Compartilhar

Cisto hidático do rim: tratamento médico

Cisto hidático do rim: tratamento médico

Autores:

Ana Teresa Trindade Soares,
Catarina Couto,
Maria João Cabral,
Luísa Carmona,
Isabel Vieira

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.38 no.1 São Paulo jan./mar. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160017

Introdução

A equinococose ou hidatidose é uma zoonose causada mais frequentemente pelo parasita Echinococcus granulosus.1 Tem uma distribuição mundial, embora seja mais prevalente na Austrália, Nova Zelândia, Norte de África, Índia, Bacia Mediterrânea e em algumas regiões da América do Sul.2 Relativamente a Portugal, dados da Organização Mundial de Saúde consideram o país como sendo endêmico, com uma incidência estimada em 2,2 casos/100.000 habitantes.1,3 Estudos realizados a nível nacional referem que a maioria dos casos estão confinados à região do Alentejo, mais precisamente ao distrito de Évora, assistindo-se, contudo, a uma diminuição do número de casos diagnosticados ao longo dos últimos anos.3

Qualquer órgão pode ser afetado, no entanto, 90% das infeções localizam-se no fígado e no pulmão. O rim é atingido em apenas 2% dos casos.3-5

O envolvimento renal manifestase habitualmente por um cisto único localizado ao nível do córtex. Os sintomas variam de acordo com o tamanho, extensão e localização do cisto, podendo os pacientes permanecer assintomáticos por um longo período ou apresentar queixas como lombalgia, hematúria ou massa abdominal.1,5,6

A hidatidúria, sinal patognomônico da doença, ocorre em apenas 10-20% em dos casos, quando se verifica rotura do cisto para o aparelho urinário.5,7

O diagnóstico é feito por métodos de imagem, nomeadamente ecografia, tomografia computorizada (TC) e ressonância magnética nuclear (RMN), podendo ser complementado por testes sorológicos, habitualmente pelo método de ELISA ou por hemoaglutinação indireta, para titulação de anticorpos específicos que permitem também o seguimento e determinação de recidiva.5,6,8 Contudo, a resposta humoral apresenta uma sensibilidade que varia entre 35 e 90% e que é condicionada por vários fatores, tais como características genéticas do hospedeiro e do parasita, assim como pela localização e viabilidade do cisto hidático.1,9

No que respeita à abordagem terapêutica, o método gold standard é a excisão cirúrgica associada à terapêutica médica com antiparasitário.1,8,10 Em casos selecionados, métodos menos invasivos podem ser utilizados, tais como a drenagem percutânea do cisto guiada por ecografia ou TC com aspiração e instilação de solução salina hipertónica ou álcool.6

Caso clínico

Adolescente de 14 anos de idade, do sexo masculino, residente no distrito de Setúbal, sem antecedentes pessoais de relevo, admitido na Urgência Pediátrica, por lombalgia e hematúria, após traumatismo lombar. Referia contato regular com cães, ovinos e caprinos, existentes na herdade dos avós, no Alentejo, onde passava habitualmente os fins-de-semana. Na admissão, encontrava-se sem alterações ao exame objetivo.

Realizou ecografia (Figura 1) e TC renal (Figura 2) que evidenciaram a presença de lesão expansiva encapsulada ao nível do terço médio do rim esquerdo, medindo 9x9x6,8 cm de maiores eixos longitudinal, anteroposterior e transversal, respetivamente, com focos cálcicos milimétricos, justa-parietais e heterogeneidade interna com componente central denso compatível com hemorragia recente. Da avaliação laboratorial realizada, destacava-se hemoglobina 12,8 g/dL, leucócitos 5,8x109/L, neutrófilos 52,5%, eosinófilos 3,9% proteína c reativa 0,7 mg/dL, ureia 25 mg/dL, creatinina 0,6 mg/dL, velocidade de sedimentação 40 mm/h (valor de referência de < 16 mm/h) e presença de anticorpos específicos para Echinococcus granulosus. Não apresentava hidatidúria.

Figura 1 Ecografia abdominal. Presença de lesão cística ao nível do rim esquerdo. 

Figura 2 TC abdominal. Lesão expansiva encapsulada ao nível do terço médio do rim 

Para melhor caracterização da lesão, foi efetuada RMN (Figura 3), que confirmou tratar-se de uma formação nodular exofítica, predominantemente cística localizada no seio renal, sem componente infiltrativo ou obstrutivo, sugestiva de cisto hidático. Admitindo-se o diagnóstico de doença hidática do rim complicada por hemorragia pós-traumática e atendendo à estabilidade clínica e hemodinâmica, optou-se por iniciar terapêutica antiparasitária com albendazol, na dose de 400 mg/dia em duas tomas diárias. Pelo risco de sobreinfeção bacteriana, iniciou terapêutica antimicrobiana com ceftriaxone. A evolução clínica foi lenta, mas favorável, tendo tido alta após 24 dias de internamento. Manteve terapêutica em ambulatório com albendazol até perfazer 4 ciclos de 4 semanas cada e seguimento em consulta para monitorização clínica e por exames de imagem. Não foi observado nenhum efeito adverso. Após terminar o ciclo terapêutico mencionado anteriormente, realizou TC, que confirmou a diminuição das dimensões do cisto, medindo 3,6x3,4x2,3 cm de maiores eixos longitudinal, transversal e anteroposterior (Figura 4) e testes serológicos que demonstraram a ausência de anticorpos específicos. O doente manteve-se assintomático, sem alteração das dimensões do cisto ou positividade dos anticorpos após quatro anos de vigilância.

Figura 3 RMN abdominal. Formação nodular exofítica, cística, localizada no seio renal sem componente infiltrativo ou obstrutivo, compatível com cisto hidático. 

Figura 4 Evidência de regressão do cisto com 3,6x3,4x2,3cm de maiores eixos longitudinal, transversal e anteroposterior. 

Discussão

A doença hidática do rim é considerada rara, podendo associar-se a complicações potencialmente graves, tais como compressão vascular, infeção do cisto, choque, sepse e morte.1,5 O cão é o principal hospedeiro e os animais herbívoros os hospedeiros intermediários. O ser humano pode adquirir a doença por contato direto com animais infetados ou pela ingestão de alimentos contaminados com ovos do parasita, nomeadamente frutas e legumes crus ou mal cozinhados, e água não tratada. Os ovos dão origem a larvas no intestino humano que por via hematogênica invadem os órgãos.1,5,8 No que diz respeito ao caso clínico apresentado, de referir a ocorrência de estadias regulares no Alentejo, região considerada endêmica em Portugal, onde mantinha contato próximo com animais considerados transmissores.

Relativamente ao tratamento, a excisão cirúrgica é considerada a terapêutica de primeira linha sempre que exista envolvimento do parênquima renal, na maioria dos casos e dependendo da dimensão do cisto, com nefrectomia parcial ou total. Em casos particulares, a excisão do cisto poderá ser uma opção, embora com risco de recidiva de 10 a 30%.8,9 Recentemente, alguns artigos referem terapêuticas menos invasivas que permitem a preservação do órgão. Destas, destaca-se a drenagem percutânea, guiada por ecografia ou TC associada à terapêutica médica antiparasitária adjuvante.6 Como principais desvantagens estão descritas: risco de recidiva, disseminação da infeção e anafilaxia.6

O tratamento médico isolado com antiparasitários como o albendazol ou o mebendazol tem sido descrito na doença hidática do fígado e do pulmão como uma alternativa à cirurgia, com bons resultados na redução do tamanho e volume do cisto.4 Tem como principal desvantagem a menor eficácia e a possibilidade de ocorrência de reações adversas como hepatotoxicidade, leucopenia, reações alérgicas e alopécia.4,6 Contudo, de acordo com as últimas recomendações publicadas por WHO-IWGE para o tratamento da doença hidática do fígado, a opção terapêutica deve ser baseada nas características do cisto, na experiência e disponibilidade de terapêutica médica e/ou cirúrgica e na possibilidade de seguimento a longo prazo, não havendo uma terapêutica considerada ideal.6

De acordo com as recomendações acima referidas, o albendazol é considerado o antiparasitário de escolha utilizado isoladamente ou como terapêutica adjuvante na dose de 10-15mg/kg/dia, dividida em duas tomas diárias.6 Um estudo recentemente publicado mostrou que na doença hidática do fígado a terapêutica com albendazol em ciclos de 3 a 6 meses induz a redução e a inativação do cisto, o qual é determinado segundo as normas da WHO-IWGE pelas suas características ecográficas, embora associada à recidiva frequente.4 Na doença hidática do rim, a terapêutica médica, embora segura, tem sido considerada pouco eficaz, mantendo-se a terapêutica cirúrgica o método de eleição. Desta forma, está preconizado o seu uso de forma profilática na dose 10-15 mg/kg/dia (máximo de 400 mg), via oral, antes e após cirurgia.10

No que diz respeito ao caso clínico acima descrito, optou-se por uma abordagem conservadora atendendo à estabilidade clínica e hemodinâmica e ao fato da localização e dimensões do cisto implicarem nefrectomia total e risco de ruptura intraoperatória do cisto. Desta forma, foi iniciada terapêutica médica, como descrito na doença hidática do fígado, com albendazol na dose de 400 mg, dividida em duas tomas diárias com vista à preservação do rim. Verificou-se redução progressiva das dimensões do cisto, sem efeitos adversos associados e com anticorpos específicos não identificáveis, não se tendo constatado qualquer alteração das dimensões do cisto ou dos testes serológicos após interrupção terapêutica.

Embora existam poucos estudos publicados descrevendo a terapêutica médica como opção na doença hidática do rim, esta poderá ser uma alternativa a considerar, pois permite a preservação do órgão, particularmente importante em idades mais jovens.

Esta opção terapêutica implica que se assegure a colaboração dos cuidadores, uma proximidade dos cuidados de saúde diferenciados permitindo, se necessário, uma intervenção urgente, bem como um seguimento a longo prazo, de forma a detectar precocemente casos de recidiva.

REFERÊNCIAS

1 Reis T, Vilares A, Ferreira I, Martins S, Furtado C, Gargaté MJ. Hidatidose quística humana: análise retrospetiva de casos diagnosticados e em monitorização entre 2008 e 2013. Porto: Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge; 2014. p.30-3
2 Vaz PS, Pereira E, Usurelu S, Monteiro A, Caldeira A, Melo G, et al. Hepatic hydatid cyst: a non-surgical approach. Rev Soc Bras Med Trop 2012;45:774-6. DOI:
3 Morais JAD. Hidatidose humana. Estudo clínico-epidemiológico no distrito de Évora durante um quarto de século. Acta Med Port 2007;20:1-10.
4 Rinaldi F, De Silvestri A, Tamarozzi F, Cattaneo F, Lissandrin R, Brunetti E. Medical treatment versus "Watch and Wait" in the clinical management of CE3b echinococcal cysts of the liver. BMC Infect Dis 2014;14:492. DOI:
5 Moscatelli G, Moroni S, Freilij H, Salgueiro F, García Bournissen F, Altcheh J. A five-year-old child with renal hydatidosis. Am J Trop Med Hyg 2013;89:554-6. PMID: 23897992 DOI:
6 Brunetti E, Kern P, Vuitton DA; Writing Panel for the WHO-IWGE. Expert consensus for the diagnosis and treatment of cystic and alveolar echinococcosis in humans. Acta Trop 2010;114:1-16. DOI:
7 Rexiati M, Mutalifu A, Azhati B, Wang W, Yang H, Sheyhedin I, et al. Diagnosis and surgical treatment of renal hydatid disease: a retrospective analysis of 30 cases. PLoS One 2014;9:e96602. DOI:
8 Marcelino J, Dias J, Lopes T, Martins F. Quisto hidático do rim: dificuldades no diagnóstico diferencial. Acta Urol Port 2000;17:73-5.
9 Moscatelli G, Abraham Z, Morini S, Iriart EM, Rodríguez M, Mirón L, et al. Descripción del caso presentado en el número anterior: Hidatidosis pulmonar. Arch Argent Pediatr 2012;110:265-7. DOI:
10 Aggarwal S, Bansal A. Laparoscopic management of renal hydatid cyst. JSLS 2014;18:361-6. DOI: