versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160057
A displasia imuno-óssea tipo Schimke (DIOS) foi descrita inicialmente em 1971 por Schimke, caracterizada por displasia espondiloepifisiária, imunodeficiência de células T e doença renal progressiva com proteinúria nefrótica.1
DIOS é uma desordem autossômica recessiva. Há aproximadamente 50 casos descritos na literatura até então, não sendo observada relação com sexo, etnia e localização geográfica. A exata prevalência da doença ainda é desconhecida.2
As evidências clínicas da DIOS são: displasia espôndilo-epifisária com dano no crescimento, fácies típica, síndrome nefrótica por glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) e falência renal progressiva, linfopenia recorrente, imunodeficiência de células T e nevus pigmentado.2 Outros achados incluem: hipotireoidismo, isquemia cerebral transitória e aplasia de medula óssea. A literatura também sugere associação com malformações dentárias, complicações neurológicas como cefaleia crônica, doenças autoimunes e câncer, incluindo linfoma não Hodgkin e osteossarcoma.3,4
Escolar de 9 anos, feminina, cor parda, natural e procedente de Boa Viagem-CE, pais e irmã saudáveis, sem história de consanguinidade.
História materno-obstétrica sem intercorrências. Ultrassom obstétrico não evidenciou malformações. Criança nasceu de parto cesáreo por oligoamnio grave e trabalho de parto prematuro em janeiro de 2006. Foi pequena para idade gestacional (36 semanas, pesando 1,750 kg). Não foi diagnosticada malformação no exame do recém-nascido.
Mãe nega intercorrências nos primeiros dias de vida. Teste do pezinho sem alterações para hipotireoidismo congênito (TSHn: 2,70 UI/L) e fenilcetonúria (PKU: 1,6 mg/dL). Puericultura realizada irregularmente na atenção básica do município de Boa Viagem. História alimentar adequada em todas as fases da vida.
Apresentou marcos de desenvolvimento neuropsicomotor em períodos adequados, mas, desde os 5 meses, mãe percebeu que estava abaixo do peso e estatura para idade. Apenas aos 2 anos foi alertada quanto ao retardo de crescimento. Até os 2 anos, apresentou apenas infecções comuns da infância. Entre 2 e 4 anos, apresentou três infecções graves, com internação hospitalar em duas delas.
Em julho de 2010 (4 anos de idade), durante internação hospitalar no município de origem por pneumonia comunitária, foi evidenciado atraso importante do crescimento e de ganho de peso (9,7 kg e 72 cm → abaixo do percentil 3). No mês seguinte, criança foi então encaminhada ao serviço de Endocrinopediatria do Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS), em Fortaleza-CE. Ao exame físico, estádio puberal M1P1, tireoide não palpável, fronte olímpica, cabelos finos e esparsos, pectus carintum. Desvio padrão de peso e altura: -7. Desenvolvimento neuropsicomotor normal. Ultrassonografia de tireoide evidenciando redução de ecogenicidade difusa do parênquima tireoidiano. Raios-X de idade óssea adequado para idade. Exames laboratoriais iniciais, vide Quadro 1.
Quadro 1 Exames admissionais, 2010
Exame | Valor | Referência | Unidades |
---|---|---|---|
TSH | 6,8 | 07-6,0 | mUI/L |
T4livre | 20,76 | 12-22 | pmol/L |
Anticorpo antiTG | 26,7 | < 40,0 | IU/mL |
Anticorpo antiTPO | 8,12 | < 35,0 | IU/mL |
Cortisol (matutino) | 232,1 | Matutino: 171-536 Vespertino: 64-327 | nmol/L |
PTH | 19,9 | 12,0-72,0 | pg/mL |
Albumina | 2,6 | 3,5-5,5 | g/dL |
GH | 4,19 | < 10 | ng/mL |
IGF-1 | < 25ng/ml | 4 anos: 49-283 5 anos: 50-286 | ng/ml |
IGFBP-3 | 2,32 | 4 anos: 1 - 4,7 5 anos: 1,1 - 5,2 | µg/mL |
IgA | 125 | 15-250 | mg/dL |
IgG | 700 | 340-1600 | mg/dL |
IgM | 115 | 45-300 | mg/dL |
Cálcio | 8,1 | 8,4 a 10,5 | mg/dL |
Fósforo | 5,6 | 2,5 a 5,6 | mg/dL |
Potássio | 4,5 | 3,5-5,0 | mmol/L |
Ureia | 14 | 10-50 | mg/dL |
Creatinina | 0,4 | 0,3 a 0,4 (adaptado para altura da criança) | mg/dL |
Sumário de urina | Proteinúria (+++) | Ausente | |
Proteinúria de 24h | 548,07 | 20-150 | mg/dL |
Normal < 5 | |||
Proteinúria de 24h | 56,4 | Leve/Moderada 5-50 | mg/Kg/dia |
Maciça > 50 | |||
Desejável < 150 | |||
Triglicerídeos | 417 | Limítrofe: 150-199 Alto: 200-499 | mg/dL |
Muito alto > 500 | |||
Ótimo < 150 | |||
Colesterol total | 216,29 | Limítrofe: 150-169 | mg/dL |
Alto > 170 |
Fonte: elaborada pelos autores.
Foi diagnosticada com hipotireoidismo e síndrome nefrótica, sendo iniciado tratamento com levotiroxina e encaminhada aos serviços de Nefropediatra e Genética (dezembro de 2010) para investigar desproporção tronco-membros associada a fácies sindrômica (hipertelurismo, alopecia difusa, baixa implantação auricular). Levantada hipótese de alteração de TSH secundária à síndrome nefrótica. Posteriormente, foi diagnosticada displasia óssea (desproporção troco-membro, vértebras achatadas e epífises femorais displásicas).
Em dezembro de 2010, evoluiu com síndrome nefrótica, hipertensão arterial e clearence de creatinina estimado (Schwartz) compatível com doença renal crônica estágio II (76,4 ml/min/1,73m2). Foi submetida à terapia com esteroides por cinco meses, comportando-se como córtico-resistente. Realizada biópsia renal (maio de 2011) evidenciando glomeruloesclerose segmentar e focal (5/31) - GESF e atrofia tubular focal com fibrose intersticial discreta.
Fez uso de ciclosporina e prednisona via oral entre setembro de 2011 e agosto de 2012, de forma intermitente devido a quadros infecciosos. Suspensa por neutropenia persistente, manutenção de proteinúria maciça e perda progressiva de função renal. Manteve-se em acompanhamento ambulatorial, em uso de inibidor da enzima conversora da angiotensina (IECA), diuréticos (espironolactona e tiazídico), betabloqueador e estatina, bem como medidas conservadoras para doença renal crônica.4
Em dezembro de 2012, clearence de creatinina estimado (Schwartz) = 27,8 ml/min/1,73m2 e ultrassonografia evidenciava rins de dimensões reduzidas difusamente e perda da diferenciação córtico-medular.
Realizada investigação de infecções de repetição (seis episódios de pneumonia comunitária, sendo cinco graves, uma otite média aguda supurativa e três episódios graves de herpes zoster no período de um ano) pelo serviço de Imunologia, que evidenciou imunodeficiência de células T, B e NK, conforme Quadro 2.
Quadro 2 Exames da investigação imunológica, 2012
Exame | Valor | Conclusão |
---|---|---|
Imunofenotipagem de células T |
Linfócitos T (CD3): 88,48% 1660/mm3 | Normal |
Linfócitos B (CD19): 9,01% 169/mm3 | → muito baixo | |
Linfócitos NK (CD56): 2,51% 47/mm3 | p10: 217 → muito baixo | |
Linfócitos T | p10: 618 → muito baixo | |
CD 4: 10,55% 175/mm3 | p90: 1024 → alterado | |
CD8: 85,24% 1415.mm3 | Normal: 0,1: 1 → alterado | |
Relação CD4/CD8: 0,16% 3/mm3 | ||
IgA | 171 | p50: 127 |
IgG | 545 | |
IgM | 103 | p50: 86 |
IgE | 6,14 | p10: 10 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Estabelecido diagnóstico clínico de síndrome de Schimke em fevereiro de 2013. Paciente apresentava: hipotireoidismo, displasia óssea (desproporção troco-membro, vértebras achatadas e epífises femorais displásicas), imunodeficiência, síndrome nefrótica córtico-resistente de difícil controle e fenótipo sindrômico. Demais órgãos e aparelhos investigados dentro da normalidade. Não foram realizados testes genéticos pela indisponibilidade no serviço.
Evoluiu com perda rápida da função renal (clearence de creatinina estimado em setembro de 2014: 13 ml/min/1,73m2-Schwartz), sendo submetida a transplante renal em novembro de 2014.
Atualmente, paciente mantém função renal normal (clearence de creatinina estimado em abril de 2015: 104,5 ml/min/1,73m2- Schwartz), sem recorrência da síndrome nefrótica e com controle da função tireoidiana (TSH: 2,47 e T4livre: 1,7). Apresentou um quadro infecioso grave (encefalite por vírus Epstein Baar) e acidente vascular cerebral isquêmico em 2015, sem sequelas.
O fenótipo DIOS pode variar de manifestação grave abranda, conforme início intraútero ou tardio.2 A única causa identificada é a mutação no gene SMARCAL 1, relacionada à proteína HepA, contudo, aproximadamente 50% dos pacientes não tem esta mutação detectada.5
SMARCAL 1 é uma proteína de remodelamento fundamental para a integridade do genoma. Células SMARCAL 1 deficientes mostram forquilhas de replicação colapsadas, parada do ciclo celular em fase S, instabilidade cromossômica e hipersensibilidade genômica a agentes tóxicos, alterando a sensibilidade celular à replicação de agentes agressores.6
A síndrome nefrótica causada por doenças genéticas está associada a mutações em proteínas estruturais do glomérulo, alterando, assim, sua permeabilidade. Caracterizando-se por: apresentação precoce, baixa taxa de resposta ao tratamento e de recorrência após transplante. Cada mutação, no entanto, apresenta um espectro diferente de doença e gravidade. A maioria é resistente a esteroides, no entanto, há algumas formas de apresentação menos precoces, que têm boa resposta terapêutica a imunossupressores, devendo ser considerada sua utilização individualmente.7
No rim fetal em desenvolvimento o gene SMARCAL1 é expresso no epitélio uretérico, estroma, mesênquima metanéfrico, e em todas as fases do desenvolvimento do néfron. Em rins pós-natais, SMARCAL1 expressa-se nos túbulos epiteliais do néfron, túbulos coletores e glomérulo (podócitos e células endoteliais). Estudos sugerem que interrupções na integridade genômica durante o desenvolvimento fetal do rim contribuem para a patogênese da GESF em pacientes com DIOS.8
Há relato de melhora parcial da proteinúria com uso da ciclosporina na síndrome nefrótica córtico-resistente mesmo associada à doença genética, sendo propostos alguns mecanismos não imunossupressores: vasoconstricção de arteríola aferente e redução da perda de albumina por alteração da taxa de filtração glomerular.9,10 Contraindica-se, no entanto, o uso de ciclosporina em pacientes com grau avançado de atrofia tubular e fibrose intersticial na biópsia renal,11 sendo seu uso visto com cautela também em decorrência de linfopenia e infecções recorrentes.
A síndrome nefrótica da DIOS não costuma responder ao tratamento com esteroides, mas há relatos de melhora transitória da proteinúria com uso de IECA, bloqueadores do canal renina-angiotensina (BRA) e ciclosporina. Nos casos mais graves de síndrome nefrótica e/ou no estágio de insuficiência renal crônica terminal, está indicado o transplante renal, não sendo relatada recorrência da síndrome nefrótica pós-transplante, embora as complicações infecciosas e cerebrovasculares ainda possam ocorrer, posto que a mutação SMARCAL afeta diversos sistemas além dos glomérulos.2 Não há consenso quanto ao transplante de medula óssea como terapia para o acometimento medular.12
É relatado que os pacientes acometidos com DIOS geralmente morrem nas primeiras duas décadas de vida por: infecções (23%), acidente vascular cerebral (17%), insuficiência renal (15%), hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca congestiva (15%), complicações do transplante de órgãos (9%), complicações de doenças linfoproliferativas (9%), hemorragia gastrointestinal (6%), aplasia de medula óssea (3%) e doença pulmonar restritiva aguda (3%).12