versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170007
O distúrbio mineral e ósseo (DMO) tem sido alvo de estudos em pacientes com doença renal crônica (DRC), incluindo indivíduos em tratamento dialítico. Foi comprovado que o DMO-DRC é responsável pela progressão clínica, complicações sob a técnica e sobrevida dos pacientes.1 O hiperparatireoidismo secundário (HPTS) é o alvo de várias estratégias terapêuticas com cinacalcete, método que pode melhorar alguns dos desfechos do DMO-DRC.2,3 HPTS é bastante comum em pacientes em diálise e caracteriza-se por elevação do paratormônio (PTH) e metabolismo mineral desordenado. O cinacalcete calcimimético foi aprovado pelo Food and Drug Administration nos EUA em 2004 e pelo European Committee for Medical Products for Human Use em 2005 para o tratamento de HPTS em pacientes em diálise.4
O cinacalcete age diretamente sobre o receptor sensível ao cálcio (CaSR) das células da paratireoide. Ao se ligar ao CaSR, o cinacalcete aloestericamente aumenta sua sensibilidade ao cálcio extracelular, suprimindo assim a secreção de PTH sem elevar os níveis séricos de cálcio e fosfato.5,6 Até 2008, a maioria dos estudos publicados sobre o cinacalcete em pacientes dialíticos incluía pequenos grupos de indivíduos em diálise peritoneal (DP).7,8 Um estudo prospectivo observacional realizado em um centro na Espanha com 18 pacientes em DP publicado em 2008 comprovou que o uso do cinacalcete em pacientes em DP com HPTS resistentes ao tratamento convencional é eficaz e seguro, além de apresentar melhores resultados de adesão em relação aos objetivos das diretrizes.9 Este resultado foi corroborado em 2012, num estudo espanhol prospectivo observacional multicêntrico com 54 pacientes em DP.10 A incidência de DMO-DRC é diferente em pacientes em DP e HD.11 Portanto, seria de se esperar que o tratamento e os resultados também fossem diferentes nos dois grupos. O objetivo do presente estudo foi avaliar a eficácia do cinacalcete no HPTS em pacientes em diálise peritoneal tratados em um centro.
O presente estudo retrospectivo foi realizado num único centro de DP com base no estudo de uma coorte de 27 pacientes com HPTS de moderada a grave (PTHi > 500 pg/mL com níveis séricos de cálcio normais ou elevados) tratados com cinacalcete. O tratamento com cinacalcete foi iniciado por conta da falta de resposta da terapia convencional: dieta, quelantes de fosfato e vitamina D ou impossibilidade de tratar com vitamina D por conta de hiperfosfatemia (> 5,5 mg/dL) ou hipercalcemia (> 10,5 mg/dL).
Foram registrados os parâmetros demográficos, clínicos e laboratoriais no início do tratamento com cinacalcete, após dois, quatro e seis meses, e após o término do tratamento. Nos pacientes que ainda estavam sendo tratados com cinacalcete, analisamos os resultados dos últimos exames laboratoriais, a duração do tratamento com cinacalcete, as doses máximas toleradas, eficácia, segurança e efeitos adversos. As medições de cálcio foram ajustadas para a concentração de albumina. Todos os testes estatísticos foram realizados no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) 14.0 (SPSS, Inc., Chicago, IL, EUA). As variáveis categóricas foram descritas como números ou percentuais de frequência relativa, e as variáveis quantitativas como média ± desvio padrão (DP) para as variáveis com distribuição normal contínua. A regressão de Cox foi utilizada para comparar as taxas de sobrevida. As diferenças entre dados clínicos foram avaliadas pelo teste-t de Student para amostras pareadas e normais e pelo teste pareado de Wilcoxon para dados contínuos com distribuição não normal. Valores de p < 0.05 foram considerados estatisticamente significativos.
Os pacientes tinham idade média de 46,3 ± 15,7 anos; quinze (55,6%) eram do sexo masculino, seis (22,2%) tinham diabetes; o índice de massa corporal (IMC) no início da DP era 26,4 ± 5,2 Kg/m2. Os pacientes ficaram em DP por 31 ± 16,6 meses; todos os 27 pacientes foram tratados com cinacalcete por 15,6 ± 13,4 meses. A dose mínima foi 15 mg/dia e a máxima 90 mg/dia (média de 45 mg/dia).
Em 21 (77,8%) pacientes não foi possível elevar o cinacalcete para além de 45 mg/dia por conta de efeitos adversos gastrointestinais (náusea e/ou dispepsia); cinco pacientes abandonaram o tratamento com cinacalcete (quatro iniciaram HD e um recebeu um aloenxerto renal); 63% dos pacientes foram tratados com soluções de DP com baixos níveis de cálcio (1,25 mmol/L) e 37% com soluções com cálcio a 1,75 mmol/L; vinte e cinco (92,6%) pacientes foram tratados com análogos da vitamina D e quelantes de fósforo (sevelamer em doses de 1600 mg a 4800 mg/dia); dois (7,4%) não puderam iniciar o tratamento com vitamina D por conta de hipercalcemia (Tabela 1). Os níveis laboratoriais no início do tratamento com cinacalcete eram os seguintes: PTHi: 1145 ± 450 pg/mL; cálcio: 9,2 ± 0,9 mg/dL; fósforo: 5,3 ± 0,7 mg/dL; e nPCR: 1,1 ± 0,3 g/kg/dia. Os níveis de PTHi, cálcio e fósforo no segundo, quarto e sexto mês após o início do cinacalcete foram, respectivamente: 926 ± 397 pg/mL; 8,8 ± 1 mg/dL e 5,1 ± 1 mg/dL no segundo mês; 1028 ± 576 pg/mL; 8,9 ± 0,9 mg/dL e 5,8 ± 0,9 mg/dL no quarto mês; e 1011 ± 553 pg/mL, 8,9 ± 0,7 mg/dL e 5,6 ± 1,1 mg/dL no sexto mês.
Tabela 1 Características demográficas, clínicas e laboratoriais de pacientes tratados com cinacalcete
Tratamento com cinacalcete (n = 27) |
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Idade (anos) | 46,3 ± 15,7 |
Sexo masculino (n/%) | 15 (55,6%) |
Diabetes (n/%) | 6 (22,2%) |
IMC (Kg/m2) | 26,4 ± 5,2 |
Tempo em DP (meses) | 31 ± 16,6 |
Tempo do tratamento com cinacalcete (meses) | 15,6 ± 13,4 |
Dose de cinacalcete (mg/dia) | 45 (15-90) |
Efeitos adversos GI (n/%) | 21 (77,8%) |
Pacientes tratados com análogos da vitamina D/quelantes de fosfato (n/%) | 25 (92,6%) |
IMC: índice de massa corporal; DP: dialise peritoneal; GI: gastrointestinal
O último seguimento laboratorial realizado durante o tratamento com cinacalcete revelou os seguintes dados: PTHi: 1132 ± 643 pg/mL; cálcio: 9,2 ± 0,9 mg/dL (dois pacientes tinham níveis de cálcio < 8 mg/dL); fósforo: 5,9 ± 1 mg/dL e nPCR: 1 ± 0,2 g/Kg/dia (Figura 1). A redução do PTH foi estatisticamente significativa dois meses após o início do tratamento com cinacalcete (p = 0,007), o que não ocorreu nas avaliações seguintes. O tipo de solução de DP (1,25 x Ca 1,75 mmol/l) não serviu de preditor de alterações nos valores de calcemia, fosfatemia ou PTHi (valor de p sem significância estatística). No último seguimento, 21 (77,8%) pacientes tinham níveis de PTHi superiores a 600 pg/mL apesar do tratamento com cinacalcete nas doses máximas toleradas. Os níveis de fósforo elevaram-se durante a DP (p = 0.03) mas a nPCR foi semelhante ao valor no início da DP.
Estudos europeus recentes relataram prevalências de HPTS semelhantes em pacientes incidentes em DP e HD, com níveis de cálcio e fósforo bastante parecidos em ambas as técnicas.1 Contudo, os pacientes em DP apresentaram algumas diferenças em relação aos indivíduos em HD no tocante ao manejo do cinacalcete.
Assim como em um estudo espanhol,9 hipocalcemia (cálcio < 8 mg/dL) foi raramente identificada em nossos pacientes (dois indivíduos) e nenhum era sintomático. A presença contínua de fluido intra-abdominal com níveis adequados de cálcio melhorou tal desequilíbrio e protegeu os pacientes contra hipocalcemia. Nossa maior diferença em relação a outros estudos com cinacalcete em indivíduos em DP9,10 foi a impossibilidade de melhorar o controle bioquímico do HPTS nos pacientes em DP após o segundo mês de tratamento. Prescrevemos cinacalcete em baixas doses (média de 45 mg/dia) e apenas dois pacientes toleraram doses de 90 mg/dia. A titulação da dose de cinacalcete foi feita mais gradualmente do que nas recomendações das diretrizes, em que a dose era elevada a cada mês caso as metas não fossem atingidas.12 Presumimos que a falta de resposta ao cinacalcete deveu-se aos efeitos adversos gastrointestinais, que impossibilitaram a prescrição de doses mais elevadas de cinacalcete. Pacientes em DP são predispostos a apresentar efeitos adversos gastrointestinais por conta da plenitude e da elevação da pressão abdominal associadas à DP.
Os receptores de cálcio do trato gastrointestinal são responsáveis por efeitos gastrointestinais tais como náusea e dispepsia.13 Em nossa casuística, 21 (77,8%) pacientes apresentaram efeitos adversos gastrointestinais com cinacalcete > 30 mg/dia. Foi impossível avaliar os eventuais benefícios do tratamento sobre o HPTS.
Contudo, em outros estudos9,10 o cinacalcete foi bem tolerado, considerando-se que dispepsia foi registrada em apenas 17%9 e 7,4%10 dos pacientes. No primeiro relato,9 a interrupção da administração de cinacalcete não foi necessária em nenhum paciente; no segundo estudo,10 todos os pacientes com intolerância digestiva reduziram ou interromperam o tratamento com cinacalcete; o aparecimento de efeitos colaterais foi semelhante ou inferior aos níveis relatados em pacientes em HD.14
Além disso, em nosso relato 92,6% dos pacientes foram tratados com quelantes de fosfato que, por si só, podem levar a intolerância gástrica. Provavelmente a nutrição, a administração de cinacalcete com ou sem alimentos e o fator confundente dos efeitos gastrointestinais dos quelantes de fosfato influenciaram a alta taxa de sintomas de intolerância gástrica em nossa casuística.
Novas formas de apresentação do cinacalcete, destinadas a evitar os fatores gastrointestinais adversos e melhorar a adesão ao tratamento, poderiam beneficiar esse grupo de pacientes.
O cinacalcete foi seguro porém ineficaz em pacientes com HPTS de moderada a grave em DP. Fatores adversos gastrointestinais impossibilitaram a prescrição de doses mais elevadas de cinacalcete, tornando inviável a avaliação dos possíveis benefícios do tratamento com doses mais elevadas sobre o HPTS. É necessário desenvolver novas modalidades de apresentação do cinacalcete de modo a contornar os fatores gastrointestinais adversos e melhorar a adesão ao tratamento.