Print version ISSN 0103-2100On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.28 no.1 São Paulo Jan./Feb. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201500004
A emergência psiquiátrica pode ser descrita como uma condição no qual o indivíduo apresenta uma necessidade de saúde mental intensificada, relacionada a um distúrbio de pensamento, emoção ou comportamento, necessitando de atendimento médico imediato para evitar prejuízos maiores à saúde mental, física e social.( 1 )
A avaliação emergencial tem como objetivo identificar os riscos, os fatores desencadeantes e mantenedores, a presença de suporte familiar e social, bem como a realização do diagnóstico diferencial.( 2 )
Os estudos sobre a utilização dos serviços de emergência psiquiátrica pelo público jovem têm destacado que este setor pode ser a primeira e até mesmo a única fonte de cuidado à saúde desta população,( 1 , 3 , 4 ) logo se constitui num importante local para a sensibilização em relação ao consumo de substâncias, comportamentos de risco e consequências médicas e psicossociais.
Vale ressaltar que no caso das crianças e adolescentes, as informações sobre a utilização do sistema de saúde bem como continuidade dos cuidados em serviço de saúde mental de base comunitária é um dos fatores essenciais para o bom prognóstico de saúde e manutenção dos vínculos e laços sociais.( 4 , 5 )
Nas últimas décadas houve aumento da frequência de utilização dos serviços de emergência psiquiátrica por crianças e adolescentes. Este fato tem sido relacionado a diferentes fatores, como aumento da prevalência dos problemas de saúde mental nessa faixa etária, dificuldade de acesso aos serviços de base comunitária e estigma em relação aos problemas de saúde mental nos demais serviços de saúde.( 1 , 3 , 5 , 6 )
A principal causa dos atendimentos de emergência psiquiátrica às crianças e adolescentes é o comportamento agressivo que consiste num sinal pouco específico, isto é, presente praticamente em todos os diagnósticos psiquiátricos.( 1 , 2 )
Por outro lado, o abuso ou intoxicação por substâncias tem sido destacado também como importante preditor para utilização dos serviços de emergência psiquiátrica nesta população.( 1 , 7 )
Assim objetivou-se descrever as características das crianças e adolescentes que utilizaram o serviço de emergência psiquiátrica devido aos transtornos pelo uso de substâncias analisando a freqüência e desfechos desses atendimentos no Hospital das Clínicas de Marília–SP, no período de 2000 a 2011.
Trata-se de um estudo transversal descritivo exploratório realizado a partir de dados obtidos no Núcleo Técnico de Informação do Hospital de Clínicas de Marília, referentes ao período de 2000 a 2011 a população de pacientes menores de 18 anos de idade com diagnóstico relacionado ao uso de substâncias.
Para coleta dos dados foi utilizado um roteiro com os seguintes itens: características sociodemográficas, diagnóstico, ano do atendimento e desfecho (alta, internação, encaminhamento, retorno a consulta no próprio pronto-socorro).
Os dados foram tabulados no Excel e foram realizados diferentes cruzamentos com auxílio do analista do referido núcleo de informação. Estes dados foram organizados em tabelas e gráficos e as análises descritivas bem como algumas medidas de dispersão empreendidas.
Em relação aos critérios diagnósticos utilizou-se como parâmetro a Classificação Internacional de Doenças - CID10, com os diagnósticos F10 - Transtornos mentais e comportamentais devidos ao álcool; F11 - Transtornos mentais e comportamentais devidos aos opiáceos; F12 - Transtornos mentais e comportamentais devidos aos canabióides; F13 - Transtornos mentais e comportamentais devidos aos sedativos; F14 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de cocaína; F15 - Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de outros estimulantes, inclusive a cafeína; e F17 - Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de fumo; e F19 - Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
No período de 2000 a 2011 foram realizados 4.198 atendimentos de emergência psiquiátrica para crianças e adolescentes no Hospital de Clínicas de Marília. Destes atendimentos, 1.007 foram por problemas relacionados ao uso de substâncias, ou seja, 24% do total de atendimentos às crianças e adolescentes atendidos pela especialidade de saúde mental em urgência e emergência.
Todos esses atendimentos foram efetivados para crianças e adolescentes dos três aos 17 anos e o perfil destes sujeitos, de acordo com o referido pelo acompanhante está descrito na tabela 1.
Tabela 1 Distribuição dos atendimentos de acordo com o perfil sociodemográfico dos usuários
Características | n(%) | Características | n(%) |
---|---|---|---|
Gênero | Escolaridade* | ||
Masculino | 731(72,6) | Ensino Fundamental | 823(81,7) |
Feminino | 275(27,3) | Ensino Médio | 121(12) |
Faixa etária | Nível Superior | 3(0,3) | |
3 a 5 anos | 6(0,6) | Nenhum | 51(5,1) |
6 a 8 anos | 5(0,5) | Não informado | 9(0,9) |
9 a 11 anos | 3(0,3) | Religião | |
12 a 14 anos | 126(12,5) | Católico | 751(74,6) |
15 a 17 anos | 867(86,1) | Evangélico Protestante | 186(18,5) |
Cor | Espírita | 14(1,4) | |
Branco | 730(72,5) | Ateu | 04(0,4) |
Pardo | 208(20,6) | Outro | 05(0,5) |
Negro | 66(6,5) | Nenhum | 15(1,5) |
Amarelo | 2(0,2) | Não informado | 32(3,2) |
Não informado | 1(0,1) |
*Refere-se ao nível que o paciente estava cursando no momento do atendimento Fonte: Núcleo Técnico de Informação do Hospital das Clínicas. Marília-SP, 2012.
A distribuição dos referidos atendimentos de acordo com os diagnósticos são apresentados na tabela 2.
Tabela 2 Atendimentos realizados aos menores de 18 anos de acordo com CID10 relacionados ao uso de substâncias nos respectivos anos
CID | 2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
F10 | 18 | 14 | 20 | 33 | 18 | 25 | 12 | 8 | 11 | 5 | 5 | 11 | 180 |
F11 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 2 |
F12 | 4 | 4 | 9 | 4 | 6 | 2 | 7 | 8 | 2 | 5 | 0 | 13 | 64 |
F13 | 2 | 1 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 7 |
F14 | 24 | 12 | 21 | 10 | 7 | 9 | 10 | 8 | 11 | 16 | 21 | 31 | 180 |
F15 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 |
F17 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 1 |
F18 | 1 | 1 | 0 | 1 | 1 | 0 | 1 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 6 |
F19 | 31 | 42 | 68 | 42 | 32 | 28 | 39 | 75 | 55 | 48 | 37 | 69 | 566 |
Total | 81 | 75 | 120 | 90 | 64 | 64 | 69 | 100 | 80 | 74 | 65 | 125 | 1.007 |
Fonte: Núcleo Técnico de Informação do Hospital das Clínicas. Marília-SP, 2012.
A média de atendimentos foi de 84 por ano. Quanto aos desfechos, sua distribuição é apresentada na tabela 3.
Tabela 3 Distribuição dos desfechos dos atendimentos de acordo com os diagnósticos
CID | Desfecho | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Internação n(%) | Encaminhamento n(%) | Retorno n(%) | Alta n(%) | Sem informação n(%) | ||
F10 | 31(7,30) | 12(6,7) | 5(2,8) | 131(73,0) | 1(0,5) | 180 |
F12 | 14(22,0) | 5(7,8) | 2(3,1) | 42(65,6) | 1(1,6) | 64 |
F11/13 F15/17/18 | 7(41,2) | 2(11,7) | 1(5,9) | 6(35,3) | 1(5,9) | 17 |
F14 | 64(35,5) | 12(6,6) | 9(5,0) | 90(50,0) | 5(2,7) | 180 |
F19 | 196(34,6) | 36(6,3) | 23(4,6) | 306(54) | 5(0,9) | 566 |
Subtotal | 312(31,0) | 67(6,6) | 40(4,0) | 575(57,1) | 13(1,3) | 1007 |
Fonte: Núcleo Técnico de Informação do Hospital das Clínicas. Marília-SP, 2012.
Por se tratar de um estudo quantitativo utilizando dados secundários, apontamos como limites do estudo, em primeiro lugar a impossibilidade de delimitar a fidedignidade dos registros que compõem a base de dados do Núcleo Técnico de Informação. Em segundo lugar, destaca-se que os atendimentos por overdose não estão computados nos dados apresentados por serem consideradas emergências clínicas decorrentes de intoxicação, isto é, na base de dados consultada não são discriminadas as intoxicações decorrentes especificamente do uso de substâncias psicoativas.
Ressalta-se, no entanto que os resultados do presente estudo contribuem com informações extremamente importantes para o contexto das políticas e práticas em saúde relacionadas ao uso de substâncias que consiste numa prioridade de saúde pública atual. O estudo fornece um panorama sobre a emergência desta problemática entre os adolescentes apontando a dimensão desta demanda no âmbito das emergências psiquiátricas, os diagnósticos mais prevalentes bem como a faixa etária mais crítica destes jovens.
Considerando o papel central da enfermagem nestes setores, os resultados possibilitarão uma reflexão crítica sobre a sua responsabilização em relação às possíveis atividades preventivas, a adequação do cuidado de enfermagem a essa clientela e, sobretudo sua responsabilidade em relação ao desfecho destes atendimentos.
A quantidade de atendimentos aos menores de 18 anos com demandas decorrentes de uso de substâncias corresponde a 24% do total de atendimentos de emergência psiquiátrica a crianças e adolescentes pela equipe do pronto socorro estudado. Esse número é expressivo considerando a fase de vida dessa clientela que está sujeita a influências no modo de viver devido as alterações biológicas, cognitivas, emocionais e sociais que predominarão os futuros hábitos de vida adulto.( 1 , 4 )
A maioria dos adolescentes e jovens que fazem uso abusivo de drogas tem múltiplos antecedentes psicossociais como dificuldade de aprendizado, conflitos familiares e problemas sociais, além disso, o uso de substâncias nessa faixa etária está, muitas vezes, associado a algumas comorbidades psiquiátricas como a depressão, transtornos ansiosos que conjuntamente com o abuso de drogas são considerados importantes fatores de risco de suicídio entre estes jovens.( 8 - 10 )
Os anos que apresentaram maior número de atendimentos desta demanda, nos 12 anos analisados, foram: 2011, 2002, 2007 e 2003 com respectivamente 125, 120, 100 e 90 atendimentos (tabela 2). Esse aumento no número de atendimentos pode estar relacionado a diversos aspectos como aumento do número de dependentes de uma forma geral, melhoria de acesso, ineficiência dos dispositivos de caráter comunitário ou ainda reflexo da maior visibilidade dada à questão das drogas pelas políticas públicas.
Estudo desenvolvido no Reino Unido descreve um aumento de atendimentos psiquiátricos nas unidades de emergência e apontam o abuso de drogas como segunda principal demanda, seguida das tentativas de suicídio.( 11 ) Alguns autores( 2 , 12 , 13 ) descrevem que o padrão de consumo tem aumentado nos últimos anos e que, por exemplo, no caso do álcool, as unidades de emergência têm recebido cada vez mais pacientes nessa faixa etária com problemas relacionados ao alto consumo (overdose, intoxicação alcoólica, ferimentos).
Nesta perspectiva, considera-se que os serviços de emergência têm um papel fundamental na detecção precoce dos problemas relacionados ao uso abusivo de drogas entre adolescentes e faz-se necessário o desenvolvimento de protocolos efetivos de atuação nestes serviços incluindo a conduta a ser adotada, fluxos de referência e contra-referência e atenção especial aos fatores psicossociais inerentes a esta demanda.( 5 , 12 )
Em relação à idade e gênero prevalentes no presente estudo condizem com os resultados de outros estudos, em relação ao consumo de substâncias entre adolescentes.( 4 , 9 , 14 ) Dentre os pesquisados, a idade com o maior número de atendimentos é 16 anos, com 617 atendimentos, seguidos por 134 aos 15 anos e 116 aos 17 anos.
Vale ressaltar que a idade de experimentação de drogas ilícitas ocorre com maior prevalência aos 13 e 14 anos entre as meninas e a partir dos 15 anos entre os meninos.( 9 , 14 ) As razões associadas ao consumo destas substâncias entre esses adolescentes são obtenção de prazer, adequação às atitudes e valores do grupo de pares e diminuição das preocupações cotidianas; descreve-se ainda que muitos desses jovens têm um histórico prévio de maus-tratos e negligência na infância e/ou pais dependentes de álcool e ou outras drogas.( 8 , 10 , 15 ) Cabe ressaltar que possuir pais usuários de substâncias é descrito por alguns autores como um fator associado com maior frequência de uso dos serviços de emergências pelas crianças.( 15 )
De acordo com os resultados prevaleceram os atendimentos aos adolescentes entre 12 e 17 anos de idade, correspondendo com a faixa de escolaridade, entre o 1º e o 2º grau (conforme tabela 1), no entanto cabe ressaltar as possíveis consequências do uso no desempenho escolar dos sujeitos dessa faixa etária. Muitos estudos têm apontado a relação entre o consumo destas substâncias e a defasagem e ou evasão escolar.( 9 , 11 , 16 , 17 )
Em relação à religião a que pertencem, observou-se que 74,6% se consideram católicos, seguidos por 18,5% de evangélicos/protestantes. Convém destacar que no Brasil ao referir uma religião específica não significa necessariamente a efetivação da prática religiosa.
Alguns estudos questionam a efetividade da religião enquanto fator protetor( 18 , 19 ) o que de fato corrobora os resultados do presente estudo que aponta que a maioria dos sujeitos proferem uma religião, no entanto estão em situação de dependência.
Destaca-se que as normas éticas e sociais apreendidas nos diferentes contextos diários se conformam numa espécie de “espiritualidade” capaz de fazer uma contenção moral em relação aos estilos de vida insalubre.( 18 , 19 )
De acordo com a tabela 2 os diagnósticos de maior prevalência no período de 12 anos foram respectivamente: F19 - Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas; F10 – Transtornos mentais e comportamentais devidos ao álcool; F14 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de cocaína e F12 - Transtornos mentais e comportamentais devidos aos canabióides.
Alguns autores descrevem que a combinação mais utilizada sempre envolve o álcool, no entanto tal combinação, bem como o padrão de consumo pode variar de acordo com a região geográfica destacando-se como principais drogas de poli consumo a maconha, cocaína e o tabaco.( 9 , 14 )
A pedra de crack é a mais utilizada tanto por homens como por mulheres, por ser mais barata e mais fácil de combinar, principalmente com a maconha e o tabaco. A maconha está entre as favoritas para as misturas em função do baixo preço, facilidade de adquirir e pelas várias formas de ser consumida.( 14 )
De um modo geral estas combinações são feitas visando aumentar a experiência psicoativa e/ou com o intuito de que a segunda substância consumida contrabalanceie os efeitos negativos da primeira droga.( 9 , 14 , 18 ) Assim depreende-se que os adolescentes podem estar em busca de combinações entre as drogas para melhorar seu efeito ou expandir as formas particulares de consumo.
Outro resultado relevante do presente estudo é o número dos atendimentos de emergência decorrente do consumo de álcool que assume o segundo lugar, seguido pelo uso de cocaína. Tendo em vista que o álcool é uma droga lícita de fácil acesso, consumida tanto por adultos quanto por adolescentes e com aceitação social. Isso sinaliza que as estratégias de redução da oferta e demanda provenientes das atuais políticas de álcool e drogas carecem de medidas que garantam sua consolidação.
Em relação aos desfechos, observou-se que a maioria são altas hospitalares e internações, isto é, há um percentual mínimo de encaminhamentos para outros serviços. Tal resultado demonstra a pouca atuação deste setor como porta de entrada da rede de atenção psicossocial, principalmente por se tratar de transtornos de curso crônico que requerem o acompanhamento, seja em serviços especializados ou na atenção primária com retaguarda psiquiátrica.
Alguns estudos têm destacado que os serviços de emergência psiquiátrica tem o papel de viabilizar o acesso ao sistema de saúde mental,( 1 , 4 ) no entanto este tipo de conduta de não encaminhamento corrobora o aumento de pessoas diagnosticadas sem tratamento, cronificando e/ou aumentando a gravidade do transtorno e suas consequências.
A partir deste estudo foi possível caracterizar as crianças e adolescentes que utilizaram o serviço de emergência psiquiátrica devido aos transtornos pelo uso de substâncias. Tratam-se principalmente de jovens entre 12 e 17 anos sendo a maioria com diagnóstico de policonsumo. Quanto à frequência de atendimentos destacou-se o ano de 2011 com 125 atendimentos. Identificou-se também os diferentes desfechos destes atendimentos, destacando as implicações do reduzido número de encaminhamentos dificultando a continuidade dos cuidados destes pacientes.