versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.36 no.2 Rio de Janeiro 2020 Epub 31-Jan-2020
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00005020
Os transtornos mentais representam hoje um dos principais desafios na agenda de saúde, tanto de países desenvolvidos como de países em desenvolvimento, constituindo um ônus importante para os serviços públicos. Estima-se que 30% dos adultos em todo o mundo atendam aos critérios de diagnóstico para qualquer transtorno mental, e cerca de 80% daqueles que sofrem com transtornos mentais vivem em países de baixa e média renda 1. Um estudo sobre a carga global de doenças mostrou que, mundialmente, os transtornos mentais respondem por 32,4% dos anos de vida vividos com incapacidade 2 e, no Brasil, estimativas recentes mostraram que os transtornos depressivos e ansiosos respondem, respectivamente, pela quinta e sexta causas de anos de vida vividos com incapacidade 3. Estudos conduzidos nas últimas décadas têm evidenciado que também entre crianças e adolescentes houve uma mudança nos padrões de adoecimento físico e psíquico, com um aumento considerável na prevalência de problemas emocionais e de conduta. Um trabalho recente de base nacional e escolar mostrou que, no Brasil, 30% dos adolescentes apresentavam transtornos mentais comuns, caracterizados por sintomas de ansiedade, depressão e queixas somáticas inespecíficas 4, e um estudo de base populacional conduzido em São Paulo (São Paulo Megacity Mental Health Study) 5 mostrou que a idade média de início de transtornos psiquiátricos é mais precoce para os transtornos de ansiedade (13 anos de idade) e transtornos do controle de impulsos (14 anos), quando comparados aos transtornos de abuso de substâncias (24 anos) e transtornos do humor (36 anos). Tais transtornos representam uma carga de doença importante e que resultam em prejuízo na vida escolar e nas relações familiares e sociais dessas crianças e adolescentes. Além disso, problemas de saúde mental são altamente persistentes, fazendo com que uma parcela importante desses adolescentes tenha algum prejuízo, em decorrência de tais transtornos, na vida adulta 5.
O Brasil apresenta características demográficas e econômicas que têm sido apontadas de forma consistente como o pano de fundo para o aumento da incidência e persistência de transtornos mentais na população geral 3. As profundas mudanças ocorridas nas últimas décadas, com a rápida urbanização da população e consequente aumento de contingentes populacionais vivendo na periferia das grandes cidades ou em comunidades desassistidas pelo poder público e vulneráveis à violência urbana, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, sem a contraparte de um maior apoio em auxílios maternidade, creches etc., acarretando mudanças na arquitetura familiar e social, bem como as sucessivas crises econômicas e a precarização do trabalho, entre outros, têm sido identificados como fatores que mudaram profundamente o estilo de vida do brasileiro e aprofundaram a desigualdade e adversidade social, levando o país a patamares elevados de adoecimento mental 6. Sabe-se que a adolescência, e sua transição para a idade adulta, constituem uma das fases de maior mudança na vida das pessoas. Além das mudanças hormonais e sociais, que variam nas diferentes culturas, a exposição a ambientes escolares e urbanos muitas vezes hostis e degradados e o aumento da violência comunitária, nas escolas e mesmo no ambiente familiar, dentre outros, podem gerar situações e/ou pressões muitas vezes difíceis de serem suportadas pelos jovens 7. Entender o papel que a exposição a tais fatores representa no desenvolvimento de transtornos mentais em crianças e adolescentes pode nos ajudar a entender o quanto desses agravos são levados para a idade adulta, uma vez que os prejuízos nessa faixa etária poderão moldar incapacidades na trajetória de vida.
A literatura sobre os principais fatores de risco envolvidos na incidência de transtornos mentais em adultos já é hoje bastante consistente em relação ao papel dos determinantes sociais, indicando que as mulheres e os indivíduos que acumulam situações sociais, familiares e ambientais adversas são os que estão sob maior risco 8. Uma revisão sistemática de estudos conduzidos em países de baixa e média renda reportou que mais de 70% dos 115 artigos revistos mostravam uma associação entre diferentes níveis de pobreza e transtornos mentais comuns 9. Entretanto, existem ainda lacunas importantes sobre os principais fatores de risco para a incidência de transtornos mentais entre crianças e adolescentes, bem como sobre os fatores envolvidos na persistência de tais transtornos na idade adulta.
No Brasil, nos últimos anos, tem havido um número crescente de trabalhos que investigaram a prevalência de transtornos mentais na população adulta, incluindo estudos de base populacional, nos quais destacam-se a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), conduzida em 2013, que avaliou a prevalência de depressão 10, e o São Paulo Megacity Mental Health Survey5. Tais estudos forneceram evidências importantes e inéditas sobre a situação de saúde mental na população geral. Espera-se, portanto, que haja periodicidade dessas pesquisas, que permitirão a avaliação de tendências de tais transtornos. No que diz respeito aos estudos de coorte em populações adultas, os principais trabalhos sobre o tema têm sido desenvolvidos em populações específicas como, por exemplo, funcionários públicos (Estudo Pró-Saúde e Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto - ELSA-Brasil), entre outros 11,12. Tais estudos, apesar de fornecerem evidências importantes sobre os principais fatores de risco para a incidência de transtornos mentais, são limitados no seu escopo, já que tais populações apresentam perfis e condições de vida e saúde que não representam a população geral.
Com relação aos estudos envolvendo crianças e adolescentes, o Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA) foi primeiro de base escolar e nacional que investigou a prevalência de transtornos mentais comuns em adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos 4. Os dados provenientes das diferentes edições da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) também têm fornecido evidências importantes sobre o consumo de álcool e drogas, além de ter incluído questões sobre sentimentos de solidão, sono e amigos próximos, como proxies da saúde mental de crianças e adolescentes 13. Entretanto, os estudos de coorte nessa faixa etária são ainda limitados e, em sua maioria, conduzidos em populações específicas e de escolares 14,15. Assim, chamam a atenção as coortes de nascimento que vêm investigando, entre outros agravos, a incidência de transtornos mentais. Tais estudos apresentam as condições ideais para a investigação da trajetória de tais transtornos no curso de vida e os principais fatores de risco envolvidos. As coortes conduzidas em cidades como Pelotas (1982, 1993 e 2004) 7,16,17, Ribeirão Preto (1978/1979 e 1994) e São Luís (1997/1998) 18,19 têm fornecido um conjunto de evidências sobre o papel de diversos fatores socioeconômicos, incluindo adversidade social, desigualdades socioambientais, posição socioeconômica ao nascimento, mobilidade social, estilo de vida etc., e a saúde mental, incluindo o abuso de substâncias por jovens e adultos.
O artigo de Orellana et al. 20, publicado neste fascículo de CSP, analisou dados coletados ao nascimento e em diferentes estágios do ciclo vital de um consórcio de cinco coortes de adolescentes, jovens e adultos de Pelotas, Ribeirão Preto e São Luís (RPS), para avaliar a prevalência de transtornos mentais de acordo com sexo, renda familiar e escolaridade materna. Tal iniciativa é inédita no Brasil, tanto por agregar dados de diferentes idades e regiões do país com características socioeconômicas diversas, como por incluir dados de uma gama de transtornos mentais avaliados por meio de instrumentos padronizados e validados para a nossa realidade. Os resultados encontrados evidenciam a elevada frequência de depressão maior, risco de suicídio, fobia social e ansiedade generalizada nessas populações, e representam um marco importante no conhecimento de tais transtornos no cenário nacional e da sua importância como problema de saúde pública. Os resultados também chamam a atenção para a consistência com achados de estudos conduzidos em outros países de média e baixa renda, bem como os da revisão sistemática conduzida pela Organização Mundial da Saúde, e, no Brasil, pelos resultados do ERICA e da PNS, que vêm mostrando que os transtornos mentais são mais prevalentes nas mulheres e naqueles com menor nível socioeconômico, independentemente da idade e do local de residência. Tais achados reforçam a urgência de maiores investimentos em saúde mental no Brasil, de uma forma geral, mas, principalmente, uma maior atenção para os primeiros anos de vida e da adolescência, cujo aparecimento de tais transtornos podem, além de acarretar prejuízos na vida social e escolar, levar a um ciclo crônico de adversidades ao longo da vida.