versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
Braz. J. Nephrol. vol.42 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 03-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0240
A cistatina C, descrita pela primeira vez em 1961 e formalmente nomeada em 1984, é uma proteína básica não glicosilada, codificada pelo gene CST3, é encontrada em praticamente todas as células nucleadas. É um potente inibidor de proteinases lisossômicas e inibidores extracelulares de proteases de cisteína, que desempenham um papel pleiotrópico na fisiopatologia vascular humana, em particular na regulação de catepsinas, que são superexpressas em lesões ateroscleróticas e aneurismáticas1.
O papel da cistatina C sérica como medida da função renal (filtração) está agora bem estabelecido. A cistatina C é gerada a uma taxa praticamente constante, é livremente filtrada, reabsorvida e catabolizada no túbulo proximal do néfron2. Não é afetada pelo habitus corporal e pela massa muscular e, como tal, acredita-se que seja uma medida mais precisa da função renal em comparação com a creatinina sérica 3. Agora estão disponíveis materiais de referência padrão para a cistatina C, de modo que os ensaios laboratoriais possam ser padronizados com as equações de estimativa da taxa de filtração glomerular (TFGe) desenvolvidas e validadas para uso clínico de rotina3. As limitações ao seu uso rotineiro na prática clínica têm sido principalmente considerações de custo, onde, por exemplo, custa até dez vezes do que um ensaio de creatinina sérica4, e pode ser afetada por doenças da tireóide, adiposidade e inflamação subjacente1,5.
Além do seu uso na estimativa da função renal, a TFGe à base de cistatina C mostrou ser um preditor superior de doença cardiovascular (DCV) e mortalidade quando comparada à TFGe baseada na creatinina sérica6. De fato, quando combinada à albuminúria, a cistatina C TFGe adicionou discriminação preditiva aos escores atuais de risco de DCV usados rotineiramente, enquanto que a TFGe sérica à base de creatinina não adicionou discriminação adicional4. Isso sugere que a TFGe à base de cistatina C deve ser usada não apenas para avaliar a função renal, mas também deve fazer parte da avaliação de risco cardiovascular de um indivíduo.
Outros papéis potenciais para a cistatina C incluem ser um marcador precoce de lesão renal aguda, um marcador superior da função de um transplante renal, risco de DCV e falha do transplante, e uma medida mais precisa da função em subpopulações específicas, como cirrose hepática e malignidade6. Nesta edição do Brazilian Journal of Nephrology, Moreira et al. avaliaram outra subpopulação específica em que a cistatina C pode ter utilidade adicional sobre a creatinina sérica e outros marcadores, como em indivíduos com doença renal terminal7.
Moreira et al. avaliaram a cistatina C sérica e efluente de diálise peritoneal em 52 pacientes tratados com diálise peritoneal (DP) em um único centro de diálise. Além da avaliação da função renal residual (FRR), eles exploraram a correlação da cistatina C e eventos cardiovasculares, bem como uma avaliação da composição corporal usando a bioimpedância. Como a população em geral, níveis mais altos de cistatina C foram associados a um aumento de duas vezes na probabilidade de doença cardiovascular (odds ratio (OR) 2,65), embora o intervalo de confiança de 95% tenha sido amplo, refletindo incerteza significativa no resultado (0,84 8,37). Isso não é surpreendente, dadas as limitações do pequeno tamanho da amostra e a natureza transversal do desenho e análise do estudo.
A avaliação da FRR em pacientes tratados com DP é crítica, dada sua importância no prognóstico e na depuração total pela diálise. O presente estudo reafirma nosso entendimento de que a cistatina C pode ser um bom marcador de avaliação da FRR. Pacientes que estão em DP há mais tempo têm um nível mais alto de cistatina C, correlacionado com a perda gradual de FRR observada após o início da diálise. A depuração semanal total da creatinina foi significativa- e negativamente correlacionada com os níveis de cistatina C, como seria esperado. É importante notar que a DP também remove a cistatina C e, portanto, seus níveis serão determinados pela FRR e pela depuração da diálise. Também como esperado, os níveis de cistatina C correlacionaram-se positivamente com a massa relativa de tecido magro.
O estudo de Moreira et al. levanta mais questionamentos do que fornece respostas devido ao tamanho e ao desenho do estudo, dado o papel da cistatina C como uma ferramenta estabelecida para a avaliação da função renal na população geral e na DRC, bem como um marcador aditivo da avaliação de risco cardiovascular, além de apresentar grandes perspectivas futuras. Estudos em populações em DP são necessários para delinear se a cistatina C terá um papel no manejo dessa população.