versão impressa ISSN 1806-3713
J. bras. pneumol. vol.40 no.4 São Paulo jul./ago. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132014000400011
O transplante pulmonar (TP) é uma escolha terapêutica para pacientes com pneumopatias avançadas. Apesar do avanço no tratamento dos transplantados pulmonares, a rejeição aguda do enxerto ainda permanece comum, afetando até 55% desses pacientes no primeiro ano pós-operatório. A rejeição é o principal fator de risco para o desenvolvimento da síndrome de bronquiolite obliterante e parece estar relacionada com o desenvolvimento de resposta humoral com ativação de complemento e produção de anticorpos HLA contra o doador.( 1 ) A biópsia transbrônquica (BTB) é o principal método para o diagnóstico de rejeição celular aguda. Vários estudos têm mostrado a correlação entre níveis séricos elevados de citocinas e complicações no pós-operatório, além da associação desses níveis com edema de reperfusão, rejeição aguda e síndrome de bronquiolite obliterante.( 2 ) O objetivo do presente estudo foi correlacionar os níveis de desidrogenase lática (DHL) e de citocinas pró-inflamatórias, assim como a contagem diferencial de células, no líquido pleural com a rejeição celular aguda em pacientes submetidos a TP. Nossa hipótese era de que níveis elevados de citocinas pró-inflamatórias no líquido pleural seriam indicadores precoces de rejeição do enxerto no TP.
Entre agosto de 2006 e março de 2008, 20 pacientes submetidos a TP foram avaliados no estudo, sendo 18 incluídos. Dois pacientes foram excluídos da análise porque morreram nas primeiras seis semanas. Os valores globais de DHL e de citocinas e a contagem de células no líquido pleural, sem qualquer referência à rejeição, foram relatados em um artigo anterior.( 3 )
Amostras de sangue e de líquido pleural foram recolhidas para avaliação 6 h após a cirurgia e diariamente até o 4º dia pós-operatório. Realizamos BTB na segunda e sexta semanas após o TP para a avaliação de rejeição, utilizando um critério de classificação (A0 = sem rejeição; A1 = rejeição mínima; A2 = rejeição leve; A3 = rejeição moderada; e A4 = rejeição grave) de acordo com a intensidade de infiltrado mononuclear perivascular no parênquima pulmonar. Para a análise final, o paciente foi classificado de acordo com o grau mais grave de rejeição nas duas biópsias.
Não foi realizada uma análise cega das biópsias, as quais seguiram a rotina assistencial do serviço por um patologista treinado, sendo analisadas pelo menos 5 amostras de tecido para garantir a representatividade do parênquima pulmonar.
Dos 18 pacientes do estudo, 3, 4, 8 e 3, respectivamente, foram classificados nas categorias A0, A1, A2 e A3.
Os níveis séricos de IL-6 e IL-8 foram indetectáveis em todas as amostras. Os níveis séricos de VEGF foram muito menores do que os níveis de VEGF no líquido pleural e não diferiram significativamente nos pacientes com diferentes graus de rejeição.
No presente estudo, os níveis séricos indetectáveis de citocinas sugerem que a resposta inflamatória no TP pode estar confinada primariamente no pulmão e na cavidade pleural. Resultados semelhantes foram relatados em outros estudos,( 2 , 4 , 5 ) observando-se que a elevação aguda dessas citocinas foi mais evidente nos pacientes que tiveram edema de reperfusão ou rejeição aguda.
A correlação entre os níveis de DHL e a contagem diferencial de células no líquido pleural está descrita na Tabela 1, apresentando valores maiores nos grupos de pacientes com rejeição.
Tabela 1 Relação dos níveis de desidrogenase lática e das contagens totais e diferenciais de células em amostras de líquido pleural coletadas em diferentes momentos com o grau de rejeição aguda.a
Variáveis | Grau de rejeição aguda | |||
---|---|---|---|---|
A0 | A1 | A2 | A3 | |
DHL, mg/dL | ||||
6 h | 1.855 ± 594 | 3.176 ± 530** | 2.310 ± 964 | 4.134 ± 1.487* |
24 h | 1.250 ± 1.028 | 1.605 ± 1.285 | 1.779 ± 1.233 | 2.214 ± 958 |
48 h | 1.181 ± 293 | 1.455 ± 642 | 966 ± 503 | 1.638 ± 1.201 |
72 h | 375 ± 46 | 655 ± 462 | 576 ± 159 | 711 ± 203*** |
96 h | 316 ± 33 | 586 ± 434 | 498 ± 214 | 621 ± 233 |
Células totais, cels/mL | ||||
6 h | 1.679 ± 1.612 | 3.812 ± 2.387 | 4.606 ± 3.156 | 10.710 ± 6.394*** |
24 h | 595 ± 786 | 2.764 ± 1.250**** | 2.359 ± 645**** | 4.723 ± 2.514****.***** |
48 h | 645 ± 116 | 897 ± 626 | 649 ± 421 | 2.457 ± 2.180 |
72 h | 246 ± 323 | 316 ± 168 | 542 ± 456 | 599 ± 680 |
96 h | 167 ± 223 | 418 ± 288 | 435 ± 399 | 482 ± 120*** |
Neutrófilos | ||||
6 h | 1.573 ± 1.485 | 3.580 ± 2.281 | 4.368 ± 3.074 | 9.884 ± 5.245****** |
24 h | 537 ± 707 | 2.471 ± 942**** | 1.314 ± 1.255**** | 4.478 ± 2.553**** |
48 h | 588 ± 147 | 812 ± 642 | 590 ± 450 | 2.266 ± 2.255 |
72 h | 210 ± 274 | 266 ± 155 | 475 ± 431 | 374 ± 393 |
96 h | 144 ± 192 | 258 ± 252 | 367 ± 339 | 235 ± 195 |
Linfócitos | ||||
6 h | 90 ± 112 | 161 ± 56 | 156 ± 126 | 1.078 ± 1.455 |
24 h | 52 ± 72 | 136 ± 140 | 71 ± 28 | 191 ± 74*** |
48 h | 45 ± 32 | 65 ± 62 | 48 ± 50 | 145 ± 90*** |
72 h | 36 ± 50 | 45 ± 24 | 36 ± 4 | 133 ± 166 |
96 h | 23 ± 32 | 78 ± 61 | 41 ± 43 | 59 ± 62 |
A0: sem rejeição
A1: rejeição mínima
A2: rejeição leve
A3: rejeição moderada
DLH: desidrogenase lática
aValores expressos em média ± dp
*p < 0.05 (A3 > A0 e A2)
**p < 0.05 (A1 > A0)
***p < 0.05 (A3 > A0)
****p < 0.05 (A3, A2 e A1 > A0)
*****p < 0.05 (A3 > A1 e A2)
******p < 0.05 (A3 > A0, A1 e A2).
Encontramos níveis elevados de IL-6 e IL-8 no líquido pleural amostrado 6 h após o TP, com subsequente redução até o 4º dia pós-operatório. Tal variação não ocorreu com os níveis de VEGF. Pacientes com níveis mais elevados de rejeição tenderam a ter níveis mais elevados dessas citocinas (Tabela 2). Pacientes classificados como A3 tinham níveis mais elevados de IL-6 e IL-8 em todos os momentos quando comparados com aqueles com graus mais baixos de rejeição. Os níveis de VEGF foram maiores para os pacientes dos grupos A3, A2 e A1 quando comparados com aqueles do grupo A0 na amostra retirada após 6 h do TP.
Tabela 2 Relação dos níveis de IL-6, IL-8 e VEGF em amostras de líquido pleural coletadas em diferentes momentos com o grau de rejeição aguda.a
Variáveis | Grau de rejeição aguda | |||
---|---|---|---|---|
A0 | A1 | A2 | A3 | |
IL-6, pg/mL | ||||
6 h | 14.717 (10.719-18.816) | 27.368 (20.445-41.316) | 38.521 (29.543-45.367) | 49.854 (42.854-53.415)* |
24 h | 6.384 (2.304-10.464) | 13.410 (10.973-17.608) | 12.060 (8.886-17.824) | 21.337 (17.779-48.322)** |
48 h | 7.642 (2.707-12.576) | 11.402 (9.370-13.303) | 12.211 (9.075-13.477) | 15.010 (12.717-46.503)** |
72 h | 5.010 (2.227-7.793) | 7.731 (5.301-9.687) | 4.891 (3.748-6.303) | 8.506 (4.871-8.605) |
96 h | 2.879 (2.196-3.562) | 7.372 (6.292-8.461)*** | 4.838 (3.963-8.047)*** | 6.151 (4.593-7.709)*** |
IL-8, pg/mL | ||||
6 h | 1.318 (1.020-1.617) | 1.706 (1.018-1.956) | 1.696 (1.286-1.941) | 2.216 (2.110-2.323)**** |
24 h | 1.266 (996-1.536) | 1.177 (767-1.608) | 1.224 (799-1.706) | 2.187 (2.119-2.254)**** |
48 h | 1.091 (760-1.423) | 1.455 (765-1.523) | 1.037 (788-1.169) | 2.036 (1.922-2.150)**** |
72 h | 965 (579-1.351) | 1.472 (377-1.633) | 945 (682-1.163) | 1.935 (1.775-2.096)**** |
96 h | 981 (482-1.481) | 464 (244-1.127) | 690 (288-1.005) | 1.859 (1.775-1.943)**** |
VEGF, pg/mL | ||||
6 h | 72 (34-110) | 343 (290-508)*** | 297 (145-504)*** | 566 (153-879)*** |
24 h | 123 (18-228) | 188 (115-284) | 279 (77-445) | 382 (107-745) |
48 h | 121 (20-221) | 123 (95-172) | 283 (84-435) | 123 (54-406) |
72 h | 142 (17-267) | 143 (112-214) | 294 (116-382) | 123 (39-406) |
96 h | 144 (8-280) | 134 (115-336) | 280 (191-425) | 280 (81-445) |
A0: sem rejeição
A1: rejeição mínima
A2: rejeição leve
A3: rejeição moderada
aValores expressos em mediana (intervalo interquartílico)
*p< 0.05 (A3 > A0 e A1)
**p < 0.05 (A3 > A0)
***p < 0.05 (A3, A2 e A1 > A0)
****p < 0.05 (A3 > A2, A1 e A0).
Devido ao trauma cirúrgico e a presença de um dreno, há inflamação do espaço pleural, o que poderia explicar os níveis elevados de citocinas. Em nosso estudo, é interessante notar que, apesar da redução progressiva dos marcadores inflamatórios com o tempo, os níveis de citocinas pró-inflamatórias permaneceram elevados durante os quatro primeiros dias, e a irritação causada pelo dreno deixado no local por até 96 h é uma possível explicação para esse fato, o qual, no entanto, não explica as diferenças observadas nos subgrupos. Especulamos que os níveis de citocinas presentes nos pacientes considerados A0 representam o aumento de citocinas resultante do trauma cirúrgico e do uso de drenos. Esse nível de inflamação diminui com o tempo, como foi evidenciado pela redução nos níveis de IL-6 e IL-8 no líquido pleural. Os níveis de citocinas nos pacientes do subgrupo A3 foram muito mais elevados do que nos outros subgrupos de rejeição, o que pode ser um indicador precoce de rejeição.
Foram encontradas correlações positivas entre os níveis de IL-6 com os níveis de DHL no líquido pleural (r = 0,49; p = 0,030) e com a contagem de neutrófilos (r = 0,90; p = 0,036), enquanto os níveis de VEGF correlacionaram-se fortemente com a contagem de neutrófilos (r = 0,91; p = 0,030) e de leucócitos totais (r = 0,88; p = 0,048). Por outro lado, foi encontrada uma forte correlação negativa entre os níveis de IL-8 no líquido pleural e a contagem de linfócitos (r = −0,97; p = 0,007). Além disso, uma forte correlação positiva foi encontrada entre os níveis de IL-6 no líquido pleural com aqueles de IL-8 (r = 0,70; p < 0,001) e de VEGF (r = 0,71; p < 0,001), assim como houve uma ligeira correlação entre os níveis de IL-8 e de VEGF (r = 0,49; p = 0,027). No presente estudo, não houve correlação entre o grau de rejeição aguda e o grau de disfunção do enxerto primário nas primeiras 72 h após o TP.
Nos pacientes submetidos a TP, a inflamação do parênquima pulmonar conduz a um aumento do edema intersticial, com níveis elevados de citocinas. Uma vez que os vasos linfáticos são cortados, mais fluido intersticial sai dos pulmões, atravessando a pleura visceral, podendo levar a níveis elevados de citocinas, que foram observados nos pacientes com rejeição.
Uma limitação do estudo foi o pequeno número de pacientes em cada subgrupo. No entanto, é evidente que os níveis de citocinas inflamatórias foram mais elevados nos pacientes com grau de rejeição A3 em comparação com aqueles de outros subgrupos. Destacamos também que o pequeno tamanho da amostra pode ser responsável pela falta de significância estatística observada nos níveis de citocinas entre os pacientes dos subgrupos A1 e A2. Além disso, os resultados podem ter sido influenciados pelo fato de que a coleta do líquido pleural e a BTB ocorreram em momentos distintos. Esses dados são antigos, e um estudo maior baseado neles está em andamento.
Demonstramos que níveis elevados de citocinas pró-inflamatórias no líquido pleural de pacientes submetidos a TP podem ser marcadores de rejeição aguda do enxerto, em particular, de grau moderado a severo. Nesse contexto, é possível que a determinação de citocinas no líquido pleural seja útil na identificação de pacientes que irão desenvolver rejeição. Dessa forma, o tratamento poderia ser iniciado mais cedo, levando a redução da lesão no parênquima pulmonar.