versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.3 São Paulo jul./set. 2019 Epub 23-Set-2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190054
A Estimulação Magnética Transcraniana (EMT) baseia-se no princípio de indução eletromagnética de campo elétrico na superfície do crânio, de magnitude suficiente para provocar despolarização de neurônios corticais. Efeitos adversos durante a estimulação não invasiva do cérebro são eventos considerados raros1, especialmente durante a administração de pulsos únicos e pareados, técnicas utilizadas para avaliar a excitabilidade cortical1,2. Estudos que utilizam EMT de pulso único podem avaliar o tempo de condução motora central e a cronometria causal nas relações cérebro-comportamento1. O uso do pulso pareado permite a avaliação de medidas de facilitação e inibição intracortical, bem como o estudo de interações córtico-corticais1. São considerados possíveis efeitos adversos com essas técnicas a ocorrência de cefaleia leve e transitória, alterações auditivas, cervicalgia e odontalgia3. Convulsões, hipomania aguda, histotoxicidade, alterações cognitivas, cerebrais e hormonais, como elevação dos níveis de TSH e lactato, não foram descritos em estudos com EMT pulso único e pareado, embora já tenham sido relatados durante protocolos de estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMT-r) de alta frequência e theta burst3.
O objetivo deste estudo foi apresentar um caso de cefaleia intensa com sinais autonômicos após EMT de pulso único em uma mulher jovem saudável.
Paciente do sexo feminino, 28 anos de idade, branca, destra, voluntariamente se apresentou para participar de pesquisa no laboratório de eletroestimulação funcional da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em um trabalho sobre a avaliação de excitabilidade cortical motora após a realização de injeção de lidocaína no músculo primeiro interósseo dorsal. Após a aplicação de questionário de segurança e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, essa participante foi incluída no estudo. Negou história de comorbidades, uso de fármacos, drogas recreativas, consumo recente de cafeína ou cigarros, privação de sono, dispositivos implantáveis no cérebro, passado de convulsões e gravidez. Quando questionada a respeito da data da última menstruação, não se recordava da data exata, mas referiu estar no período ovulatório. Essa participante já havia sido voluntária em outros estudos envolvendo avaliação com EMT sem nenhuma intercorrência.
A excitabilidade e organização cortical foram avaliadas com aparelho de EMT (BIStim, Magstim, Reino Unido). Após limpeza com álcool e solução abrasiva, os eletrodos autoadesivos de eletromiografia (EMG) (Miotec, Brasil) foram posicionados nos ventres musculares dos músculos primeiro interósseo dorsal (PID), abdutor curto do polegar (ACP) e abdutor do dedo mínimo (ADM) da mão direita (dominante) da participante, que foi posicionada sentada confortavelmente em uma cadeira, e mantida acordada durante todo o protocolo de avaliação. Uma touca de polyester, marcada previamente com uma grade de 1x1cm orientada no plano cartesiano, foi posicionada na cabeça da participante e serviu como referência para a marcação do hotspot. Foi utilizada uma bobina em forma de oito na superfície da região frontoparietal à esquerda, em área correspondente ao córtex motor primário. Os pulsos monofásicos simples e pareados foram administrados a cada seis segundos, sendo a atividade da EMG amplificada e convertida para sinal digital (1401 e 1902, CED, Reino Unido) e monitorada em tempo real através do software Signal (CED, Reino Unido).
Para a identificação do hotspot, utilizou-se a média de 5 pulsos em pontos sob a região descrita, com o objetivo de obter a melhor resposta no tamanho do potencial evocado motor (PEM) no músculo PID. Após essa etapa, seguiu-se a determinação do limiar motor em repouso (LMR), considerando a menor intensidade do aparelho para gerar um PEM com amplitude de 50 µVolts pico-a-pico. Esse limiar foi estimado em 4 momentos: antes do procedimento, imediatamente após, 30 minutos e uma hora após o procedimento. Em cada um desses momentos, foram realizados 60 pulsos distribuídos randomicamente entre 20 pulsos a 100% do LMR, relativos ao PEM; 20 pulsos a 80% do LMR, com intervalos de 2ms, correspondendo à medida de inibição intracortical de curta Duração, e 20 pulsos a 120% do LMR, com intervalos de 15ms, relativos às estimativas de Facilitação Intracortical, totalizando ao final do experimento 240 pulsos.
O procedimento, realizado por um anestesiologista, foi escolhido de forma aleatória através de sorteio de envelopes selados. A participante foi submetida ao agulhamento a seco no músculo PID da mão dominante e não houve injeção de nenhuma substância (Tabela 1).
Tabela 1 Medidas eletrofisiológicas obtidas através de estimulação magnética transcraniana antes e após agulhamento a seco no músculo primeiro interósseo dorsal da mão dominante
Baseline | Imediatamente após o agulhamento | 30 min após o agulhamento | 1h após o agulhamento | |
---|---|---|---|---|
LMR | 50 | 52 | 51 | 48 |
80% do LMR | 40 | 42 | 41 | 38 |
120% do LMR | 59 | 63 | 61 | 58 |
LMR = limiar motor em repouso.
Durante a aplicação dos pulsos, a participante não referiu qualquer queixa. Entretanto, no primeiro minuto após o término da última coleta de dados, a participante relatou cefaleia de leve intensidade que rapidamente progrediu para cefaleia intensa, hemicraniana à esquerda. Em associação à cefaleia, apresentou náuseas, fotofobia, hiperemia conjuntival, lacrimejamento e edema palpebral ipsilaterais. Negou episódios prévios semelhantes, porém referiu histórico irregular de cefaleia no período pré-menstrual (média de três a quatro episódios por ano), entretanto, sem acompanhamento médico. Dois anestesiologistas e dois fisioterapeutas estavam presentes durante a coleta e prestaram atendimento à participante, que foi colocada em decúbito dorsal horizontal numa maca e teve os sinais vitais checados, dentro dos limites da normalidade. Foi administrado dipirona por via oral. A participante ficou em observação por aproximadamente 60 minutos, até referir melhora da cefaleia, sendo então liberada e orientada a contatar a equipe médica envolvida na pesquisa em caso de retorno dos sintomas. Algumas horas após ser liberada, a participante apresentou retorno da cefaleia, com as mesmas características anteriores, porém nesse momento, acompanhada de náuseas e vômitos. Foi orientada a fazer uso de naproxeno (500mg), ciclobenzaprina (5mg) e ondansetron (4mg) por via oral, com alívio completo dos sintomas, além de acompanhamento ambulatorial com neurologista. Dois dias após o ocorrido, a participante apresentou fluxo menstrual. Realizou investigação através de ressonância nuclear magnética de crânio e eletroencefalograma, sem alterações.
O uso de dispositivos de EMT tem se tornado cada vez mais comum tanto em pesquisa básica quanto em terapias clínicas2. Na aplicação da estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMT-r), muitos parâmetros de segurança são sugeridos, como número total de pulsos, duração e intervalos entre os pulsos, intervalos entre as sessões de estimulação, tipo de bobina e local de estimulação3. Na aplicação da EMT de pulso único, a amplitude dos pulsos, em teoria, não provoca alterações terapêuticas. Logo, não há modelos de segurança bem estabelecidos para guiar protocolos de avaliação com EMT pulso único, considerada uma técnica com baixa incidência de efeitos adversos e com baixa demanda de atenção de estudos sobre segurança4. Entretanto, há estudos que relatam a presença de efeitos adversos quando são usadas intensidades supralimiares (>100% do LMR) em EMT de pulso único5. Além disso, mais que apenas requisitos técnicos, outros fatores podem influenciar a resposta da EMT, sendo muito mais difíceis de ser controlados, porém não menos importantes: anatomia do crânio, impedância elétrica, idade, sexo, estado cognitivo e afetivo, uso de fármacos, níveis hormonais, concentração de neurotransmissores e expressão de receptores, fatores genéticos e ciclo circadiano5 .
A cefaleia em protocolos de EMT com pulso único é considerada ocorrência rara e pouco descrita na literatura6. No último estudo sobre segurança e EMT foi descrito que a presença de cervicalgia, odontalgia e desconforto sob a região onde é posicionada a bobina são possíveis de ocorrer com pulsos únicos1. Um estudo publicado em 2013 comparou a incidência de efeitos adversos entre EMT-r e EMT pulso único com resultados diferentes dos que são descritos na literatura7. Neste trabalho, a incidência de efeitos adversos foi mais frequente em protocolos com pulso único. A explicação sugerida para essa ocorrência é o perfil de participante de protocolos de EMT pulso único, muitas vezes ingênuos ou com fantasias em relação ao mecanismo de ação da EMT8. No caso da ocorrência de cefaleia deste relato de caso, esse argumento não pode ser aplicado, uma vez que a participante já havia participado de outros protocolos de estudo e conhecia os efeitos da EMT.
A ocorrência de cefaleia trigeminal, com sinais e sintomas muito semelhantes aos que a participante deste estudo apresentou, foi descrita após a aplicação de protocolo de EMT-r9. Neste caso específico, a etiologia pode ser estabelecida através de teste terapêutico realizado com a administração de oxigênio e alívio imediato dos sintomas. O diagnóstico do tipo de cefaleia apresentado pela participante, se cefaleia trigeminal ou enxaqueca com sinais autonômicos10 foi prejudicado neste relato, uma vez que a coleta de dados foi realizada numa unidade extra-hospitalar e sem a presença de neurologista. Dessa forma, houve prejuízo na avaliação do caso, uma vez que o diagnóstico diferencial foi realizado de forma retrospectiva.
Embora de ocorrência rara, os efeitos adversos são possíveis com o uso da EMT pulso-único. É fundamental que os pesquisadores estejam familiarizados com as ocorrências mais comuns, de modo a identificar e dar seguimento adequado a cada caso.