versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.84 no.4 São Paulo jul./ago. 2018
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.04.004
A infecção da orelha externa é uma inflamação comum do meato acústico externo e aurícula que ocorre devido a vários fatores locais ou como uma manifestação de uma doença sistêmica. Cerca de 10% das pessoas apresentam infecção da orelha externa em suas vidas, 90% das quais é unilateral.1,2 A infecção fúngica do meato acústico externo (otomicose) é uma doença comum, representa de 9%3,4 a 27,2%5 dos pacientes com sinais e sintomas de otite média externa encaminhados aos centros de otorrinolaringologia. A infecção fúngica é também a causa de mais de 30% dos pacientes com secreção na orelha e é a causa comum de resistência ao tratamento da otite externa.6 A otomicose pode ocorrer por vários fatores predisponentes, inclusive corpos estranhos no canal auditivo, inserção traumática de partículas de madeira, materiais vegetais e sujeira, arranhões e manipulação do meato externo com equipamento não esterilizado, moradia em áreas com poeira ou atmosfera úmida, umidade do canal auditivo após natação e banho, infecção fúngica ungueal e lesões dermatofíticas ao redor da orelha.7,8
A otomicose está associada a muitas complicações, como envolvimento da orelha interna e mortalidade em casos raros. A formação de bola fúngica ou massa fúngica de micélios, células epiteliais e cerume no canal auditivo pode ser causa de perda auditiva. A pele do pescoço e a cartilagem da orelha também são afetadas em casos de infecções agudas. Em casos crônicos, pode ocorrer o aparecimento de um falso véu de levedura em cores diferentes (depende do tipo de fungo) no meato externo. A micose pode ter um mau prognóstico em indivíduos imunocomprometidos, especialmente nos casos de imunodeficiência celular e neutropenia. A doença apresenta muitos desafios, tanto para os pacientes como para os especialistas em otorrinolaringologia, e pode apresentar recorrência apesar do tratamento e acompanhamento em longo prazo.9-11
A base principal do tratamento da otomicose é a remoção de detritos visíveis e elementos fúngicos. Os medicamentos tópicos recomendados para o controle dessa condição incluem esteroides, antissépticos, soluções ácidas, agentes antifúngicos e secativos. Os medicamentos antifúngicos para otomicose nem sempre curam a doença.12,13 O uso de ácido bórico em uma solução alcoólica no tratamento dessa doença está associado a uma taxa de recorrência de 23%. Além disso, o uso de soluções antifúngicas, como clotrimazol ou nistatina, pode ser eficaz no tratamento de infecções por Candida, mas as infecções por Aspergillus dificilmente respondem a esses medicamentos.14,15 Talvez pelo fato de uma ampla gama de fungos já ter sido relatada como causadora de otomicose, a espécie mais comum é o Aspergillus. Portanto, é necessário um esquema de tratamento adequado. Além disso, o uso intenso e desnecessário de medicamentos antibacterianos no tratamento de otite média e externa pode causar um supercrescimento fúngico nessa região. Desse modo, um dos efeitos adversos do uso abusivo de antibióticos de amplo espectro possa ser o supercrescimento secundário de fungos e o aumento da prevalência de otomicose.16,17
Dada a importância do tratamento da otomicose como um dos desafios enfrentados pelos especialistas em otorrinolaringologia, este estudo teve como objetivo comparar a taxa de resolução de otomicose com betadina e clotrimazol tópicos.
Este ensaio clínico simples cego foi feito em 204 pacientes com diagnóstico definitivo de otomicose. Após a aprovação do Comitê de Ética da Universidade do Registro Iraniano de Ensaios Clínicos pelo número (IRCT2014123020484N1), os participantes foram selecionados dentre os que foram encaminhados para a clínica otorrinolaringológica dos Hospitais Imam Reza e Vali-Asr da Birjand University of Medical Sciences durante os primeiros seis meses de 2014. Pacientes com sinais clínicos, inclusive dor, prurido, massa no meato acústico externo, sensação de orelha tampada associada a perda auditiva e secreção, foram considerados suspeitos de otomicose. Os objetivos da pesquisa foram explicados aos participantes e eles foram recrutados, caso estivessem dispostos a participar do estudo e não tivessem algum dos critérios de exclusão, como: otite média com restrição do meato externo, secreção crônica de orelha, história de cirurgia otológica prévia, história de tratamento com agentes antifúngicos e corticosteroides e anomalias da orelha externa.
Após o registro das características demográficas como idade e sexo e a obtenção de consentimento informado, 204 pacientes com otomicose foram incluídos no estudo e recrutados em um dos dois grupos de tratamento (102 em cada), por randomização bloqueada. Todos os 204 pacientes inscritos assinaram o termo de consentimento informado.
As amostras foram coletadas do material presente no meato acústico por meio de um espéculo especial. Além disso, na presença de pus e muco, esses também foram separados em um recipiente estéril e enviados para laboratórios especializados de micologia da Birjand University of Medical Sciences (BUMS).
Em laboratório, as amostras foram avaliadas pelo especialista em microbiologia com o método KOH e a presença de elementos fúngicos foi considerada como diagnóstico definitivo de otomicose.
Uma porção da amostra foi espalhada sobre uma lâmina de vidro limpa para exame direto e outra amostra inoculada no agar de dextrose Sabouraud (Merck, Alemanha) suplementado com meio de cloranfenicol (Fina Daru, Irã) para crescimento fúngico. As placas foram incubadas à temperatura ambiente durante duas semanas. Os fungos foram identificados por procedimentos padrão.18 Além disso, usaram-se também tubos germinativos de soros humanos e produção de vesículas em ágar de farinha de milho (Merck, Alemanha) suplementado com Tween 80 (Sigma-Aldrich, Alemanha), para a identificação das leveduras.
No estudo, um grupo de pacientes foi tratado com povidona-iodo de modo que em cada visita a orelha do paciente foi lavada pelo médico com 10 mL de solução de betadina a 10% com uma seringa. O outro grupo recebeu oito gotas de clotrimazol antifúngico, a cada oito horas. Os pacientes foram examinados em quatro, 10 e 20 dias após o tratamento por um especialista otorrinolaringologista que não sabia sobre o tipo de tratamento. No estudo, os pacientes foram categorizados em três grupos com base na resposta clínica: boa resposta (meato externo e membrana timpânica secos e ausência de secreção), resposta parcial (pouca secreção, não seca) e ausência de resposta (hipersecreção na região externa do canal auditivo). Em resposta completa, o tratamento foi descontinuado e continuou de outro modo. Finalmente, os que não responderam foram considerados resistentes ao tratamento no 20° dia e o esquema de tratamento continuou com tolnaftato e violeta de genciana.
No presente estudo, para analisar os dados descritivos, as tabelas e os gráficos de frequência de distribuição e para a parte inferencial, os testes t independente, qui-quadrado e exato de Fisher foram usados no software SPSS v.18. O nível significativo foi considerado em p < 0,05.
Neste estudo, de 204 pacientes com otomicose foram investigados em dois grupos de tratamento de betadina ou clotrimazol (102 em cada). Dos pacientes com otomicose, 86 (42,15%) eram do sexo masculino e 118 (57,85%) do feminino. A média de idade dos pacientes nos dois grupos tratados com betadina ou clotrimazol foi de 38,61 ± 15,45 e 40,37 ± 16,15 anos, respectivamente. Neste estudo, Aspergillus spp. foi responsável por 75,4% e Candida albicans por 24,5% de otomicose no grupo de pacientes tratados com betadina. Entretanto, a prevalência de Aspergillus spp. e Candida albicans foi relatada para 72,5 e 27,5% dos pacientes com otomicose tratados com clotrimazol.
Em geral, o estudo não mostrou diferença significativa em relação à idade (p = 0,43), ao sexo (p = 0,4) e ao agente causal de otomicose (p = 0,63) entre dois grupos, de betadina e clotrimazol (tabela 1).
Tabela 1 Comparação das características demográficas e distribuição de fungos em pacientes com otomicose com base no tipo de tratamento
Características demográficas | Grupo da betadina tópica (%) | Grupo do clotrimazol tópico (%) | Valor p |
---|---|---|---|
Idade (anos)a | 38,61 ± 15,45 | 40,37 ± 16,15 | 0,43 |
Sexo | 0,40 | ||
Masculino | 40 (39,2) | 46 (45,1) | |
Feminino | 62 (60,8) | 56 (54,9) | |
Agente fúngico | 0,63 | ||
Aspergillus spp. | 77 (75,4) | 74 (72,5) | |
Candida albicans | 25 (24,5) | 28 (27,5) |
aValores na tabela são média ± DP.
No estudo, a taxa de resolução da otomicose foi avaliada nos dois grupos de tratamento, de betadina e clotrimazol. Os resultados demonstraram que no quarto dia após o tratamento, 13 pacientes (13,1%) no grupo tratado com betadina e 10 (9,8%) no grupo tratado com clotrimazol apresentaram boa resposta ao tratamento (p = 0,75). Entretanto, uma boa resposta ao tratamento foi relatada para 44 (43,1%) e 47 pacientes (46,1%) no décimo dia após o tratamento (p = 0,85); e 70 (68,6%) e 68 pacientes (67,6%) no vigésimo dia após o tratamento (p = 0,46) no grupo tratado com betadina e clotrimazol, respectivamente. Vale ressaltar que em nenhum dos pacientes tratados com betadina foram observados quaisquer efeitos colaterais.
Em nosso estudo, não houve diferença estatisticamente significativa em termos de resposta ao tratamento no quarto, décimo e 20° dia após o tratamento entre os dois grupos de tratamento, de betadina ou clotrimazol (p < 0,05) (tabela 2).
Tabela 2 Comparação de resposta ao tratamento no quarto, decimo e 20º dia após o tratamento em pacientes com base no tipo de tratamento
Curso do tratamento | Tipo de tratamento | Resposta ao tratamento | Valor p | ||
---|---|---|---|---|---|
Sem resposta (%) | Resposta parcial (%) | Boa resposta (%) | |||
4 dias | Betadinaa | 31 (31,3) | 55 (55,6) | 13 (13,1) | 0,75 |
Clotrimazol | 32 (31,4) | 60 (58,8) | 10 (9,8) | ||
10 dias | Betadina | 8 (7,8) | 50 (49) | 44 (43,1) | 0,85 |
Clotrimazol | 9 (8,8) | 46 (45,1) | 47 (46,1) | ||
20 dias | Betadina | 13 (12,7) | 19 (18,6) | 70 (68,6) | 0,46 |
Clotrimazol | 9 (8,8) | 25 (24,5) | 68 (66,7) |
aTrês pacientes não compareceram no quarto dia após o tratamento.
A otomicose é uma doença comum e pode estar associada a várias complicações, como o envolvimento da orelha interna e mortalidade em casos raros. A doença apresenta muitos desafios, tanto para os pacientes como para os especialistas em otorrinolaringologia, e pode apresentar recorrência a despeito do tratamento e acompanhamento em longo prazo.9,11
Os resultados deste estudo mostraram que entre 204 pacientes com otomicose, Aspergillus spp. foi responsável por 74% (151 casos) e Candida albicans por 26% (53 pacientes) das infecções. Segundo Pradhan et al., em 2003 as espécies de Aspergillus e Candida albicans foram relatadas como as mais comuns em fungos isolados de pacientes com otomicose.19 O estudo feito por Satish et al. mostrou que a espécie Aspergillus (77%) era o fungo mais comumente isolado no grupo imunocompetente, enquanto Candida (53,4%) era mais comumente isolada em pacientes imunocomprometidos.20 Em outro estudo com 95 pacientes suspeitos de infecção fúngica, 72 casos de culturas fúngicas foram positivos e Aspergillus foi identificado como o fungo mais comum cultivado em cultura (41,1%) seguido de Candida albicans, com prevalência de 8,2%.21 Os resultados do nosso estudo foram compatíveis com os resultados anteriormente mencionados. As espécies de Aspergillus são uma das causas mais comuns de infecções fúngicas invasivas oportunistas, especialmente a otomicose. Isso pode ser devido à sua alta prevalência na poeira e da natureza ácida do canal auditivo, já que as espécies de Aspergillus crescem em pH 5 a 7.22
Após a conclusão do tratamento no presente estudo, os resultados mostraram que no quarto dia após o tratamento 55,6% e 58,8% dos pacientes tratados com betadina e clotrimazol apresentaram resposta parcial ao tratamento, respectivamente. Além disso, no décimo dia após o tratamento, 49% dos pacientes tratados com povidona-iodo tiveram resposta parcial ao tratamento e 46,1% dos pacientes tiveram uma boa resposta ao tratamento com clotrimazol. Finalmente, no 20° dia após o tratamento, 68,6% dos pacientes tratados com betadina e 66,7% dos pacientes tratados com clotrimazol apresentaram uma boa resposta ao tratamento. Em geral, no nosso estudo não houve diferença estatisticamente significativa em termos de resposta ao tratamento no quarto, décimo e 20° dia após o tratamento entre dois grupos de tratamento de betadina e clotrimazol. Com relação aos efeitos dos antifúngicos sobre a otomicose, vários estudos foram conduzidos até o momento. Em um estudo clínico randomizado isolado, o efeito de betadina a 7,5% em comparação com clotrimazol a 1% e lignocaína foi avaliado em otomicose. Após o período de tratamento, no grupo de pacientes de betadina, as manifestações de prurido, secreção, plenitude auricular, zumbido e surdez melhoraram em 83,3%, 97,1%, 83,3%, 91,7% e 91,7% dos casos e a dor na orelha melhorou em 100% dos casos. Em pacientes tratados com gotas de clotrimazol e lignocaína, os sintomas de prurido, secreção de orelha e plenitude foram curados em 93,3%, otalgia em 86,7% e zumbido em 100% dos casos.23 Em outro estudo, o efeito terapêutico da pomada de miconazol e das gotas de clotrimazol foi comparado em pacientes com otomicose. Todos os pacientes foram examinados quanto à resposta ao tratamento uma e duas semanas após. Os resultados da análise final mostraram que não houve diferença em termos de resposta ao tratamento entre dois grupos de tratamento.24 Stern et al. demonstraram que o clotrimazol foi eficaz contra a maioria das leveduras e dos fungos, mas o tolnafato não teve impacto na otomicose.25 Em outro estudo, o clotrimazol e o econazol foram introduzidos como fármacos de escolha no tratamento da otomicose.26
De acordo com as questões mencionadas anteriormente, pode-se afirmar que o tratamento da otomicose é hoje um dos desafios enfrentados pelos especialistas em otorrinolaringologia, uma vez que grande número de infecções fúngicas de orelha externa é resistente aos fármacos antifúngicos disponíveis. O tratamento da otomicose necessita de detecção precoce sobre a possibilidade de resistência aos medicamentos em infecções crônicas e tratamento oportuno dos pacientes. Deve-se notar que a base do tratamento da otomicose é manter a orelha seca e a higiene da orelha e o protocolo de tratamento adequado devem ser considerados de acordo com os diferentes tipos de fungos causadores da doença e sensibilidade a diferentes fármacos antifúngicos.16,27 Em nosso estudo, clotrimazol e povidona-iodo foram usados como dois esquemas de medicamentos para tratamento de otomicose. O clotrimazol é um medicamento que contém grupos azol que é usado para tratar infecções. A betadina é também um remédio para infecções que é facilmente acessível e seu efeito foi estabelecido em otite média crônica supurativa, que é um dos fatores predisponentes de otomicose. Esse fármaco é uma substância estável e barata e a resistência bacteriana e fúngica a ele ainda não foi relatada. Portanto, a betadina é a uma boa opção para o tratamento da otomicose nos países em desenvolvimento, devido ao seu baixo custo, eficácia e ausência de ototoxicidade (efeito tóxico sobre a orelha).28,29
De acordo com os resultados, a eficácia dos esquemas de betadina e clotrimazol foi a mesma no tratamento da otomicose. Nossos achados reforçam o uso de betadina para tratamento de otomicose devido à relação custo-efetividade e efeito terapêutico apropriado em espécies de Aspergillus e Candida albicans, as causas mais comuns de otomicose, além de colaborar no controle do surgimento de organismos resistentes.