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CENÁRIOS DA SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

CENÁRIOS DA SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

Autores:

Isadora Alves Cotrim,
Leonice de Jesus Silva,
Raquel Souzas

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.33 no.10 Rio de Janeiro 2017 Epub 26-Out-2017

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00143517

O livro Cenários da Saúde da População Negra no Brasil foi sistematizado para mapear novos olhares no campo de pesquisa em saúde da população negra. Discute esse aspecto por meio de uma linguagem acessível, analisando diversos marcadores sociais.

O primeiro artigo, de Isildinha Batista Nogueira, discute a saúde mental da população negra frente às transformações identitárias, o “ser negro” e a persistência dos estigmas impostos pela sociedade, herdados culturalmente. Considera que o processo psicológico de construção da identidade negra se dá a partir da negação de si mesmo, e resulta em grande sofrimento na lida com a hostilidade que há no mundo contemporâneo. A história do processo de escravidão no Brasil durou cerca de três séculos e, além da violência brutal e simbólica, o negro foi destituído de sua história e memória social e coletiva. A perda de referenciais históricos, sociais e políticos, promoveu um processo de transculturação para uma nova identidade, uma espécie de (re)negociação identitária como forma de sobrevivência. Nogueira destaca o espaço do corpo como lugar de inscrição das histórias pessoais, coletivas e do racismo. Relata que não é incomum a despersonificação do sujeito negro e a produção de casos psiquiátricos, compreensíveis apenas quando levamos estes fatores em consideração.

Regina Marques de Souza Oliveira observa as especificidades da infância negra e indígena frente ao racismo. Aponta para o legado da escravização como um elemento importante de análise e abordagem das questões de saúde mental de povos descendentes de africanos, indígenas etc. Para a autora, a saúde mental é condição primordial no desenvolvimento da sociedade, e é necessário o aprimoramento dos níveis de discernimento para promover e produzir indivíduos saudáveis.

Autonarrativas e os impactos do racismo na saúde mental da população negra: uma reflexão, de Elisabete Aparecida Pinto, Claude Isabelle, Gilmara Lisboa e Raquel de Oliveira Mendes, reconstrói experiências das autoras como mulheres negras e abarca as histórias afetivas de homens e mulheres negros como parte de uma memória comum, partilhada por intermédio da linguagem oral. Discute também o histórico de instituições que criaram as primeiras iniciativas em cuidado à saúde mental na população negra e que produziram suportes experimentais no país: a Geledés, a Fala Preta!, e a AMMA Psique e Negritude. Na seção A Formação e Atuação dos Principais Responsáveis pela Saúde Mental, psicólogos e psiquiatras colocam em foco a história da psicologia e das ciências. O legado eugenista e higienista no processo de formação dos profissionais psicólogos e médicos, e o impacto nas dimensões afetivas da população negra no Brasil. As experiências desenvolvidas no âmbito das ONGs são importantes por apontar novos desafios no campo de exercício profissional e de pesquisa em saúde mental.

Em Meninas negras e sexualidade, Mary Garcia Castro propõe reflexões à luz do grupo de funk carioca composto por meninas negras, que começou a fazer sucesso em 2013. De acordo com a autora, “são meninas, negras de incrível flexibilidade e arte, que com malabarismos (...) apresentam espetáculos, que para alguns, dentre os quais me incluo indicam criatividade por meio da expressão corporal” (p. 98). Para além desse debate moralista, Castro quer levantar outro debate sobre a discriminação que as mulheres negras sofrem e a fetichização midiática de seus corpos. Segundo a autora, a beleza negra aclamada é a “negra construída, a mulher não muito negra e com determinadas características, protótipo do erótico fronteiriço ao pornográfico, a mulata gostosa” (p. 99). Esse ideal socialmente construído tem impactos problemáticos na vida real: minam a autoestima dessas mulheres e contribuem para a reprodução de estereótipos e o estigma de objeto sexual, que muitas vezes é adotado por estas como forma de se “empoderar” e se enquadrar no padrão.

No capítulo 5, em Desigualdades em Saúde: Questões Urbanas Raciais, Reinaldo José de Oliveira analisa a literatura sobre as desigualdades urbanas e raciais em intersecção com as desigualdades em saúde. Propõe-se a investigar a produção sobre o espaço urbano e a cidade, mais especificamente a segregação urbana e racial, a questão da saúde e as relações raciais neste contexto. O fenômeno da segregação é um objeto de análise marcadamente transdisciplinar, de dimensões objetivas e subjetivas.

Em Saúde da População Negra e Militância sobre a Perspectiva de Gênero, Simone Cruz e Laura López refletem sobre a atuação do movimento negro e de mulheres negras no que diz respeito à saúde e ao lugar que esta pauta ocupa na agenda política, com base num estudo qualitativo realizado em Porto Alegre (Rio Grande do Sul). A análise é pautada na compreensão do racismo associado ao biopoder.

O artigo do capítulo 7, Direitos Sociais e Ações Afirmativas: A Saúde da População Negra do Recôncavo da Bahia, de Valeria dos Santos Noronha Miranda e Márcia da Silva Clemente, versa sobre as ações afirmativas como tentativa de reparação dos danos causados à população negra no Brasil e busca discutir as possíveis causas das desigualdades étnico-raciais em saúde na Região do Recôncavo, lugar com população majoritariamente negra, economicamente decadente e com municípios que apresentam sérias dificuldades de acesso e utilização dos serviços de saúde.

O artigo Interseccionalidade e a Saúde das Mulheres Negras no Brasil e nos Estados Unidos: Uma Proposta pra Equidade em Saúde corresponde ao capítulo 8 do livro e foi escrito por Edna Maria de Araújo, Vijaya Krisna Hogan e Kia Lilly Caldwell. A proposta foi revisar a literatura sobre a abordagem interseccional como marco teórico para a realização de uma pesquisa entre a Universidade Estadual de Feira de Santana e a Universidade da Carolina do Norte (Chapel Hill, Estados Unidos), considerando-se os aspectos interseccionais de raça, classe, gênero e história de vida para compreender as iniquidades na saúde das mulheres americanas e brasileiras. A teoria da interseccionalidade remonta das décadas de 1970 e 1980, e foi articulada por estudiosas negras da área das Ciências Sociais, como Kimberlè Williams, Deborah King etc. Mas foi com Crenshaw (1991) que os trabalhos nessa vertente despontaram e ficaram conhecidos. A questão da interseccionalidade é colocada quando múltiplos fatores se sobrepõem, novos estressores, assim como novas identidades são formadas, portanto, mulheres negras de classe baixa têm um nível mais elevado de estresse e risco de saúde do que outros sujeitos que não somam todas estas condições.

Na parte final do livro, A Humanização na Atenção à Saúde e às Desigualdades Raciais, Luís Eduardo Batista, Maria Lúcia da Silva, Maridite Cristovão Gomes de Oliveira e Jussara Dias, por meio do levantamento de uma série de pesquisas, concluíram que as desigualdades raciais interferem diretamente na saúde reprodutiva feminina e no acesso a serviços de atenção à saúde. A dificuldade gerada para a reflexão do problema do racismo nas instituições de saúde corrobora as teses que apontam para o redirecionamento das políticas públicas e do Sistema Único de Saúde para pensar o problema do racismo como um elemento estruturante também no âmbito das questões em saúde.

Finalmente, o livro Cenários da Saúde da População Negra no Brasil contribui substancialmente para a compreensão de questões importantes em saúde da população negra, e abarca elementos analíticos e interpretativos que aprofundam o debate sobre o impacto do racismo nas subjetividades negras, ao mesmo tempo em que reorienta para a construção de novas práticas de saúde, especialmente em saúde mental.