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Comentário aos fundamentos da tutoria

Comentário aos fundamentos da tutoria

Autores:

Charles Dalcanale Tesser

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.2 Rio de Janeiro fev. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017222.26382016

A respeito do artigo de Lima et al.1, que apresenta resultados de pesquisa cujo objetivo foi identificar os fundamentos que conduzem a tutoria acadêmica do Projeto Mais Médicos (PMM) para o Brasil em Santa Catarina, ofereço algumas considerações, a partir da posição de ter sido protagonista da tutoria (primeiro tutor) do PMM nesse estado, por aproximadamente 18 meses. Esclareço que desliguei-me do PMM em início de 2015 devido a afastamento do país, e não participei da pesquisa aqui comentada.

O artigo menciona como resultados três fundamentos da tutoria: apagar incêndios, qualificação do Projeto e perspectiva processual. Quanto ao primeiro tópico, oferece pouco esclarecimento sobre que incêndios seriam estes. Registro que na chegada e instalação dos médicos do PMM, grande parte dos municípios não tinham se preparado para os receber e realizar suas contrapartidas (alimentação e alojamento, ou recursos financeiros equivalentes para fornecer), o que gerou muitos problemas, demandando ação da supervisão/tutoria. Como a chegada foi em remessas durante muitos meses, esse tipo de “incêndio” consumiu grande tempo da supervisão e tutoria.

Um segundo tipo de problema, relacionado com a qualificação do PMM, diz respeito as relações entre profissionais e gestores locais. A existência de um supervisor e tutor com expertise em atenção básica, independentes da municipalidade, a mediar a relação dos médicos participantes com os serviços e a supervisionar periodicamente sua atuação foi uma inovação do PMM. A impunidade, opacidade e arbitrariedade de alguns gestores na sua relação com os profissionais da atenção básica, sobretudo em cidades pequenas, ficaram um pouco menores e mais visíveis. A supervisão trouxe à tona alguns arranjos espúrios e posturas clientelistas que deformavam rotinas assistenciais. E também visibilizou problemas técnicos e ou éticos (condutuais) de alguns médicos. Todavia, o supervisor só podia orientar médicos e gestores, levar a situação ao tutor, que também tinha as mesmas restrições, e ambos levarem os problemas à Comissão de Coordenação Estadual (CCE). Em situações simples, por exemplo, ausências injustificadas de médicos às suas atividades assistenciais, o tutor e o supervisor não tinham poder para tomar decisões. O gestor informava o supervisor, este tentava alguma mediação e se não houvesse resultado solicitava formalização por escrito, que encaminhava ao tutor (que também só podia mediar e orientar) e à CCE. Esta última notificava os envolvidos, por escrito, para que a reclamação e a defesa escritas fossem apreciadas em reunião da CCE e uma decisão fosse tomada - por exemplo, uma advertência ao profissional. Havia uma demora significativa no processo (um ou dois meses, pelo menos), devido a rotina mensal de reuniões da CCE, gerando, por vezes, agravamento das situações problemáticas. Vale mencionar que os problemas dessa natureza ocorreram com poucos profissionais, a grande maioria brasileiros e estrangeiros não-cubanos.

A qualificação do PMM, que por hipótese envolve qualificação dos profissionais e processos assistenciais, dependia das iniciativas e potências pedagógicas dos supervisores, que tinham mais contato, embora pontual (já que apenas mensal) com os médicos e serviços.

Os ‘incêndios’ e desafios da qualificação tornavam evidente o problema da fragmentação do SUS decorrente da autonomia total dos municípios na gestão da atenção básica. Isso requer gestão regionalizada, com alguma relativa autonomia dos executivos municipais, ainda pouco discutida apesar de defendida por alguns santaristas2.

REFERÊNCIAS

1. Lima RCGS, Gripa DW, Prospero ENS, Ros MA. Tutoria acadêmica do Projeto Mais Médicos para o Brasil em Santa Catarina: perspectiva ético-política. Cien Saude Colet 2016; 21(9):2797-2805.
2. Santos L, Campos GWS. SUS Brasil: a região de saúde como caminho. Saude Soc 2015; 24(2):438-446.