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Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica em pauta: contribuições da sociedade para a 16ª Conferência Nacional de Saúde

Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica em pauta: contribuições da sociedade para a 16ª Conferência Nacional de Saúde

Autores:

Silvana Nair Leite,
Fernanda Manzini,
Adelir da Veiga,
Maria Eufrásia Oliveira Lima,
Marco Aurélio Pereira,
Suetônio Queiroz de Araujo,
Ronald Ferreira dos Santos,
Jorge Antonio Zepeda Bermudez

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.12 Rio de Janeiro dez. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182312.29962018

Introdução

O Pleno do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em dezembro de 2017, aprovou a Resolução nº 568/2017 que convoca a 16ª Conferência Nacional de Saúde, a ser realizada no ano de 2019, referendada pelo Decreto nº 9.463, de 8/8/20181,2. A 16ª Conferência terá como tema central “Democracia e Saúde: Saúde como Direito e Consolidação e Financiamento do SUS”. Essa conferência está sendo referida como a “8ª+8=16ª”, em referência à 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 e considerada um marco na história das conferências. A oitava foi a primeira depois da redemocratização do país em âmbito nacional e aberta à sociedade. O resultado desse momento histórico gerou as bases para a seção “Da Saúde” na Constituição Brasileira de 1988, que consolidou a saúde como direito de todos e dever do Estado e o Sistema Único de Saúde (SUS).

A realização de conferências é um dos instrumentos do princípio do SUS “participação da comunidade na gestão do SUS”, juntamente com a instituição e funcionamento dos Conselhos de Saúde3. Os Conselhos e Conferências de Saúde são espaços privilegiados para a explicitação de necessidades e para a prática do exercício da participação e do controle social sobre a implementação das políticas de saúde em todas as esferas de governo4-6.

A participação da sociedade na gestão do SUS, no entanto, não está ainda plenamente incorporada nas suas práticas nem da gestão pública. Nessa perspectiva, o controle dos segmentos que representam todas as classes sociais, mas com mais dificuldade para aquelas menos privilegiadas e mais dependentes das políticas públicas, sobre as ações do Estado e sobre o destino dos recursos públicos, torna-se um desafio importante na realidade brasileira para que se crie resistência à redução de políticas de saúde, à sua privatização e à sua mercantilização. É fundamental instituir e proporcionar condições para que a democracia participativa se efetive na prática e que a sociedade civil se torne protagonista nesse processo de controle social em políticas públicas de saúde, pleiteando constituir um Brasil, como referência mundial, em boas práticas na área de fiscalização e controle social em saúde4.

Ao longo dos 30 anos do SUS, algumas importantes estratégias têm sido desenvolvidas para ampliar a ação do controle social sobre a definição de políticas públicas, a exemplo das conferências temáticas de saúde da mulher, do trabalhador, do indígena e outras. Em 1994 e 2004 ocorreram a 1ª e a 2ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde7 e em 2003, a 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica8. Esses foram importantes espaços de construção coletiva de diretrizes para as políticas públicas nesses setores, além de possibilitarem a compreensão social de que, muito antes de serem temas acadêmicos ou circunscritos a cientistas e gestores, são questões que precisam da interferência e da contribuição da sociedade, uma vez que é sobre ela que seus resultados impactam.

A Política Nacional da Assistência Farmacêutica, promulgada em 2004 pelo CNS, foi construída com base nas discussões e nas propostas oriundas da 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica. É a primeira política pública instituída pelo controle social, por meio do conselho.

Em 2014, a Escola Nacional dos Farmacêuticos, a Federação Nacional dos Farmacêuticos e o Conselho Nacional de Saúde, em parceria com o Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde – DAF/SCTIS/MS, realizaram ampla avaliação da Política Nacional da Assistência Farmacêutica, depois de transcorridos 10 anos de sua promulgação, visando a identificar os avanços e desafios do setor9.

Em 16 oficinas de avaliação, realizadas em todo o país, mais de 2.000 participantes identificaram forças, fraquezas, ameaças e oportunidades nos temas: (1) Acesso universal, (2) Recursos Humanos, (3) Gestão da Assistência Farmacêutica, (4) Financiamento e (5) Ciência e Tecnologia. O processo de avaliação proporcionou o engajamento de diversos setores da sociedade na reflexão e discussão sobre a Assistência Farmacêutica. A ampliação do acesso aos medicamentos e o crescimento da participação dos farmacêuticos nos serviços de saúde, em especial da atenção básica, são exemplos apontados como forças/oportunidades da Política Nacional da Assistência Farmacêutica. Já problemas na gestão dos serviços e a pouca valorização do farmacêutico são apontados, entre outros, como fraquezas/ameaças da política9.

Para a preparação da 16ª Conferência Nacional, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a realização de atividades temáticas, em oito áreas, a serem coordenadas pelas Comissões Intersetoriais do Conselho. Tais atividades deverão ser realizadas de forma articulada com as questões transversais de equidade, saúde de pessoas com patologias, ciclos de vida, promoção, proteção e práticas integrativas, alimentação e nutrição e educação permanente, distribuídas pelos seguintes eixos: I. Saúde das Pessoas com Deficiência; II. Assistência Farmacêutica e Ciência e Tecnologia; III. Saúde Bucal; IV. Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora; V. Saúde Mental; VI. Saúde da População Negra; VII. Recursos Humanos e Relações de Trabalho; e VIII. Orçamento e financiamento2.

A definição da Assistência Farmacêutica e Ciência e Tecnologia como um dos eixos estratégicos apontam o entendimento da importância que os eixos elencados representam para a população, implicando em garantia de acesso à saúde e sustentabilidade do sistema. Os temas, no entanto, nem sempre são tratados adequadamente no âmbito do controle social. A Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM) revelou que em 40% dos 600 municípios entrevistados a assistência farmacêutica não fazia parte da temática discutida nas reuniões dos conselhos de saúde10. Em outra pesquisa, em municípios catarinenses, ficou evidenciado que é muito baixa a participação de farmacêuticos nos conselhos municipais; estruturação ou mudanças nos serviços de assistência farmacêutica não têm sido discutidas com o controle social e o tema só é parte das pautas dos conselhos quando há desabastecimentos ou desativação de farmácias, por exemplo. O estudo conclui que ainda há distanciamento entre as instâncias de controle social, a gestão da assistência farmacêutica e as instituições de pesquisa11.

Num período de importantes incertezas políticas e econômicas do país, quando se completam 30 anos do SUS, 20 anos da Política Nacional de Medicamentos e 14 anos da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, promover o debate participativo sobre estes temas ganha relevância ainda maior. O tema dos medicamentos e da assistência farmacêutica é bastante amplo e central, com várias imbricações intersetoriais que implicam em necessária articulação e mobilização da sociedade12. Para o eixo Assistência Farmacêutica e Ciência e Tecnologia, uma parceria do CNS, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Escola Nacional dos Farmacêuticos, com apoio da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), propôs a realização do 8º Simpósio Nacional de Ciência e Tecnologia e Assistência Farmacêutica, antecedido por dez encontros regionais preparatórios.

A primeira etapa desses encontros ocorreu entre agosto e setembro de 2018, totalizando cinco sessões e resultando num conjunto de debates e construção de propostas para o desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas, a partir do olhar de diversos setores da sociedade e de diferentes regiões do país. O objetivo deste artigo é apresentar e analisar os resultados dessa primeira etapa de encontros regionais preparatórios para o 8º Simpósio Nacional de Assistência Farmacêutica, Ciência e Tecnologia e para a 16ª Conferência Nacional de Saúde.

Metodologia

Para atingir os objetivos de promover o debate social sobre assistência farmacêutica, ciência e tecnologia e de construir um conjunto de propostas que possam nortear a inserção do tema nas etapas da 16ª Conferência Nacional de Saúde, foi desenvolvida uma metodologia participativa para os encontros regionais preparatórios.

Metodologia aplicada nos encontros

O primeiro desafio para a equipe de organização foi definir uma estratégia metodológica que permitisse o franco debate sobre temas tão abstratos como ciência, tecnologia e a política de assistência farmacêutica entre diferentes setores da sociedade, representados por dirigentes de movimentos sociais, conselheiros de saúde, gestores da saúde, diferentes profissionais de saúde, cientistas e políticos.

A estratégia adotada foi desenvolver situações-problema relatadas na forma de “casos” formados por narrativas reais, fictícias ou adaptadas da realidade, sobre uma determinada situação atual e concreta que afeta as pessoas e a sociedade, envolvendo assistência farmacêutica e desenvolvimento científico e tecnológico em saúde. A opção metodológica pela escolha de casos visa romper o paradigma predominante nos processos educacionais, em que o professor/palestrante/expositor detêm o conhecimento e pouco reconhece a experiência dos sujeitos que são alvo da estratégia pedagógica. Está de acordo com o entendimento de educação permanente estabelecido na Política Nacional de Educação Permanente para o Controle Social no SUS13.

Para propiciar o entendimento do caso e a discussão da temática, cada caso foi desenvolvido com a seguinte estrutura:

  • Título

  • Descrição do caso concreto a ser analisado.

  • Discussão: explicação da situação problema, com base nos aspectos técnicos, legais e políticos.

  • Indicação de todas as referências utilizadas no texto.

Apoiado nas determinações da Resolução CNS nº 585/201814 e no acúmulo de discussões sobre assistência farmacêutica e ciência e tecnologia, as temáticas escolhidas para os casos foram os exibidos no Quadro 1.

Quadro 1 Temática dos casos elaborados para os Encontros Regionais Preparatórios ao 8º Simpósio Nacional de Assistência Farmacêutica. 

Temáticas principais Situação exemplo a ser abordada no caso
Desabastecimento de medicamentos Penicilina
Doenças negligenciadas, papel estratégico dos laboratórios públicos Doença de chagas
Emergência das arboviroses Dengue
Licença compulsória de medicamento Efavirenz
Acesso a medicamentos Farmácia Popular
Normas sanitárias e regulatórias para medicamentos no Brasil e competência técnico-sanitária dos órgãos reguladores Fosfoetanolamina
Patentes, transferência de tecnologias e Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) Sofosbuvir

Cada caso foi discutido em grupos de até 20 pessoas (grupos heterogêneos, agrupados de forma randomizada entre os participantes). Após leitura e debate aberto de uma hora, todos elaboraram propostas de encaminhamentos para políticas, serviços, ações que tivessem potencial de intervir positivamente para soluções do caso em discussão. As propostas eram, em seguida, analisadas por todos os participantes, reagrupadas quando necessário e então ponderadas de acordo com critérios de magnitude, transcendência e urgência.

Posteriormente, todos os grupos se reuniam para conhecer as propostas elaboradas e ponderadas e um debate final promovia a relação entre os diferentes casos avaliados, os setores envolvidos em cada um deles e os encaminhamentos locais e nacionais necessários.

Locais sedes dos encontros

Por conta da parceria para organização das atividades, ficou estabelecido que os encontros regionais preparatórios deveriam ocorrer nas sedes da Fiocruz, sendo estas: Manaus/AM, Curitiba/PR, Salvador/BA, Recife/PE, Belo Horizonte/MG (realizadas na primeira etapa, em agosto e setembro de 2018). A segunda etapa a ser realizada em novembro de 2018 será em Fortaleza, Brasília, Rio de Janeiro, Belém, e Ribeirão Preto/SP. O 8º Simpósio Nacional de Ciência e Tecnologia e Assistência Farmacêutica está previsto para ocorrer na sede da Fiocruz, em dezembro de 2018. Dentro da programação, como se constata, as atividades serão realizadas em todas as cinco regiões do país.

Convites e inscrição de participantes

Para cada encontro, foi promovida intensa divulgação entre o público-alvo e convites direcionados para instituições de ensino e pesquisa e, em especial, contatos e convites para a mobilização de conselhos de saúde estaduais e municipais.

Definiu-se o critério de pré-inscrição, e a pós-validação foi feita pela Comissão Organizadora, que aplicou o critério de representatividade de segmentos. O formulário para inscrições foi disponibilizado pela plataforma Rede Conselhos do SUS (http://redeconselhosdosus.net/). Para todos os inscritos foi solicitada autorização de utilização de imagens e de gravação dos debates.

Preparação dos encontros

Anteriormente ao inicio dos encontros foi formada uma equipe de facilitadores dos debates e da produção de propostas nos grupos de trabalho. Foram convidados a fazer parte da equipe membros da Comissão de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica (CICTAF) e da Comissão Intersetorial de Atenção à Saúde das pessoas com patologias (CIASPP), assessoria técnica e secretaria executiva do CNS, ambas do CNS; Conselheiros Nacionais de Saúde, diretores e associados da Escola Nacional dos Farmacêuticos e pesquisadores da Fiocruz. Quarenta e duas pessoas foram mobilizadas para formar a equipe de facilitadores.

Uma oficina de formação dos facilitadores promoveu, durante dois dias, intensos debates sobre os temas dos encontros e os casos a serem estudados, com treinamento específico para aplicação na metodologia participativa definida para os encontros.

Analise dos resultados

Após a realização da primeira etapa com cinco encontros regionais, a equipe organizadora reuniu-se para compilar, categorizar e analisar os resultados, utilizando uma adaptação de técnicas mistas de consenso (grupo nominal e comitê tradicional)11,15. A equipe de análise dos dados foi constituída por sete membros, incluindo pesquisadores, conselheiros de saúde e assessores do CNS.

Para cada encontro, as propostas elaboradas e os debates realizados (gravados e posteriormente transcritos) foram compilados em um relatório regional que foi enviado para a sede da Fiocruz local, os conselhos de saúde locais e as instituições de pesquisa regionais.

Todas as propostas apresentadas pelos participantes nos cinco encontros foram compiladas para harmonização dos termos, correção gramatical e identificação de propostas com o mesmo sentido, utilizando o software Microsoft Excel®.

As categorias foram definidas pelos eixos que nortearam a 8ª Conferência Nacional de Saúde, conforme referência constante na Resolução nº 594/201816, em uma leitura atualizada:

  1. Saúde como direito;

  2. Consolidação dos princípios do SUS;

  3. Financiamento adequado e suficiente para o SUS;

  4. Democracia participativa.

O conjunto de 150 propostas foi lido individualmente por cada um dos membros da equipe de análise e pré-categorizado. Em seguida, cada proposta em que a pré-categorização não resultou em unanimidade foi discutida coletivamente pela equipe até a obtenção do consenso sobre a qual categoria ela pertencia.

Para a análise dos dados foram utilizados o conjunto das propostas de cada categoria e os debates resultantes de suas apresentações nos encontros regionais. Os resultados são apresentados por categorias.

Resultados

Participantes dos Encontros Regionais Preparatórios

A primeira etapa dos encontros regionais preparatórios contou com 238 participantes, sendo 159 mulheres (66,8%) e 79 homens (33,2%). Cerca de 70% dos participantes indicaram trabalhar em alguma profissão relacionada à área da saúde, como farmácia, medicina, odontologia, nutrição, biologia e áreas técnicas. A caracterização dos participantes está apresentada na Tabela 1.

Tabela 1 Caracterização dos participantes – Conselheiros de saúde participantes da 1ª Etapa dos Encontros Regionais Preparatórios ao 8º Simpósio Nacional de Ciência e Tecnologia e Assistência Farmacêutica (n = 238). 

Variáveis Categorias %
Sexo Mulheres 66,8
Homens 33,2
Ocupação/profissão Área da saúde 70,2
Outras áreas 16,3
Estudante 13,5
Tem, ou já teve atuação profissional relacionada com a PNAF? Sim 37,0
Não 63,0
Tem, ou já teve atuação profissional relacionada com a PNCTIS? Sim 15,5
Não 84,5

Legenda: PNAF: Política Nacional de Assistência Farmacêutica / PNCTIS: Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde.

Em relação ao envolvimento com o controle social, 76 (32%) participantes indicaram participar de conselhos de saúde, sendo a maioria composta por conselheiros municipais (46,1%) e do segmento dos usuários (42,1%), conforme apresentado na Tabela 2.

Tabela 2 Caracterização dos participantes – Conselheiros de saúde participantes da 1ª Etapa dos Encontros Regionais Preparatórios ao 8º Simpósio Nacional de Ciência e Tecnologia e Assistência Farmacêutica (n = 76). 

Variáveis Categoria %
Conselho a que pertence Conselho municipal 46,1
Conselho estadual 30,3
Conselho gestores 22,4
Conselho nacional 1,3
Segmento Usuário 42,1
Trabalhador 35,5
Gestor 22,4

Análise das propostas apresentadas por eixo

O conjunto das 150 propostas oriundas dos Encontros Regionais Preparatórios está assim distribuído após a categorização: 47 (31,3%) no eixo Saúde como Direito; 56 (37,3%) no eixo Consolidação dos princípios do SUS; 31 (20,7%) no Eixo Financiamento adequado e suficiente para o SUS e 16 (10,7%) no eixo Democracia Participativa.

Eixo 1 - Saúde como Direito

O conjunto de propostas categorizadas na sistematização em “Saúde como Direito” caracterizam-se pela preocupação com as garantias de acesso para toda a população e o atendimento a todas as necessidades.

  • Acolhimento e resolutividade: O acesso referido pelos participantes é caracterizado por propostas que partem do entendimento de que as pessoas precisam ser acolhidas em suas necessidades em todos os serviços de saúde. Os serviços e os profissionais precisam estar preparados para reconhecer as necessidades, diagnosticar as doenças e agravos precocemente e prover o tratamento mais adequado. O acesso aos medicamentos já padronizados pelo sistema de saúde recebeu destaque no que se refere aos processos que os usuários precisam superar para obtê-los, como no caso dos medicamentos de mais alto preço.

  • Doenças negligenciadas e necessidades nacionais: Os participantes expressaram especial preocupação com o desenvolvimento de estratégias que visam possibilitar o acesso à saúde para populações negligenciadas e para as doenças negligenciadas e raras, com custo de tratamento elevado. Diversas propostas miram na necessidade absoluta de desenvolvimento de pesquisa direcionada a atender as necessidades nacionais, incluindo desenvolvimento tecnológico para criação ou aperfeiçoamento de técnicas e produtos diagnósticos para doenças como arboviroses, ou melhoramento farmacotécnico de medicamentos para algumas doenças negligenciadas; ou ainda o direcionamento claro das políticas de incentivo para a pesquisa em novas estratégias terapêuticas para estas doenças. A prospecção de biodiversidade nacional e do conhecimento tradicional também foram apontados nas propostas.

  • Produção e desenvolvimento: A produção nacional, independente e sustentável de medicamentos e outras tecnologias também foi o foco de diversas propostas. Parcerias para desenvolvimento produtivo e investimento nos laboratórios públicos estiveram entre as estratégias propostas. As questões relacionadas ao direito de propriedade intelectual na área da saúde foram discutidas e propostas de intervenção pública neste setor foram apresentadas. A responsabilidade da regulação sobre questões como preços, mercado e descontinuidade de produção de medicamentos essenciais mereceu atenção dos participantes e a apresentação de propostas.

Eixo 2 - Consolidação dos princípios do SUS

O maior número de propostas apresentadas em todos os encontros foi categorizado em “Consolidação dos princípios do SUS”. A elevada concentração de propostas nesse eixo evidencia a preocupação dos participantes com a necessidade de reorganização dos serviços para a integração das políticas e das ações, sendo citadas recomendações para a integração da vigilância à saúde com a assistência diagnóstica e terapêutica integral, além do fortalecimento das instituições públicas nacionais.

  • Redes de atenção e atenção primária à saúde: Diversas propostas tiveram como foco estratégias para a organização da rede de atenção à saúde tendo como base e sustentação a atenção primária, incluindo os diversos níveis de atenção e também os serviços privados, como as farmácias comerciais enquanto pontos de atenção. A educação em saúde compõe propostas de orientação para os serviços e integração com a comunidade. Os serviços farmacêuticos são referenciados em propostas de desenvolvimento e ampliação do acesso a esses serviços como forma de qualificar o processo de atenção à saúde, no contexto da colaboração interprofissional. A qualificação do cuidado às doenças negligenciadas, incluindo os protocolos terapêuticos, também é um tema recomendado.

  • Formação profissional e Educação Permanente: O papel central dos profissionais e pesquisadores da área na consolidação do sistema de saúde é evidenciado nas diversas propostas para direcionamento da formação e das ações de educação permanente, incluindo proposta de temas para a qualificação profissional (como em doenças endêmicas, negligenciadas, acolhimento, gestão em saúde, seleção de medicamentos). Na visão dos participantes é necessário que os profissionais de saúde estejam plenamente capacitados para prestar uma atenção à saúde resolutiva, em tempo adequado e nas mais diferentes condições geográficas do país. A oferta de oportunidades de formação e qualificação e de permanência em regiões de difícil acesso também foram tema de propostas.

  • Gestão e informação: Fragilidades na gestão dos serviços de saúde e das politicas públicas são evidenciadas pela apresentação de propostas de desenvolvimento de ferramentas de gestão integradas e estratégias de qualificação dos processos para garantir planejamento e monitoramento adequados, desde a oferta de medicamentos e serviços, até aplicação de recursos em pesquisa e desenvolvimento. A informatização dos serviços e o desenvolvimento de sistemas de informação integrados são alvo de diversas propostas em todas as regiões.

  • Pesquisa e desenvolvimento de serviços: Entendido como fundamentais para a consolidação do modelo de atenção à saúde, a pesquisa e desenvolvimento tecnológico para serviços de saúde aparecem em propostas para o desenvolvimento de tecnologias sociais em saúde, pesquisa de resultados de modelos de serviços e de novas tecnologias assistenciais. A integração da pesquisa acadêmica aos serviços de saúde na definição de prioridades e estratégias de desenvolvimento também foi proposta.

Eixo 3 - Financiamento Adequado e Suficiente para o SUS

Em todos os encontros, os participantes propuseram o aumento do orçamento para financiamento da saúde e a revogação da Emenda Constitucional nº 95/16, com distribuição mais equitativa entre os diferentes níveis de atenção.

  • Pesquisa e Inovação: grande parte das propostas aponta para a necessidade premente de investimento em pesquisa e inovação em saúde, tendo como foco principal o enfrentamento das doenças e agravos que afligem desigualmente a população brasileira. As propostas abrangem direcionar o financiamento de pesquisa para o desenvolvimento de vacinas, diagnóstico e medicamentos para doenças órfãs e de pouco interesse de mercado, assim como para o desenvolvimento de tecnologias próprias para a produção medicamentos de alto preço e de novos medicamentos para doenças endêmicas. A ampliação do financiamento para pesquisa em instituições públicas e a distribuição equitativa de tais investimentos entre as diferentes regiões do país também foram questões apontadas.

  • Produção e acesso: Diversas propostas apontam para a ampliação dos investimentos na produção pública nacional de medicamentos e outras tecnologias para a saúde, com vistas à garantia do acesso pela população e a soberania nacional. Ampliar o financiamento para ações de assistência farmacêutica e o incentivo de qualificação da estruturação e gestão da assistência farmacêutica compõem propostas apresentadas.

Eixo 4 - Democracia participativa

Esta categoria, apesar de contabilizar o menor número de propostas, traz o entendimento dos participantes da importância da participação ativa da sociedade para a garantia e o aprimoramento do seu direito à saúde. Propostas para investimentos na educação e preparo da população para qualificar sua participação no controle social, assegurando fóruns mais participativos foram apresentadas. O estímulo à participação da comunidade na gestão local dos serviços foi proposto como instrumento de mudanças nas ações de saúde. Educação popular inclusiva e a proposição de realização de conferências temáticas (como em propriedade intelectual e doenças negligenciadas) também foram relatadas.

Discussão

A dinâmica das conferências nacionais de saúde inclui, além do enorme peso da mobilização e da paridade na sua representatividade, o fato de serem precedidas por conferências municipais e estaduais, além de conferências temáticas. Nesse sentido, nos últimos anos foram realizadas etapas nacionais de conferências conforme descrito a seguir:

  • ✓ 2ª Conferência Nacional da Saúde das Mulheres, realizada em 2017;

  • ✓ 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, realizada em 2017;

  • ✓ 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde, realizada em 2018;

  • ✓ 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, a ser realizada em maio de 2019.

A ampla mobilização da sociedade nos campos de Ciência, Tecnologia e Inovação e Assistência Farmacêutica não foi possível de ser realizada de maneira estruturada no formato tradicional das conferências temáticas. Entretanto, considerando a relevância temática e a potencialização resultante da ação integrada das instituições que constituem a comissão organizadora destes encontros, sua organização, promoção e avaliação resultam em contribuição de elevada importância para a discussão nacional e insumo para discussões políticas na etapa nacional da Conferência.

Mesmo tendo como tema de chamamento “ciência e tecnologia”, os encontros puderam contar com a contribuição de cidadãos não profissionais de saúde e representantes de segmento usuários dos conselhos, conforme perfil apresentado nas Tabelas 1 e 2. Os debates promovidos proporcionaram a experiência de compartilhamento de expectativas, preocupações e esperanças a partir de pontos de vista bastante diversos e complementares, enriquecedora para todos e produtiva para a construção de um documento de propostas que pode representar a diversidade da sociedade.

Diversas temáticas estiveram presentes nas discussões que compuseram a primeira etapa de seminários aqui descritos. Inicialmente, em diversas falas e discussões, foi colocado de maneira clara e consensual que a EC nº 95/16, Emenda Constitucional que estabelece o teto de gastos públicos pelo período de vinte anos, inviabiliza qualquer discussão que tenha por objetivo assegurar o cumprimento que a Constituição atribui à Saúde e Cidadania. Esta é, sem dúvida, a proposta que decide sobre a viabilidade de todas as demais propostas apresentadas.

A defesa intransigente do SUS como política pública de resgate da cidadania, do direito social à saúde, esteve representada por propostas muito contundentes de defesa do acesso às tecnologias de saúde em serviços humanizados e caracterizados pela resolutividade. As discussões sobre esse tema apresentaram ampla sintonia com os debates internacionais e a defesa da Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incluindo o acesso a medicamentos17. Entre as estratégias indicadas como indispensavelmente necessárias estão a ampliação dos investimentos e da regulação para o desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, para as necessidades próprias da população e dos serviços de saúde brasileiros. Os elevados custos e preços dos medicamentos e outras tecnologias, as barreiras regulatórias e de propriedades intelectual12,18-21 foram temas que estiveram presentes nas apresentações e nas discussões, reafirmando a importância e a oportunidade na realização dos seminários regionais. Ainda sobre financiamento, diversas propostas para o direcionamento dos investimentos, com priorização para pesquisas em doenças negligenciadas e endêmicas e para a qualificação de serviços.

Enquanto na 8ª Conferência Nacional de Saúde se construíam propostas para a criação de um Sistema Nacional de Saúde, 30 anos depois a sociedade discute estratégias para consolidá-lo como um SUS público, universal e de qualidade, num momento histórico de alto risco de perda de direitos sociais e de desmonte das políticas públicas inclusivas. Em reação às pressões por privatizações e desnacionalização, os participantes apresentaram propostas de ampliação dos serviços, ampliação do acesso e de formas para atender às necessidades de saúde dos mais necessitados e mais vulneráveis.

Investir na educação, motivação e preparo da população para qualificar a participação no controle social, no pensar no coletivo, foi tema de proposta que tem como objetivo assegurar fóruns mais participativos. A defesa da democracia, do direito à organização e manifestação de todos os segmentos da sociedade e das instituições que garantem legalmente o controle social das políticas públicas foram absolutamente relevantes nas manifestações dos participantes dos encontros. O conceito, as dificuldades e as realizações do Complexo Econômico-Industrial da Saúde22 foram uma pauta de caráter transversal durante todos os encontros, em todos os grupos de debates, independentemente do tema específico em discussão. A compreensão de que o fortalecimento da capacidade de pesquisa nacional é fator imprescindível e estruturante para que o povo brasileiro possa ter assegurado, na prática e na Constituição, o direito à saúde foi sendo fortalecida durante dos debates e representada pelas propostas oriundas de todos os grupos.

O engajamento de diferentes segmentos da sociedade, interagindo em um espaço em que a metodologia proporciona a integração de diferentes saberes e a construção coletiva de propostas para políticas públicas representa uma oportunidade de formação, motivação e reafirmação da força do controle social. Tem o potencial de estimular o maior envolvimento dos profissionais de saúde e da comunidade nos conselhos e, especialmente, nas etapas municipais e estaduais para construção da 16ª Conferência Nacional de Saúde com participação qualificada.

Conclusão – rumo à 16ª Conferência

Nacional de Saúde

A iniciativa aqui descrita tem demonstrado o interesse da sociedade em compreender, discutir e intervir sobre as políticas públicas que definem as condições para a garantia do direito à saúde e do Estado democrático.

A participação nos encontros proporciona oportunidade de aprendizado aos participantes, compartilhamento de experiências e motivação para o engajamento no controle social. Para o SUS, propicia a contribuição da sociedade, de forma sistematizada, para a gestão participativa e a tomada de decisões que reflita os anseios da população.

Após a finalização da 2ª etapa dos Encontros Preparatórios, as propostas serão novamente categorizadas e será elaborado e amplamente divulgado um documento para o controle social, visando a colaborar com a construção da 16º Conferência Nacional de Saúde.

Imbuídos da discussão promovida nos encontros, com o compromisso de defesa do SUS e da ciência, tecnologia e assistência farmacêutica, estimulados a participar das etapas preparatórias (municipais e estaduais) da 8ª+8, os participantes dos encontros tornam-se, assim, atores no processo de construção da 16º Conferência Nacional de Saúde.

REFERÊNCIAS

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