versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.12 no.4 São Paulo out./dez. 2014 Epub 18-Nov-2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014RC2794
O câncer de bexiga é um importante problema de saúde mundial, tanto pelas elevadas taxas de prevalência quanto pelos custos relacionados ao tratamento.(1)Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), aproximadamente 9.000 casos eram esperados para o ano de 2012 no Brasil. Desses casos, 75% a 85% são compostos por tumores superficiais, ou seja, doença confinada à mucosa (Ta-CIS) ou submucosa (T1), tornando esses pacientes potenciais candidatos para realização de terapia complementar com quimioterapia ou imunoterapia.(1-3) Desde a introdução da imunoterapia intravesical adjuvante com bacilo de Calmette-Guérin (BCG), foi observada diminuição na taxa de recorrência.(3)
Embora o uso de BCG seja considerado muito eficaz, nem todos os casos têm benefício. Toxicidade, complicações das mais variadas e não resposta terapêutica devem ser levados em conta quando se propõe a adjuvância.(2)
As principais complicações são de pequeno porte, de resolução simples a partir de medidas locais e orientações. A bexiga contraída, uma complicação local rara e grave, incapacitante em alguns casos, é observada principalmente em doentes com um programa de manutenção.(4)
Paciente do sexo masculino, 53 anos, tabagista, apresentou hematúria macroscópica indolor, de início há 3 dias, no ano de 2009. Procurou o Pronto-Socorro da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, sendo submetido à ultrassonografia do aparelho urinário, a qual revelou tumoração intravesical sugestiva de neoplasia em parede lateral esquerda. Foi realizada ressecção transuretral (RTU) da bexiga com diagnóstico de carcinoma urotelial T1 de alto grau. Após 8 semanas, foi submetido a nova RTU, dessa vez sem recidiva ou novas lesões. Biópsias do leito ressecado previamente revelaram cistite. Iniciou terapia adjuvante intravesical com BCG após 1 mês, com duração total de 3 anos. Conforme protocolo do serviço, realizou fase de indução por 8 semanas e de manutenção por 3 anos (1 ciclo semanal por 3 semanas, em 3 e 6 meses; a partir daí, a cada 6 meses), ambas com dose de 80mg em cada sessão. No segundo ano de tratamento, apresentava-se sem recidivas, com alguns sintomas do trato urinário inferior relacionados ao armazenamento, como polaciúria e urgência miccional sem perdas. Apesar disso, estava adaptado e sem deterioração significativa da qualidade de vida. No início do terceiro e último ano, os sintomas urinários pioraram, dessa vez com aumento da frequência urinária em torno de 20 vezes ao dia, urgência com perdas incapacitante e dor suprapúbica ao menor enchimento vesical. Nesse período, foi necessário interromper o tratamento. Uretrocistografia revelou bexiga de pequena capacidade, refluxo vesicureteral bilateral grau I e resíduo pós-miccional considerável (Figura 1). Estudo urodinâmico evidenciou capacidade vesical muito baixa (40mL) com sensibilidade muito aumentada nesse volume, além de alta pressão detrusora (Pdet=78cmH2O), confirmando o achado de bexiga contraída. Cistoscopia desse período não evidenciou lesões neoplásicas. Devido aos sintomas incapacitantes, o paciente foi submetido à cistoprostatectomia com realização de neobexiga ortotópica ileal e linfadenectomia. No intraoperatório, foi evidenciada bexiga de pequeno tamanho, sem outras características. Procedimento sem intercorrências. Evoluiu com fístula urinária da alça ileal no 10º pós-operatório, tendo resolução a partir de medidas conservadoras. Sem outras intercorrências, recebeu alta hospitalar e seguiu em acompanhamento ambulatorial sem queixas, em programa de distensão da neobexiga (Figura 2). O anatomopatológico revelou apenas cistite inflamatória na peça cirúrgica e ausência de neoplasia.
Figura 1 Uretrocistografia. Bexiga de pequena capacidade, refluxo vesicureteral bilateral grau I e resíduo pós-miccional
O uso da BCG é considerado de escolha para carcinoma urotelial Ta/T1 de alto grau e carcinoma in situ após RTU, em particular a terapia de manutenção, a qual demonstrou ser superior à quimioterapia intravesical, no que diz respeito ao retardo da progressão tumoral.(1-3) Entretanto, não deve ser administrada imediatamente após a ressecção, esperando-se, em geral, 2 semanas para a cicatrização local e evitando-se, assim, a absorção e a disseminação hematogênica das micobactérias.(1)
Embora não seja consenso a dose ideal, seis a oito instilações, uma vez por semana, seguidas por três doses de manutenção a cada 3/6 meses, no primeiro ano, e a cada 6 meses a partir do segundo ano, demonstraram resultados promissores, conforme o protocolo do estudo SWOG, o qual foi utilizado no caso em questão.(1)
Assumindo-se que a terapia de manutenção é necessária para eficácia ótima, a questão da toxicidade torna-se mais relevante.(2) Esta é substancialmente maior com um tratamento intensivo, mas os efeitos secundários graves têm sido também observados depois de poucas instilações.(4) Sintomas de armazenamento (disúria, polaciúria e hematúria) são efeitos colaterais comumente associados, ocorrendo geralmente após a terceira aplicação; trata-se de uma consequência da estimulação imunitária, com liberação de linfocinas como uma resposta inflamatória associada.(1)
O retardo de novas instilações de BCG após várias RTU e o início de antibióticos antituberculose é recomendado, pois podem ser úteis se inflamação contínua ou infecção estão presentes.(1,4)
A bexiga contraída, complicação incomum, porém uma das mais graves, ocorre em menos de 1% dos doentes.(1) Uma série atualizada por Lamm et al. relatou bexigas contraídas em apenas 5 pacientes (0,2%) de 2.602 analisados.(5)
No trabalho de Nieder et al., foram identificados apenas dois casos dessa complicação num total de 2.255 em duas instituições, numa taxa de 0,05 a 0,3%. Neste estudo, ambos os casos apresentaram complicação da terapia intravesical ainda no esquema de indução, inclusive um deles com evidência de bexiga contraída após a quinta dose. Possivelmente, há extravasamento em um local de ressecção não cicatrizado, que iniciaria uma inflamação extensa perivesical e um trajeto fistuloso, resultando na bexiga contraída.(6)
Devido a isso, tal complicação deve ser suspeitada em pacientes com sintomas miccionais intensos em qualquer fase e, principalmente, na manutenção da imunoterapia com BCG.(3,4) Atualmente, alguns centros utilizam isoniazida profilática na tentativa de diminuir sua incidência, porém com resultados variáveis.(1,3) O uso de interferon associado foi proposto também na tentativa de diminuir a dose e a intolerância da BCG, com algumas séries de poucos pacientes apresentando resultados favoráveis. No estudo aqui citado foi descrito o primeiro caso de bexiga contraída em paciente na vigência dessa terapia combinada.(6) O tratamento inicial pode ser tentado com medidas conservadoras, como hidrodistensão e uso de antimuscarínicos.(3) Entretanto, naqueles refratários ou com sintomas incapacitantes, a indicação cirúrgica deve ser considerada. Opções como ampliação vesical e cistectomia com reconstrução de conduto ileal poderiam levar ao risco de recidiva tumoral futura e a efeitos negativos na qualidade de vida (QV), respectivamente.(6) Já a cistoprostatectomia com reconstrução de neobexiga intestinal tem seu papel com melhora da QV e segurança quanto a possíveis recidivas tumorais.(6)
A bexiga contraída é uma complicação rara mas que deve ser lembrada em pacientes com sintomas do trato urinário inferior grave em vigência da terapia com bacilo de Calmette-Guérin. Na intratabilidade clínica, a correção cirúrgica com cistoprostatectomia e neobexiga parece ser a melhor opção, devido ao seu tratamento definitivo e à melhora na qualidade de vida.