versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.16 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.008416
A trombose de veia porta (TVPo) é um evento pouco comum nos pacientes não cirróticos e não neoplásicos. Aproximadamente 60% dos casos estão associados a condições trombofílicas, em especial doenças mieloproliferativas e trombofilias hereditárias1-3. A proporção de doentes com TVPo idiopática vem diminuindo com o diagnóstico recente de mais fatores de risco trombóticos hereditários4. Apesar de rara, a TVPo é potencialmente fatal quando complicada por isquemia intestinal5.
A apresentação clínica da TVPo varia desde um quadro assintomático, em obstruções parciais, até insuficiência hepática e óbito, em casos agudos6. A esplenoportografia (EPG) e a tomografia computadorizada (TC) de abdome com contraste são usadas de forma segura para o diagnóstico dessa doença, cujo tratamento é individualizado e pode ser realizado através de anticoagulação, terapia trombolítica sistêmica ou guiada por cateter, e terapia cirúrgica, quando há evolução do paciente para necrose intestinal1,7,8.
Este trabalho objetiva relatar o caso de um paciente de 60 anos com TVPo por trombofilia que evoluiu para necrose intestinal e realizar uma breve revisão de literatura sobre a doença.
Homem, 60 anos, natural e residente em Maceió (AL), foi admitido na emergência queixando-se de dor abdominal difusa havia 48 horas, de intensidade crescente, acompanhada de náuseas e vômitos. Relatou tratamento prévio para trombose venosa profunda (TVP) em membro inferior esquerdo. Era hipertenso, em uso irregular de losartana potássica, dislipidêmico e portador de esteatose hepática, além de ex-tabagista, etilista social e sedentário. Com relação aos antecedentes familiares, três irmãs e uma filha apresentaram TVP.
Durante o exame físico, estava consciente, agitado, sudoreico, taquipneico, afebril, acianótico, anictérico, hipertenso (150×80 mmHg), com mucosas hipocoradas (++/4+) e hidratadas. O abdome era globoso, distendido, tenso e doloroso à palpação profunda, com maior intensidade em fossa ilíaca direita e ruídos hidroaéreos diminuídos globalmente. Apresentava extremidades perfundidas, pulsos periféricos palpáveis e amplos, sem edemas em membros inferiores e com panturrilhas livres.
Hemograma e dosagens bioquímicas revelaram discreta leucocitose (13.100/mm3) acompanhada de neutrofilia (10.083/mm3) e hiperglicemia (146 mg/dL). As demais dosagens bioquímicas encontravam-se dentro da normalidade. Foi realizada TC de tórax e de abdome com contraste, que detectou TVPo (Figura 1), sendo encaminhado imediatamente aos serviços da cirurgia vascular. A EPG evidenciou ausência de retorno venoso pela veia mesentérica superior e veia esplênica, tendo como local de oclusão a origem da veia porta (Figura 2).
A conduta inicial foi a realização de laparotomia exploratória devido ao quadro de abdome agudo, evidenciando extensa área necrótica de jejuno-íleo, com indicação de enterectomia com enteroanastomose, procedimento que removeu aproximadamente 60% do segmento jejunal do paciente. No dia seguinte, iniciou-se a recanalização do sistema porta por trombólise através de cateterismo seletivo de artéria mesentérica superior, com o ativador tecidual do plasminogênio recombinante (Alteplase), 10 mg em bolus e 40 mg a cada 24 horas por 3 dias, seguido de heparinização plena em bomba de infusão contínua. A EPG de controle no quarto dia de internamento (Figura 3) evidenciou retorno do fluxo sanguíneo em veia porta e melhora de perfusão hepática.
Figura 3 Esplenoportografia de controle pós-trombólise por cateterismo da artéria mesentérica superior (3A), evidenciando veia porta (à esquerda) e veia esplênica (à direita) pérvias (3B).
O seguimento pós-operatório foi realizado em UTI, onde o paciente permaneceu grave, sedado, sob ventilação mecânica, hemodinamicamente instável e em uso de droga vasoativa por 6 dias. Evoluiu para sepse grave. Foi transferido para um hospital em São Paulo, onde permaneceu em UTI por 19 dias e em uso de heparina de baixo peso molecular. Desenvolveu trombocitopenia induzida por heparina e, devido à demora no diagnóstico, complicou com novo episódio de TVP. Substituiu-se a heparina por fondaparinux, com normalização do número de plaquetas e melhora do quadro. Permaneceu internado em enfermaria por mais 20 dias, recebendo alta hospitalar com o uso de anticoagulante oral.
Durante investigação posterior, encontrou-se na família mutação da metilenotetrahidrofolato redutase, porém sem aumento da homocisteína. Também foi observado polimorfismo do gene inibidor do ativador do plasminogênio 1 (PAI-1), mas não se chegou a conclusão diagnóstica. Demais exames foram normais ou negativos, como mutação do fator V de Leiden, da antitrombina, proteínas S e C, anticardiolipina e anticoagulante lúpico.
A isquemia mesentérica por TVPo com infarto intestinal é uma complicação grave e temida, associada a uma mortalidade de 60%9, necessitando de abordagem cirúrgica com possibilidade de extensa ressecção intestinal. Sinais de peritonite constituem indicação de laparotomia exploradora e ressecção das áreas necróticas8,10-12. Evoluções para óbito ocorrem em 20-50% dos casos de infarto intestinal1,13,14. A TVPo é um caso raro e importante de abdome agudo vascular.
A confluência das veias esplênica e mesentérica superior, posteriormente ao colo do pâncreas, origina a veia porta, que drena o sangue proveniente do trato gastrointestinal abdominal e pâncreas para o fígado5. A interrupção desse fluxo promove o aparecimento de mecanismos compensatórios, que incluem a vasodilatação reflexa da artéria hepática e a formação de vasos colaterais, permitindo que o sangue contorne o local da obstrução15,16.
Quanto à etiologia, a TVPo classificada em não maligna e não cirrótica17 inclui malformação vascular e estados de hipercoagulabilidade1, como deficiência de antitrombina III, proteínas C e S, disfibrinogenemia e mutação do G20210A do gene da protrombina1,5,17,18. Cerca de 60% dos pacientes com trombose mesentérica apresentam passado de TVP5,7. O paciente do caso apresentava história pessoal e familiar de TVP. Suspeitou-se de uma TVPo de etiologia hereditária. Foram encontrados mutação da metilenotetrahidrofolatoredutase e polimorfismo do gene do PAI-1, sem conclusão sobre aumento de estado de hipercoagulabilidade, devido a valores normais de homocisteína. O número de casos de TVPo verdadeiramente “idiopática” reduziu devido à identificação de causa subjacente em 80% dos pacientes rigorosamente investigados14.
O quadro clínico da TVPo envolve complicações relacionadas à hipertensão portal em 30% dos casos1, como ascite, surgimento de varizes gástricas e esofágicas, e hemorragia digestiva alta1,7. A trombose de veia mesentérica é responsável por 5-15% dos quadros de isquemia mesentérica7,13,19. Inicialmente, há isquemia da mucosa, que, ao evoluir para infarto transmural, ocasiona peritonite difusa10.
A ultrassonografia é considerada a primeira linha para diagnóstico de desordens no sistema venoso portal, mas não foi utilizada devido ao quadro de abdome agudo. Apresenta especificidade e sensibilidade acima de 80%, que aumentam com o uso do Doppler2,20. Presença de material ecogênico aderido à parede do vaso determinando obstrução parcial da luz, colaterais venosas portais, aumento do calibre da veia porta e transformação cavernomatosa, ausência de fluxo no vaso ao Doppler e fluxo arterial de alta frequência devido à vasodilatação da artéria hepática são achados comuns20. A TC contrastada de abdome total ou a ressonância magnética com contraste podem ser utilizadas, cujos achados são: falha no enchimento da veia porta ou aumento da luz da veia2. Por ser mais rápida e menos incômoda ao paciente, o exame de escolha na presença de abdome agudo é a TC contrastada de abdome2.
A EPG possibilita melhor visualização do tamanho do trombo, localização e acometimento do fluxo sanguíneo, apresentando sensibilidade diagnóstica de 90%19. O procedimento envolve duas fases: primeiro a fase de injeção de contraste na artéria mesentérica superior, com visualização do território arterial, e depois a fase venosa, na qual obstrução venosa e presença de trombos intraluminais são registradas11. No caso descrito, a obstrução localizava-se na confluência das veias esplênica e mesentérica superior (Figura 2), cujo acometimento determinou isquemia mesentérica, que é a principal complicação da TVPo aguda4.
O tratamento da TVPo aguda é individualizado e depende da causa da trombose12. A Associação Americana para o Estudo das Doenças do Fígado recomenda, nos quadros agudos de pacientes não cirróticos e sem malignidade, heparinização plena por 2 a 3 semanas como terapia inicial, seguida de inibidores da vitamina K, de modo a manter a razão normalizada internacional (RNI) entre 2 e 3. Antes do início da anticoagulação, os pacientes devem ser avaliados quanto à presença de hipertensão portal, varizes esofágicas ou trombocitopenia devido ao hiperesplenismo, a fim de avaliar o risco de complicações hemorrágicas1,12. Cerca de 20% dos pacientes trombofílicos apresentaram recorrência da trombose21.
Quando há falha da terapia de anticoagulação ou acometimento da veia mesentérica superior, pode-se considerar o tratamento sistêmico com o uso de trombolítico associado a heparina de baixo peso molecular. Quando há contraindicação à anticoagulação sistêmica, a trombólise guiada por cateter é indicada12,22, cujo acesso pode ser direto (transjugular, trans-hepático e transesplênico) ou indireto, injetando-se trombolítico na artéria mesentérica superior22. Trombectomia cirúrgica é proscrita com alto índice de recorrência3. No caso descrito, a conduta escolhida foi trombólise guiada por cateter posicionado em artéria mesentérica superior, associada a heparinização plena. Evidência crescente apoia o uso da terapia trombolítica precoce em pacientes com TVPo aguda14. Altas taxas de recanalização foram vistas com trombólise em comparação ao tratamento conservador com anticoagulação14.
A TVPo, quando complicada com infarto intestinal, apresenta altos índices de morbimortalidade14. Devido ao quadro de abdome agudo, a ressecção é emergencial, e o tratamento da causa base evita o surgimento de novas áreas necróticas.
Não há estudos sobre quando a terapia trombolítica deve ser preferida à anticoagulação, mas há demonstração da eficácia da primeira quando a terapia com heparina não obteve sucesso, ficando reservada aos pacientes com TVPo grave e sem resposta à anticoagulação1. Devido à trombose extensa e grave, optou-se pela combinação de heparinização sistêmica e trombólise guiada por cateter com sucesso no reestabelecimento da circulação portal. Um possível transtorno protrombótico subjacente justificou o uso contínuo de anticoagulante oral14,23.