Compartilhar

Cohn A.Cartas ao Presidente Lula: Bolsa Família e direitos sociais. Rio de Janeiro: Pensamento Brasileiro; 2012.

Cohn A.Cartas ao Presidente Lula: Bolsa Família e direitos sociais. Rio de Janeiro: Pensamento Brasileiro; 2012.

Autores:

Sarah Escorel

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.2 Rio de Janeiro fev. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014192.12922013

O livro da professora Amélia Cohn surpreende por sua originalidade em usar as cartas escritas ao presidente Lula, para analisar como vivem os pobres e como vivenciam a presença ou ausência de proteção social. Pesquisadores que buscam conhecer e compreender qualitativamente a experiência de vida dos mais pobres costumam lançar mão das técnicas de entrevistas, depoimentos, histórias de vida. Estas, por mais livres ou semiestruturadas que sejam, sempre giram em torno de um interesse particular de quem pesquisa.

As 1375 cartas selecionadas intencionalmente foram escritas entre 2004 e 2006, durante os três primeiros anos do Programa Bolsa Família (PBF), e expressam de forma espontânea as experiências de vida, as frustrações, os desejos, as necessidades e as expectativas dos remetentes.

Cartas não costumam ser utilizadas na pesquisa em Saúde Coletiva. História (da vida privada, dos costumes) e Literatura são as disciplinas que mais utilizam a correspondência como objeto de análise ou subsídio de investigação. As cartas fornecem um depoimento voluntário e dependem de uma postura ativa de quem as escreve, enquanto que na entrevista o sujeito ativo é o/a entrevistador/a. Pela carta sabemos o que a pessoa quer nos contar e aquilo que intuimos ou conhecemos por outros meios do lugar enquanto na entrevista podemos olhar ao redor, ver o jeito da pessoa, da casa, do bairro. Nas cartas a grafia é determinada pela forma oral de expressão. Nos depoimentos transcritos, mesmo respeitando-se a forma de expressão do entrevistado, tendem a prevalecer as regras gramaticais - crases e vírgulas são incluídas para garantir o sentido do que foi dito segundo a nossa interpretação.

Daí o impacto que nos provoca quando lemos as cartas que dizem: Eis trata as pessouas muito mal como se fosse cachorro (p.45);... e a cirurgia tem que ser urgente vocês que estão aí não sabe o que os pobres passam e sofrem (p. 106); disse a quela mulher que o que eles estavam fazendo era uma crueldade porque eu sai de casa sem jantar, de meia noite apé (p. 129); ...não sabendo porque estamos a margem do desprezo do Fome Zero e Bolsa renda, quando nossas Condições se enquadram nos critérios exigido e apresentados pelo sistema (p. 168).

Essa é a segunda característica do livro de Amélia Cohn: tornar presentes as terríveis condições e experiências de vida de quem escreve as cartas; sem rodeios, sem floreios, tal como são - terríveis.

O livro está estruturado em seis capítulos: Carta ao Presidente Lula: último recurso; Trabalho, aposentadoria e Bolsa Família; Bolsa Família como complemento do SUS; A descentralização do PBF; As dimensões sociais da pobreza e o PBF; e A peleja do Novo e do Velho no qual a autora busca sintetizar as análises expostas ao longo do livro. Os capítulos servem apenas como recursos para sistematizar certos aspectos que se repetem nas cartas: não poder trabalhar, estar doente, não existir trabalho na cidade, ganhar pouco, ter percorrido inúmeras instâncias em busca de seus direitos, ser maltratado ou ignorado pelos funcionários públicos, mencionar outras pessoas que se encontram na mesma situação. Essa é a terceira característica do livro: a repetição. Entretanto, esse não é um problema da autora, de descuido na revisão ou do desejo de ênfase; é a experiência dos pobres e miseráveis que se repete, todos os dias, em todos os cantos do país, nas zonas rurais e urbanas, sem distinção.

Enviar uma carta ao presidente Lula é analisado como 'último recurso' depois de uma série interminável de tentativas de obter informações sobre o benefício (quando será possível cadastrar, a necessidade de novo cadastramento, critérios para a concessão, se a Bolsa foi concedida, quando e quanto será depositado, o motivo de corte do valor do benefício) no que é descrito como uma verdadeira 'gincana' de obstáculos intransponíveis, peregrinação pelos órgãos competentes dos pobres que se deparam com a insensibilidade da máquina estatal, o desrespeito e maus tratos dos funcionários públicos, a reprodução dos preconceitos sociais que os consideram responsáveis por sua própria pobreza, um diálogo de surdo-mudo com respostas padrões eivadas de termos técnicos e complexos, o descaso dispensado pelos órgãos públicos sobre as consequências das decisões na vida das pessoas, o 'jogo do empurra', atribuindo à outra esfera governamental a culpa da solução que não chega. Os cidadãos sentem-se impotentes, humilhados, frustrados e descrentes da possibilidade de conseguir o que consideram ser um direito seu. Então, escrevem cartas a Lula.

Amélia Cohn considera que Lula tem um lugar especial no imaginário popular por ter sido pobre, passado fome e assim compreender exatamente a terrível situação daquele que escreve com solicitações diversas: cadastramento, inclusão, explicação, informação, compreensão da unidade familiar não prevista e não apreendida pelo programa, reversão do corte de recursos, empréstimo para comprar terra ou estabelecer um pequeno negócio... Além disso, tem o poder do presidente da República: uma ordem sua será de imediato acatada por todos. Os remetentes acreditam que ele pode resolver e resolverá por que entende as situações e entende por que já passou por isso. Seria interessante pesquisar as cartas dirigidas ao presidente anterior ou à presidenta posterior para identificar qual parte desse conjunto 'poder-experiência de ser povo-sensibilidade/credibilidade' está presente nas cartas que, suponho, continuam sendo enviadas ao Palácio do Planalto.

As cartas reiteradamente referem-se ao PBF como um direito. No entanto, ao contrário de Benefício de Prestação Continuada (BPC), das aposentadorias e pensões, o BF não é um direito e não tem as características do direito - estabilidade, garantia dos valores, regras iguais para todos. Porém, segundo a autora, dada a sua apropriação pela sociedade, "sua penetração e seu enraizamento na sociedade, ele se configura como um quase direito" (grifos da autora) (p. 25). Curiosa categoria que estaria a exigir um estudo mais detido e circunstanciado teoricamente, ainda que não constituia o objeto deste livro.

É justamente por não ser um direito, não ter qualquer garantia de permanência (até mesmo tem caráter temporário, sendo a elegibilidade das famílias obrigatoriamente revista a cada dois anos) e significar um valor mínimo, o BF constitui um benefício que paradoxalmente garante a sobrevivência das famílias ("uma tábua de salvação") e, ao mesmo tempo, as impede de sair da "situação de miséria e degradação absoluta do seu cotidiano" (p. 170), planejar minimamente a própria vida, estabelecer qualquer plano de futuro. Sobrevivem, porém limitados ao "tempo do 'aqui e agora', que é próprio da vida daqueles que vivem em situação de miséria ou de extrema pobreza" (p. 127).

O BF é um programa transversal no qual a intersetorialidade deveria ser um elemento central, seja por induzir o acesso aos direitos universais de educação e saúde, seja por prever as 'portas de saída' do benefício por meio de atividades de geração de trabalho e renda. As cartas são um testemunho de que isso não acontece. O BF absorve as insuficiências e preenche as lacunas das demais políticas setoriais: substitui a previdência social, tanto a aposentadoria quanto o auxílio doença; é a 'bolsa permanência' na escola, a 'bolsa farmácia' e o 'seguro saúde'.

Em relação à saúde fica evidente o que Amélia Cohn chama de 'suprir as insuficiências do SUS', os recursos do BF sendo usados para comprar medicamentos não disponíveis no sistema público de saúde, tratar dos dentes, realizar procedimentos médicos no setor privado, em particular os cirúrgicos com longas filas de espera, exames complementares como tomografias, tratamentos como quimioterapia, pagar dívidas contraídas por motivos de saúde. "Em muitos casos o BF funciona mais como a presença de uma renda que significa a garantia de acesso à assistência médica do que à própria renda em si para cobrir necessidades básicas como alimentação e habitação" (p. 92).

Os remetentes são pessoas que conhecem a determinação social da saúde no próprio corpo: temos muitos dias que nem pão temos; a falta de moradia é terrível, de vestuário é triste, mas a falta de alimentos é crucial e dolorosa. A ausência de trabalho ou a alternativa do não trabalho, no geral, está associada à presença de doenças que o/a impedem de trabalhar.

Por fim, um aspecto assinalado no livro de particular interesse da autora da resenha: apenas uma das 1375 cartas pesquisadas menciona o conselho municipal, no caso, a inexistência de um conselho ao qual recorrer diante das graves distorções na implantação do programa. Escrita de forma que induz Amélia Cohn a considerar o/a remetente como integrante dos segmentos organizados da sociedade, traz a tona o fato dos Conselhos não constituírem instâncias de participação e representação de interesses para os demais remetentes das cartas, pessoas pobres e miseráveis, os setores mais desorganizados da sociedade. Se o conselho não existe ou não os representa, como fazer-se ouvir pela máquina governamental? Onde expressar suas demandas e exigir respostas para suas necessidades sociais? Escrevendo cartas ao presidente.

As cartas permitem identificar e analisar outros temas de interesse - a descentralização do PBF como evidência dos componentes históricos da prática política no Brasil, a nossa concepção particular de cidadania, o funcionamento do arranjo federativo estabelecido pela Constituição de 1988 no âmbito das políticas sociais, recomendando-se assim a leitura do livro. Sugere-se que o leitor se detenha, para além das análises teóricas, em imaginar como vive e sente cada pessoa que escreve, como se expressam as decisões políticas e administrativas nas condições de vida dessas pessoas, ou seja, que no exato momento em que está lendo o livro leve-se em conta o que pode estar acontecendo na vida de milhões de cidadãos.