versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.26 no.5 São Paulo set./out. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20142013071
O cleft laríngeo (CL), por definição, é uma malformação congênita que resulta em incomum comunicação entre esôfago e o complexo laringotraqueal. É uma doença rara, sendo sua incidência de 1:10.000/20.000 nascidos vivos, de maior prevalência no gênero masculino(1-9).
O CL é frequentemente associado a outras malformações (16 a 68%)(1,4,6-8), principalmente do trato digestivo(7), que podem se apresentar de forma isolada ou provenientes de síndrome genética. Quatro síndromes genéticas são frequentemente associadas ao CL: Síndrome Optiz-Frias e Síndrome de Pallister Hall(1,3,6-8), Síndrome de DiGeorge(8) e Síndrome de CHARGE(6,8), além da associação VACTERL(1,6,8).
O grau de extensão desse acometimento anatômico é variado, partindo de pequena abertura considerada como uma variante anatômica até uma comunicação completa entre traqueia e esôfago(7). O sistema de classificação mais aceito é o proposto por Benjamin e Inglis, modificado por Sandu em 2006(1,3,5-8). São apresentados cinco tipos, do tipo 0 ao tipo IV, que variam do CL submucoso ao que se estende até a traqueia torácica. A sintomatologia é variada e inespecífica. A literatura descreve os sintomas mais comuns a cada tipo, cuja gravidade aumenta de acordo com a extensão do cleft, com implicação direta no prognóstico(1,6-8).
Em linhas gerais, os sintomas comumente cursam com engasgos, tosse, cianose, episódios de aspiração, estridor respiratório, imagem de raio X de tórax com alterações sugestivas de broncoaspiração ou pneumonia(1,2,4,6-8). Alguns desses sintomas são comumente confundidos com incoordenação no momento da mamada, especialmente ao se tratar de neonatos. O diagnóstico torna-se difícil e, por vezes, tardio(2,6).
O diagnóstico do CL é realizado por meio de exames de imagem e por via endoscópica(1-3,5,7,8). A partir desses exames, é possível verificar a existência de outras malformações tais como fístulas, laringomalácia, paralisia laríngea, doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) e alterações da deglutição(1,2,6-8). Exames complementares ajudam no diagnóstico e também no tratamento dos sintomas do CL, tais como raio X, tomografia computadorizada e videofluoroscopia da deglutição(1,2,5,6,8). O exame considerado padrão ouro é a microlaringoscopia direta(1,3,6,7).
Na avaliação médica, são consideradas, além da extensão do CL, a gravidade dos sintomas e sua frequência de apresentação e a complicação que sua presença traz ao trato respiratório para, então, se optar pelo procedimento terapêutico mais indicado. Nos CLs menores, é indicado, inicialmente, tratamento não cirúrgico, por meio de terapia conservadora. Nos demais casos, a indicação é cirúrgica, com variação na abordagem(1,2,5-8).
Devido à sintomatologia inespecífica, ao curso com outras doenças e à presença de sinais indicadores de alteração na deglutição, a literatura aponta a importância do diagnóstico diferencial(1,2,6,7), que deve, inclusive, envolver profissionais de áreas correlatas, com inclusão do fonoaudiólogo(2,7).
O objetivo deste estudo foi relatar a atuação fonoaudiológica em um caso de um paciente neonato com diagnóstico de CL tipo I.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP) — registro CEP 830/08 — e houve o cumprimento de todos os critérios da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Os responsáveis legais do participante da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Neonato do gênero feminino, nascido a termo, adequado para idade gestacional. Parto cesáreo por suspeita de sofrimento fetal, de mãe secundigesta, de 29 anos, com Apgar de 8/9/10, 3.250 g, com a presença de líquido meconial fluido (++/4+), com necessidade de aspiração de vias aéreas superiores. Com 24 h de vida, a paciente evoluiu com quadro febril e desconforto respiratório. Durante a primeira internação, apresentou quadro séptico com necessidade de expansão volêmica e realizou oxigenoterapia por seis dias. Após dez dias de internação, teve melhora do quadro clínico e recebeu alta em aleitamento materno exclusivo.
Dezoito dias após essa primeira internação, o neonato foi admitido no berçário do mesmo serviço, apresentando baixo ganho ponderal, com queixas de engasgos e tosse durante a mamada, cursando com crises de cianose. Foi realizado raio X de tórax com imagem em base direita e tomografia evidenciando processo broncopneumônico. Solicitou-se avaliação fonoaudiológica devido à persistência desses sintomas às mamadas.
A avaliação clínica fonoaudiológica não apontou alterações estruturais orofaciais e foi observada deglutição de saliva com frequência adequada. Durante a sucção não nutritiva, foi observado: sucção adequada, ritmo satisfatório e pressão intraoral adequada. O neonato não apresentou alteração dos parâmetros fisiológicos, tampouco da ausculta cervical.
Ao teste da mamadeira com bico ortodôntico, a paciente apresentou sucção efetiva, preensão adequada do bico, frequência de sucção/deglutição de 1:1, ausência de pausas espontâneas. Mas apresentou dois engasgos, o que levou a equipe fonoaudiológica a suspeitar de alteração de fase faríngea da deglutição e a discutir a solicitação de videofluoroscopia da deglutição com a equipe médica. A equipe fonoaudiológica ainda orientou a mãe e a equipe de enfermagem a oferecer pausas a cada três sucções para evitar a ocorrência de engasgos.
O exame foi realizado no próprio hospital, em 27 de março de 2012, e seguiu o protocolo do serviço. O neonato foi posicionado em decúbito elevado com faixa compressora, que possibilitou a retenção de forma segura, e em visão lateral, ficando o mais próximo possível do tampo da mesa e do intensificador. Evitaram-se, dessa forma, distorções da imagem fluoroscópica. O campo foi colimado na área de interesse, com parâmetros de exposição definidos automaticamente por meio de câmara de ionização, onde se consegue a melhor imagem fluoroscópica com a menor dose de radiação. O contraste foi oferecido com bico ortodôntico da marca NUK®, com furo para líquido fino e foi utilizada a diluição de 30% de sulfato de bário a 100% (Bariogel®) e 70% de leite (líquido fino) aquecido, no volume total prescrito pelo médico neonatologista. O foco da imagem fluoroscópica foi delimitado na região anterior pelos lábios, na região superior pela cavidade nasal, na região posterior pela coluna cervical e na região inferior pela bifurcação da via aérea e esôfago cervical.
Na fase oral da deglutição, o neonato apresentou vedamento labial e movimentação de língua adequados, sucção eficaz e frequência de sucção/deglutição de 1:1. Na fase faríngea, não apresentou contraste em rinofaringe e foram observadas elevação e anteriorização do complexo hiolaríngeo diminuídas (observação qualitativa). Apresentou, ainda, três episódios de penetração laríngea e dois episódios de aspiração laríngea silente. Em seguida, foi oferecido leite engrossado (2%) em mamadeira com bico ortodôntico com furo para líquido fino e o neonato apresentou bom desempenho, com ausência de penetração e/ou aspiração. As imagens permitiram fazer o diagnóstico de disfagia discreta/moderada, segundo a classificação de gravidade da disfagia(10), e, de acordo com a Escala de Penetração-Aspiração(10,11), recebeu escore 8 para líquido fino e escore 1 para líquido engrossado. Vale ressaltar que não existem escalas específicas para videofluoroscopia da deglutição na população infantil, por isso, foram utilizadas duas escalas para a classificação da disfagia de pacientes adultos(12). Na fase esofágica, as imagens indicaram presença de refluxo esofágico até a porção cervical do esôfago.
A partir desses dados e com a informação de que a produção láctea da mãe já havia diminuído, a equipe multiprofissional optou pela utilização de fórmula láctea para termo engrossada a 2% com creme de arroz. Com essa medida, foi observada diminuição na ocorrência de engasgos e de quedas de saturação de oxigênio, além de incrementar o ganho ponderal.
Com o objetivo de elucidar o diagnóstico, foi realizada uma microlaringoscopia direta em 30 de março de 2012, que evidenciou a presença de CL tipo I (fenda aritenoide), laringe de morfologia normal, exceto por ausência de prega interaritenoide posterior, comissura anterior presente e normal e presença de leite em vias aéreas. A equipe médica considerou que não havia indicação de procedimento cirúrgico, sendo adotada, então, conduta conservadora e a elencada pela equipe multiprofissional foi a de espessar o leite a 6%.
Após oito dias da realização do exame de microlaringoscopia direta e alteração da dieta, o neonato recebeu alta, com melhora do quadro clínico apresentando padrão respiratório estável, ausência de engasgos e de dessaturações de oxigênio.
A paciente, na alta hospitalar, foi encaminhada para o Ambulatório de Fonoaudiologia do referido hospital, no qual realizou oito consultas em 11 meses de atendimento. Durante o atendimento, a paciente apresentou bom desempenho com líquido engrossado a 6% com creme de arroz. Realizou terapia para reintrodução de líquido fino (água e sucos), inicialmente na colher, passando para mamadeira com fluxo reduzido. Não apresentou sinais clínicos sugestivos de penetração e/ou aspiração com líquidos finos ao término das sessões terapêuticas. Além disso, foram introduzidos alimentos pastosos com colher, com os quais a paciente apresentou bom desempenho e ausência de sinais clínicos sugestivos de penetração e/ou aspiração, evoluindo para dieta geral para a idade, sem utilização de engrossantes na alta ambulatorial. Durante todo o gerenciamento fonoaudiológico e acompanhamento pediátrico de rotina, a paciente permaneceu assintomática e não apresentou quadros respiratórios.
O CL é uma anomalia estrutural congênita de baixa incidência e de prevalência em indivíduos do gênero masculino(1-9). O presente estudo condiz com a literatura, por apresentar o caso de um neonato com uma malformação congênita diagnosticada, porém foge às referências por ser um neonato do gênero feminino.
Apesar de ser apontado que a presença de CL é fortemente associada com outras malformações ou síndromes genéticas(1,4,6-8), a paciente em questão não teve diagnósticos adicionais.
Os sintomas dessa doença, por serem muito inespecíficos, podem dificultar o diagnóstico(2,3,8). A sintomatologia apresentada no caso relatado condiz com os achados de literatura referentes à presença de CL tipo I, isto é, crises de cianose e alteração de deglutição(1,2,6-8). Durante as avaliações clínicas iniciais médica e fonoaudiológica, esses sintomas foram atribuídos à incoordenação da deglutição apresentada durante as mamadas(6-8). Entretanto, o neonato era de termo, hígido e não havia justificativa quanto à maturação do paciente para tal incoordenação, fazendo com que se levantasse a hipótese de alteração da fase faríngea da deglutição. Essas observações são corroboradas pelo fato de que os estudos referidos apontam como sintomas mais comuns presentes na disfagia orofaríngea quedas de saturação de O2 durante as mamadas, engasgos, tosse, alteração da ausculta cervical e crises de cianose, o que justifica a intervenção fonoaudiológica(5,9,13).
A presença de alterações na deglutição traz, para a criança, risco aumentado para doenças crônicas pulmonares, alterações quanto à nutrição, problemas de desenvolvimento neuromotor, além de interações estressantes com os cuidadores. Devem ser considerados, também, o atraso e a interferência em padrões típicos de desenvolvimento de alimentação/deglutição, podendo ocorrer o desenvolvimento de recusa alimentar(5,9,13).
O CL, no presente estudo, causou complicações pulmonares (quadro de pneumonia), assim como descrito na literatura(1,2,4). O diagnóstico precoce dos clefts faz com que os índices de morbidade e mortalidade sejam minimizados(3,6-8) e a intervenção fonoaudiológica, com vistas à adequação da deglutição no neonato(5,9,13), foi essencial para o direcionamento e o diagnóstico, uma vez que foram realizados exames de imagem após discussão do caso com a equipe médica.
Estudos(1-4,6-8) ressaltam que o meio pelo qual se diagnosticam e classificam os CLs é a utilização de exames de imagem, uma vez que a sintomatologia inespecífica presente nessas alterações mascara a doença de base. Sua importância reside, também, no direcionamento de conduta terapêutica segura que, no caso do neonato em questão, estava diretamente relacionada com a intervenção fonoaudiológica(1,2). A utilização do exame de imagem também foi de essencial importância para elucidar a família quanto às alterações de deglutição da paciente, facilitar sua compreensão em relação à proposta de modificação de dieta e, com isso, gerar maior adesão ao tratamento.
O tratamento eleito pela equipe fonoaudiológica foi o de espessar a dieta do neonato com o objetivo de serem evitados novos episódios de aspiração. A literatura(2,3,8) refere a oferta de alimento espessado como estratégia para prevenção da aspiração em clefts menores, como é o tipo I. Trata-se de estratégia que faz parte de tratamento tido como conservador e que não envolve intervenções cirúrgicas. Faz parte desse tipo de tratamento, também, a utilização de medicamentos antirrefluxo e de manobras de posicionamento durante a alimentação(1,7,14,15). A intervenção adotada mostrou-se eficaz, pois durante todo o gerenciamento fonoaudiológico e acompanhamento pediátrico de rotina, a paciente permaneceu assintomática e não apresentou quadros respiratórios.
A presença do fonoaudiólogo na equipe neonatal é reforçada pelo relato de caso apresentado, uma vez que sua participação ativa durante o processo de intervenção com a paciente permitiu o diagnóstico precoce por meio da avaliação clínica fonoaudiológica, da participação na indicação do exame objetivo padrão ouro para o diagnóstico preciso da deglutição (videofluoroscopia da deglutição) e da indicação de modificação da dieta, com o objetivo de prevenir aspirações e complicações pulmonares. Ressalta-se a atuação da equipe fonoaudiológica com relação à elucidação e adesão dos familiares ao processo de intervenção realizado. O fonoaudiólogo, ao compor a equipe clínica neonatal, cumpre importante papel tanto no que diz respeito ao fator tempo de internação, com o favorecimento de redução desse período, quanto na qualidade de vida dos bebês e familiares, por atuar com orientações e acompanhamento ambulatorial, quando necessário, com vista à prevenção de reinternações.