíveis com o diagnóstico de comunicação interatrial e drenagem anômala das veias pulmonares direitas na veia cava inferior em hipoplasia do pulmão direito, indicativos da síndrome de Cimitarra. O sequestro pulmonar à direita foi estabelecido pelo cateterismo cardíaco.
Diagnóstico diferencial: Os achados clínicos e de exames complementares, característicos da síndrome de Cimitarra, não encontram similares diferenciais com outras anomalias. Esses elementos devem sempre ser ressaltados e lembrados em presença da hipoplasia do pulmão direito. Nessa circunstância, o sequestro pulmonar associado também deve ser lembrado.
Conduta: A indicação operatória para redirecionamento das veias pulmonares direitas para o átrio esquerdo e fechamento da comunicação interatrial encontra respaldo na repercussão dos defeitos, dado o grande aumento das cavidades cardíacas direitas, motivado pelo shunt da esquerda para a direita a nível atrial.
Comentários: A síndrome de Cimitarra, publicada por Cooper1 em 1836, e assim denominada por Neill, dada a analogia morfológica com a espada curva turca em 19602, é associada sistematicamente à hipoplasia do pulmão homônimo à direita e por vezes com sequestros pulmonares, cardiopatias congênitas (mais comum a CIA) e outros defeitos conhecidos como "síndrome venolobar". O quadro clínico se assemelha ao de uma comunicação interatrial que se mostra de repercussão quando a hipoplasia pulmonar não for significativa. Caso contrário, quanto mais hipoplásico for o pulmão, o fluxo pulmonar à direita se torna mais reduzido e a manifestação clínica frustra, a ponto de não haver daí benefício na correção operatória. Em associação com sequestros pulmonares, recomenda-se sempre a embolização do vaso sistêmico-pulmonar a fim de se evitar complicações de hemorragia pulmonar e hipertensão pulmonar localizada além de infecção pulmonar.