Compartilhar

Cistite lúpica apresentando hidronefrose e envolvimento gastrointestinal

Cistite lúpica apresentando hidronefrose e envolvimento gastrointestinal

Autores:

Flávio Teles,
Larissa Gonçalves de Albuquerque Santos,
Carlos Eugênio Lira Tenório,
Monique Ramalho Marinho,
Saulo Rodrigo de Ramalho Moraes,
Davi de Brito Câmara,
Renata Oliveira Santos,
Camila Ricardo Uchôa Lins,
André Falcão Pedrosa Costa

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160077

Introdução

A cistite lúpica (CL) é uma manifestação incomum do lúpus eritematoso sistêmico (LES), com uma incidência que varia de 0,6 a 2%.1-3 A evidência atual de CL é baseada quase que exclusivamente em relatos de casos, principalmente de países do Leste Asiático.1,4,5 Portanto, a terapia imunossupressora adequada permanece indefinida. Por razões desconhecidas, o envolvimento simultâneo do sistema gastrointestinal é bastante comum e pode até ser a principal manifestação da doença.6,7

Estima-se que a CL esteja presente em até 22,7% dos pacientes com vasculite mesentérica, mesmo sem sintomas urinários.8 Dadas essas evidências, nos últimos anos o conceito de que todos os pacientes com LES e sintomas gastrointestinais devem ter avaliação urológica tem ganhado força. Neste relato descrevemos uma paciente com CL grave e vasculite mesentérica que foi tratada com sucesso com corticosteróides.

Relato de caso

Uma menina de 16 anos apresentou-se à unidade de medicina interna de um hospital geral com 15 dias de história de dor suprapúbica, urgência urinária e disúria. Ao exame físico apresentava taquicardia, taquipneia, desidratação e palidez. Os sons respiratórios eram de murmúrio vesicular reduzido em ambas as bases pulmonares. O abdome estava distendido e dolorido à palpação das regiões epigástrica e suprapúbica, mas sem sinais de irritação peritoneal.

Sobre sua história clínica anterior, ela foi diagnosticada com LES há dois anos, após apresentar erupção malar, fotossensibilidade, úlceras bucais, poliartrite, anemia e nefrite proliferativa focal. Um mês após o diagnóstico de LES a paciente apresentou confusão mental, alucinações auditivas e visuais e convulsões, resultando em diagnóstico de meningoencefalite lúpica. Iniciou-se a pulsoterapia com metilprednisolona, seguida de ciclofosfamida mensal, com boa resposta inicial.

Ela usou azatioprina e prednisona irregularmente, mas ela também estava ingerindo álcool e outras substâncias ilícitas. Um ano mais tarde, desenvolveu sintomas no trato urinário inferior, dor abdominal, vômitos e diarreia, e o tratamento imunossupressor foi interrompido devido à suspeita clínica de infecção.

Ela foi submetida à tomografia computadorizada (TC) do abdome, que apresentou leve ectasia pieloureteral bilateral, provavelmente secundária à distensão da bexiga e espessamento leve e difuso de sua parede, com melhora após a administração intravenosa de contraste iodado, sugerindo processo inflamatório/infeccioso.

A TC também mostrou múltiplos linfonodos alongados e de tamanhos diferentes, distribuídos na raiz mesentérica, especialmente perto do íleo esplênico. Os exames laboratoriais de então revelaram: C3: 37,5 mg/dl (NR: 85-160 mg/dl), C4: 10,2 mg/dl (NR: 12-36 mg/dl) teste de Coombs direto positivo e anti-DNA; creatinina (Cr) 1,86 mg/dl e a urina-rotina mostrou piúria (90-100 células de pus/campo), hematúria (12-14 glóbulos vermelhos/campo), nitrito negativo e cristais de urato amorfo, mas sem crescimento bacteriano na urina e nas hemoculturas. Seus sintomas melhoraram após a administração de piperacilina + tazobactam associado à hidratação e analgésicos.

Ela evoluiu com uma diminuição progressiva dos níveis de creatinina e após três dias de hidratação vigorosa, a função renal recuperou-se (Cr = 0,7 mg/dl). Ela foi então submetida a uma TC abdominal, que apresentou uma pequena quantidade de fluido livre na cavidade abdominal e pequenos linfonodos no íleo esplênico e ao longo da cadeia mesentérica superior, medindo menos de 1 cm em seu eixo menor, e um espessamento difuso do intestino delgado.

Os rins demonstraram dilatação bilateral moderada da pelve até à junção ureterovesical, e a bexiga apresentou capacidade reduzida e paredes espessadas difusamente (Figuras 1 e 2). Foi realizada cistoscopia com biópsia da bexiga, e o exame histológico mostrou cistite crônica inespecífica, com presença de linfócitos no córion e células epiteliais, assim como hiperplasia epitelial reativa associada à congestão vascular focal, sem qualquer achado específico de lúpus. Devido à instabilidade e sinais clínicos de resposta inflamatória sistêmica, a paciente foi tratada com antibióticos de amplo espectro.

Figura 1 Tomografia computadorizada mostrando espessamento da parede da bexiga com importante redução na sua capacidade de enchimento. 

Figura 2 Espessamento difuso da parede do intestino delgado e hidronefrose bilateral. 

Além disso, um tubo nasogástrico aberto foi inserido e foi iniciada nutrição parenteral. Reposição eletrolítica e suporte hemodinâmico também foram realizados. Após a estabilização clínica, foi administrada metilprednisolona (1000 mg/dia durante 3 dias), seguida por 1 mg/kg de prednisona oral. A paciente apresentou melhora progressiva dos sintomas gastrointestinais e urinários e recebeu alta com prescrição de prednisona oral e azatioprina, que foi substituída por micofenolato de mofetil (MMF) após seis meses.

Onze meses após a alta, a RM apresentou hidronefrose bilateral discreta sem evidência de processos obstrutivos, e discreto e difuso espessamento da parede da bexiga (Figuras 3 e 4). A correlação deste estudo com a TC anterior demonstra maior plenitude e menor espessamento da parede da bexiga. A paciente está atualmente recebendo tratamento ambulatorial com 20 mg/dia de prednisona e 1 g de MMF.

Figura 3 Ressonância magnética do abdômen mostrando redução do espessamento da parede da bexiga e aumento da capacidade de enchimento após o uso de metilprednisolona. 

Figura 4 RM do abdome mostrando redução significativa da hidronefrose após o uso de metilprednisolona. 

Discussão

Fister (1938) relatou um caso de cistite intersticial em um paciente com LES e nenhuma outra etiologia aparente.9 Quarenta e cinco anos mais tarde, Orth et al. utilizaram o termo CL para descrever seis casos de cistite com espessamento da parede da bexiga e ureterohidronefrose sem outras causas identificáveis em pacientes com LES, e relatou forte associação com sintomas gastrointestinais e neurológicos.10

Infelizmente, quase todas as informações existentes sobre CL são baseadas em relatos de caso.5,7 Sua incidência é de aproximadamente 1,2% em pacientes com LES, mas acredita-se que a CL assintomática possa ser mais comum do que se pensava, uma vez que um estudo que avaliou necropsias de trinta e cinco pacientes com LES sem sintomas urinários encontrou cistite intersticial em 11 deles.4,11 Em uma série de 18 casos na China, o tempo médio entre o diagnóstico de LES e o desenvolvimento de cistite com hidronefrose foi de aproximadamente 15 meses.1 A cistite pode ser a manifestação inicial do LES.1,7,10

Neste relato, a primeira manifestação foi confundida com um episódio de cistite infecciosa, principalmente quando seus sintomas melhoraram com hidratação e antibióticos. A paciente permaneceu assintomática por 18 meses e seus sintomas urinários iniciais mostraram envolvimento significativo da bexiga, com sinais de cronicidade à biópsia. Vale ressaltar que a paciente não utilizou corretamente o esquema de imunossupressão na fase de manutenção, o que pode ter causado a progressão da doença.

Semelhante aos relatos anteriores, a paciente apresentou sintomas predominantemente gastrointestinais e a TC abdominal também demonstrou um espessamento difuso do intestino delgado. Zhang et al.,1 em um estudo com 18 casos de CL, observaram que 77,8% dos pacientes foram admitidos com sintomas gastrointestinais. Outros relatos de casos têm demonstrado associação entre CL e enterite em até 94,4% dos pacientes.7

Recentemente, Yuan et al.8 estudaram 3.823 pacientes com vasculite mesentérica lúpica e relataram que a CL ocorreu concomitantemente em 22,7% dos casos. Acredita-se que os autoanticorpos que atacam a bexiga e a mucosa intestinal possam ser responsáveis por essa associação.5,12 No presente estudo, observamos também um aumento nas enzimas pancreáticas e na linfadenopatia mesentérica, uma ocorrência rara, mas relatada anteriormente, em pacientes com CL ativa.3,6,12

Chen et al.12 relataram seis casos de CL, três dos quais tinham pancreatite ou linfadenopatia mesentérica. Devido à lesão renal aguda à apresentação, que pode aumentar a amilase e a lipase, e a ausência de alterações na TC pancreática, não podemos confirmar a pancreatite neste caso. Em relação à linfadenopatia, a última TC abdominal revelou que este achado regrediu após o tratamento com imunossupressor.

Outro achado importante é a associação entre CL e o envolvimento do sistema nervoso central, uma vez que nossa paciente havia iniciado com psicose lúpica e convulsões 18 meses antes do início dos sintomas de CL. Há casos relatados dessa associação, geralmente com pior prognóstico.1,10,12 O fato de outros órgãos, além da bexiga, serem geralmente afetados fortemente sugere que os pacientes com CL têm formas mais agressivas de LES e, portanto, devem ser tratados de forma mais agressiva com imunossupressores.

Os sintomas urinários mais comuns são dor suprapúbica, urgência urinária, noctúria e disúria com urina estéril, que estão presentes em até 61,1% dos pacientes.5,7,8 Neste relato, a paciente não apresentou sintomas urinários durante 18 meses, mas continuou a exibir cistite progressiva, com capacidade vesical significativamente reduzida (Figura 1). Existem outros relatos de CL na ausência de sintomas urinários, o que mostra o caráter silencioso da doença e a necessidade de explorar o trato urinário de pacientes com sintomas gastrointestinais, mesmo sem queixas urinárias, especialmente na presença de sinais ultrasonográficos que sugerem envolvimento da bexiga ou ureter.6,12

A alteração mais temida da CL é a uropatia obstrutiva, devido à inflamação e espessamento da parede da bexiga, que reduz a capacidade vesical e induz uma ureterohidronefrose secundária, essa última se manifesta em aproximadamente 92% dos pacientes.5,7,8 O prognóstico da função vesical é altamente dependente do tempo entre o diagnóstico e o tratamento, uma vez que pode haver fibrose, uropatia obstrutiva e perda irreversível da função renal.6,7

Com relação ao tratamento, os corticosteróides têm sido considerados a terapia de primeira escolha, pois induzem uma melhora significativa dos sintomas gastrointestinais, regressão da ureterohidronefrose e redução do espessamento da bexiga.10 Entretanto, nem todos os casos respondem bem aos esteroides, ciclofosfamida, ciclosporina e tacrolimus são alternativas nos casos resistentes.1,7,13

Neste relato, os sintomas do trato urinário inferior só melhoraram após a reintrodução da metilprednisolona, e optamos por uma terapia de manutenção com MMF. Três meses após a introdução do regime imunossupressor, a RM mostrou uma melhora significativa no espessamento e capacidade da bexiga (Figura 3).

Tal como acontece com outras manifestações do LES, o momento da introdução de corticosteróides pode ser crucial para alcançar melhor resposta. No entanto, no presente estudo, houve redução acentuada do espessamento da bexiga com o tratamento, mesmo após um ano sem imunossupressão regular. Esses dados sugerem que o processo inflamatório que induz espessamento da parede vesical na CL pode ser completamente revertido com altas doses de corticosteróides.14,15 Há pouca experiência com o uso de MMF na CL e são necessários mais estudos para determinar os melhores resultados com uso de imunossupressores a longo prazo.

REFERÊNCIAS

1 Zhang G, Li H, Huang W, Li X, Li X. Clinical features of lupus cystitis complicated with hydroureteronephrosis in a Chinese population. J Rheumatol 2011;38:667-71. DOI:
2 Koike T, Takabayashi K. Lupus cystitis in the Japanese. Intern Med 1996;35:87-8. DOI:
3 Segawa C, Wada T, Furuichi K, Takasawa K, Yokoyama H, Kobayashi K. Steroid pulse therapy in lupus cystitis. Intern Med 1996;35:155-8. DOI:
4 Min JK, Byun JY, Lee SH, Hong YS, Park SH, Cho CS, et al. Urinary bladder involvement in patients with systemic lupus erythematosus: with review of the literature. Korean J Intern Med 2000;15:42-50. DOI:
5 Shimizu A, Tamura A, Tago O, Abe M, Nagai Y, Ishikawa O. Lupus cystitis: a case report and review of the literature. Lupus 2009;18:655-8. DOI:
6 Marques MR, Matos C, Oliveira S. Enterite e cistite - uma causa de dor abdominal no lúpus. Acta Reumatol Port 2009;34:241-5.
7 Nishizaki Y, Tamaki H, Yukawa S, Matsui Y, Okada M. Comparison between Japanese and non-Japanese features of lupus cystitis based on case reports including novel therapy and a literature review. Intern Med 2011;50:961-8. DOI:
8 Yuan S, Ye Y, Chen D, Qiu Q, Zhan Z, Lian F, et al. Lupus mesenteric vasculitis: clinical features and associated factors for the recurrence and prognosis of disease. Semin Anthritis Reum 2014;43:759-66. DOI:
9 Fister GM. Similarity of interstitial cystitis (Hunner's ulcer) to lupus erythematosus. J Urol 1938;40:37-51.
10 Orth RW, Weisman MH, Cohen AH, Talner LB, Nachtsheim D, Zvaifler NJ. Lupus cystitis: primary bladder manifestations of systemic lupus erythematosus. Ann Intern Med 1983;98:323-6. DOI:
11 Alarcón-Segovia D, Abud-Mendoza C, Reyes-Gutiérrez E, Iglesias-Gamarra A, Díaz-Jouanen E. Involvement of the urinary bladder in systemic lupus erythematosus. A pathologic study. J Rheumatol 1984;11:208-10.
12 Chen MY, Lee KL, Hsu PN, Wu CS, Wu CH. Is there an ethnic difference in the prevalence of lupus cystitis? A report of six cases. Lupus 2004;13:263-9. DOI:
13 Maruoka H, Honda S, Takeo M, Koga T, Fukuda T, Alzawa H. Tacrolimus treatment for refractory lupus cystitis. Mod Rheumatol 2006;16:264-6. DOI:
14 Castillo OA, Miranda-Utrera N. Laparoscopic cystectomy and intracorporeal continent urinary diversion (Mainz II) in treatment for interstitial cystitis. Actas Urol Esp 2014;38:200-4. PMID: 24126195 DOI:
15 Peters KM, Jaeger C, Killinger KA, Rosenberg B, Boura JA. Cystectomy for ulcerative interstitial cystitis: sequelae and patients' perceptions of improvement. Urology 2013;82:829-33. DOI: