versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.1 no.1 São Paulo jan./mar. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180011
A nocicepção pode ser definida como o mecanismo responsável por proteger o organismo de lesões, enquanto que a dor aguda ocorre na falha deste em evitar a lesão, com a transformação da atividade nociceptiva em dor consciente. Adaptações no limiar nociceptivo são críticas para o desenvolvimento de dor crônica, que são produzidas por reorganização da matriz cerebral1,2.
A corrente interferencial é uma forma de eletroestimulação que visa primariamente a redução de quadros álgicos. É gerada a partir de duas correntes alternadas de média frequência, que por interferência, geram uma resultante com a média da frequência entre as duas iniciais3. Entretanto, a interferencial pode ser aplicada em outras condições clínicas, tais como reeducação muscular, fortalecimento e redução de edema4. Uma das principais características da corrente interferencial é gerar frequência modulada pela amplitude (AMF), estimulando a despolarização das fibras aferentes como uma corrente de baixa frequência5.
Outra modalidade que também visa controlar quadros álgicos é o ultrassom terapêutico, que comumente trabalha com frequências de 1MHz e 3MHz, agindo, respectivamente de forma profunda ou superficial. É um recurso muito utilizado na prática clínica com objetivo, também, de acelerar processos metabólicos e inflamatórios nas células e tecidos6,7.
Essas duas modalidades podem ser unidas em uma mesma terapia, visando amplificar os resultados terapêuticos, denominada terapia combinada8. Desse modo, é necessário um eletrodo fixo e outro móvel (o cabeçote do ultrassom), e o uso simultâneo deste com corrente de baixa e média frequência. Nessa modalidade há uma potencialização dos efeitos da terapia, havendo relatos de que as correntes não precisam ser altas. Por outro lado, com o passar do tempo, o paciente evidencia a sensação de que a corrente aumenta9, ao contrário do que geralmente é observado para as correntes utilizadas visando eletroanalgesia, que apresentam como característica a acomodação, quando há aplicação repetitiva de um mesmo estímulo, diminuindo assim a resposta fisiológica10. Essa forma de terapia, entretanto, ainda é pouco explorada pela literatura científica. Em se tratando de intensidade para a eletroestimulação, tem-se geralmente como base a capacidade de percepção do indivíduo, ou seja, trata-se de uma sensação abstrata11.
Devido à escassez de estudos relacionados à terapia combinada, o presente estudo teve como objetivo comparar a terapia combinada (terapias juntas) e a corrente Interferencial associada ao Ultrassom (terapias isoladas aplicadas simultaneamente) em indivíduos saudáveis, analisando o limiar de dor ao frio e à pressão, número de acomodações e intensidade da corrente.
Trata-se de um estudo cruzado, aleatório e de caráter quantitativo. A amostra foi composta por 30 voluntários, estudantes da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), saudáveis, sem qualquer tipo de dor na região avaliada. Participaram do estudo 22 voluntárias do sexo feminino e 8 voluntários do sexo masculino, com idade entre 18 e 33 anos (média de 21,37±3,16 anos), com peso de 62,82±10,05kg, altura de 1,68±0,08m, e índice de massa corporal (IMC) 22,27±3,05. Todos assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) prévio ao início da pesquisa.
Os indivíduos realizaram as mesmas atividades de forma aleatória em três semanas consecutivas, ou seja, cada indivíduo foi sorteado para realizar uma corrente em cada semana. As três correntes utilizadas foram a terapia combinada (TC – ultrassom + corrente interferencial), terapia associada (TA – ultrassom e corrente interferencial) e o tratamento placebo (TP), no qual os voluntários não receberam nenhum tipo de eletroestimulação.
Foram excluídos indivíduos que possuíssem alguma contraindicação à eletroestimulação ou ultrassom terapêutico, como marca-passo cardíaco, síntese metálica, alterações de sensibilidade, processos hemorrágicos, além de contraindicação ao frio (hipersensibilidade e urticária ao frio).
Com base nos dados de avaliação inicial do limiar de pressão, com desvio padrão de 328, diferença a ser detectada de 210, nível de significância de 5%, com o tamanho de amostra utilizado, o poder do teste foi de 80%.
A nocicepção foi avaliada por meio de estímulos pressóricos e térmicos na coluna lombar e respectivos dermátomos. Para avaliar o limiar de dor à pressão utilizou-se um dolorímetro de pressão (Kratos®), com ponteira afilada, aplicado sobre a região paravertebral (3cm lateral ao processo espinhoso) da 5ª vértebra lombar (L5). Também foi avaliado o limiar à pressão na região correspondente ao dermátomo de L4 e L5 no membro inferior. Após as mensurações, foi anotada a força (gf) necessária para ocorrer o estímulo doloroso.
Em seguida o voluntário submergiu o pé dominante em um balde com água controlada em 5ºC, até a região intermaleolar. Solicitou-se, então, que indicasse o momento no qual sentia dor e esse tempo foi cronometrado. Esse foi considerado o limiar de dor ao frio, porém, o mesmo continuou com o membro imerso em água fria, até completar 60 segundos, e após esse período, questionou-se ao indivíduo para indicar pela escala analógica visual (EAV), a intensidade da dor sentida durante os 30s. As avaliações ocorreram antes da eletroestimulação (AV1), logo após a terapia (AV2), e 30 minutos após (AV3).
Logo após a avaliação nociceptiva inicial (AV1), o indivíduo seguiu para a aplicação de terapia, na qual permaneceu por 15 minutos. No início do protocolo, a intensidade da corrente foi elevada até a sensação de parestesia intensa, porém, sem atingir o limiar nociceptivo. Durante a estimulação elétrica, o tempo foi cronometrado até que o voluntário (previamente orientado) indicou a diminuição da sensação de parestesia da corrente (limiar de acomodação), a intensidade então era ajustada, visando retornar à sensação de parestesia inicial. Anotou-se o número de acomodações em todos os momentos em que o voluntário relatou tal necessidade, e a intensidade da corrente foi marcada no início e no final da terapia.
Para aplicação da TC utilizou-se o cabeçote do ultrassom (1MHz) na forma contínua, com dose de 0,4W/cm2, o mesmo fez o papel de um eletrodo, com movimentos lentos e rítmicos sobre a região de L3-L5, enquanto apenas um eletrodo da corrente interferencial na forma bipolar, 4kHz, 100Hz AMF, foi colocado sobre a região de S1.
Quando utilizada a TA, um eletrodo ficou sobre a região de L3 e o outro eletrodo disposto sobre S1, a intensidade foi forte, porém, não dolorosa. Ainda, na TA foi disposto entre L3 e S1 o cabeçote do ultrassom. Ambas as terapias foram utilizadas simultaneamente, com os mesmos parâmetros da terapia combinada.
No TP não houve nenhum tipo de eletroestimulação, apenas foi colocado o cabeçote de ultrassom com gel, realizando movimentos circulares sobre a região lombar durante os 15 minutos, simulando a terapia.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIOESTE, sob parecer nº 1.696.921.
Os dados são apresentados em média e desvio padrão, ou mediana e quartis. Visando avaliar a normalidade dos dados foi utilizado o teste de Shapiro-Wilk, e para a comparação dos resultados obtidos na avaliação com o dolorímetro de pressão e intensidade da corrente foi utilizado ANOVA unidirecional com pós-teste de Bonferroni. Para as avaliações realizadas com a baixa temperatura foi utilizado o teste de Friedman, e para as acomodações foi utilizado o teste de Wilcoxon, em todos os casos o nível de significância aceito foi 5%.
Na comparação entre AV1, AV2 e AV3, do limiar doloroso à pressão, não houve diferença significativa quando comparado às regiões de L5 (Lombar) e dos dermátomos L4 e L5 (F=0,5015; p=0,8553, F=0,549; p=0,8198 e F=0,9719; p=0,5409, respectivamente) (Tabela 1).
Tabela 1 Limiar doloroso à pressão da região L5 (lombar) e dos dermátomos L4 e L5, nas avaliações das correntes combinada e associada e placebo
Região | Terapias | Avaliações | Limiar a pressão (gf) |
---|---|---|---|
L5 (lombar) | TC | AV1 AV2 AV3 |
560±218,15 658,66±319,07 659,66±275,26 |
TA | AV1 AV2 AV3 |
696,66±420,19 642,33±347,68 678,33±278,03 |
|
TP | AV1 AV2 AV3 |
669,33±345,21 688,66±297,26 648±244,26 |
|
L4 (dermátomo) | TC | AV1 AV2 AV3 |
509,8±226,83 615,33±196,76 634,46±304,34 |
TA | AV1 AV2 AV3 |
565,2±331,39 604,66±407,47 543±189,53 |
|
TP | AV1 AV2 AV3 |
596,76±285,49 597,2±275,06 594,86±287,62 |
|
L5 (dermátomo) | TC | AV1 AV2 AV3 |
803±496,72 880,13±478,70 940,06±490,93 |
TA | AV1 AV2 AV3 |
1029,86±666,04 1039,66±825,18 1057,7±886,26 |
|
TP | AV1 AV2 AV3 |
866,56±333,77 869,56±444,61 997±503,73 |
AV1 = primeira avaliação, AV2 = segunda avaliação, AV3 = terceira avaliação. TC = terapia combinada, TA = terapia associada, TP = terapia placebo.
Também, para o limiar doloroso ao frio e EAV, não houve diferença significativa em todos os grupos (Tabela 2).
Tabela 2 Limiar doloroso ao frio e escala analógica visual da região L5 (lombar) e dos dermátomos L4 e L5 nas avaliações das correntes combinada e associada e placebo
Terapias | Avaliações | Limiar ao frio (segundos) | Escala analógica visual | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Md | Q1 | Q3 | Md | Q1 | Q3 | ||
TC | AV1 AV2 AV3 |
14,5 10,5 14 |
8,25 7 7,25 |
41,25 59,75 53 |
6,5 7 6,75 |
4,57 5,2 5 |
7,97 7,72 8,37 |
TA | AV1 AV2 AV3 |
14 12 18 |
7,25 8 9 |
32,25 27 43,75 |
6 6,25 6 |
4,5 5 4,5 |
7 7,5 7,37 |
TP | AV1 AV2 AV3 |
21 19,5 20,5 |
10,25 10,25 9,25 |
38,75 58,75 44,75 |
6,65 7,25 6,5 |
4,5 5 4,12 |
7,5 8 7,95 |
AV1 = primeira avaliação; AV2 = segunda avaliação; AV3 = terceira avaliação; Md = mediana; Q1 = primeiro quartil; Q3 = terceiro quartil; TC = terapia combinada; TA = terapia associada; TP = terapia placebo.
Houve diferença significativa no número de acomodações entre as correntes combinada e associada (p=0,0054) (TC Md=1,5; Q1=1; Q3=3 e TA Md=3; Q1=2; Q3=4, respectivamente). Na avaliação da intensidade das correntes combinada e associada, inicial (TC 62,96±24,34; TA 35,3±20,42) e final (TC 74,36±23,77; TA 72,43±27,40), houve diferença significativa (p<0,0001), com diferenças entre a TC com a TA iniciais, e para a TA inicial e final.
Visto que a TC, apesar de um recurso utilizado na prática clínica, ser pouco explorada em pesquisas científicas, buscou-se no presente estudo avaliar os efeitos sobre a dor induzida ao frio e à pressão, além de características próprias da corrente, como intensidade necessária para terapêutica, bem como número de acomodações. A principal justificativa para a TC é que os efeitos benéficos das duas modalidades podem ser alcançados ao mesmo tempo e até mesmo existir um efeito amplificador de uma terapia sobre a outra, além da eficiência em tempo para o terapeuta e para o paciente12.
Verificou-se que não houve diferença significativa entre o limiar de dor induzido por pressão e ao frio, nas regiões de L5 (lombar) e nos dermátomos L4 e L5, independentemente da forma de terapia entregue (combinada, associada ou placebo). Isso corrobora com os dados de outro estudo, que utilizou como forma de eletroestimulação a estimulação elétrica nervosa transcutânea, que da mesma forma não encontrou diferença nos limiares de dor à pressão e ao frio. Esse trabalho, porém, avaliou a região hipotenar e tenar, utilizando a estimulação elétrica nervosa transcutânea como forma de corrente13. Também Silva et al.11 comparando diferentes frequências base de interferencial, não observaram efeitos de elevação do limiar de dor induzida à pressão e ao frio. De forma semelhante, Claro et al.14 não constataram alterações nos limiares quando variando a AMF da interferencial. Salienta-se que em todos os estudos os indivíduos submetidos às avaliações eram saudáveis, ou seja, a estimulação buscava aumentar o limiar doloroso e não necessariamente produzir analgesia, e deve-se ter em vista que a avaliação dolorosa é um processo subjetivo, que apresenta diferenças de natureza física, psicológica e social15. Esta foi considerada a principal limitação do presente estudo e sugestão que outros enfoquem pacientes com quadros dolorosos já instalados.
Em uma forma diferente daquela utilizada neste trabalho, ou seja, outros autores empregaram o método tetrapolar16, na qual são posicionados quatro eletrodos e as correntes de média frequência são moduladas dentro do paciente, nesse caso, houve alteração do limiar doloroso em dermátomos. Contudo, difere da forma comumente aplicada para a terapia combinada, na qual um eletrodo é posicionado diretamente no paciente e o transdutor ultrassônico funciona como o outro eletrodo, ou seja, de forma bipolar.
O ultrassom terapêutico é outra modalidade bastante utilizada na prática clínica, com finalidade de aumentar o metabolismo local e com isso acelerar processos químicos, como a inflamação e reparo17. Mas, também por ações térmicas e não térmicas, pode produzir redução de quadros devido ao aumento do limiar de despolarização de fibras nervosas18-20.
Dois estudos apontaram resultados positivos em pacientes com fibromialgia tratados pela TC. Almeida et al.21 utilizaram essa modalidade em pacientes com fibromialgia, com parâmetros da interferencial de 4 KHz, 100 Hz de AMF, com intensidade no limiar sensitivo, e ultrassom de 1MHz, dose pulsada de 2,5W/cm2 (sem especificar o ciclo de trabalho), e observaram que após 12 sessões ocorreu melhora no sono (subjetiva e objetivamente), fadiga matinal, na intensidade da dor e número detender points. Resultado semelhante foi observado por Moretti et al.22 no qual observaram que uma ou duas terapias semanais (com parâmetros semelhantes ao estudo anterior, mas com ciclo do ultrassom especificado em 20%), foram eficazes para reduzir a dor, além de melhorar a qualidade de vida e do sono. Ressalta-se que no presente estudo os voluntários não apresentavam quadro álgico inicialmente, sendo que os parâmetros da terapia foram levemente diferentes aos já descritos, não para a interferencial, mas para o ultrassom, que foi contínuo, com dose de 0,4W/cm2. Ou seja, mesmo que no estudo de Moretti et al.22, a dose em média temporal (não citada) tenha sido 0,5W/cm2, o presente estudo utilizou uma densidade de potência um pouco menor, mas, com base no preconizado de utilizar doses não térmicas do ultrassom9.
Em relação à intensidade das TC e associada, foi observado diferença significativa entre ambas. A terapia associada iniciava com uma intensidade menor e ao decorrer do tempo ocorreram acomodações, necessitando assim com que a intensidade da corrente fosse elevada. Já a terapia combinada iniciava-se com uma intensidade mais elevada, ocorrendo menos acomodações, acarretando menor intensidade final. Contudo, visualizou-se, diferente do citado na literatura9, que a terapia combinada apesar de ter produzido menor número de acomodações, também sofreu tal fenômeno, inclusive iniciando com intensidade superior àquela observada quando as terapias foram simplesmente sobrepostas.
Não houve diferença significativa entre os limiares dolorosos, mas sim entre a intensidade e a acomodação das correntes. A terapia combinada, apesar de ter apresentado menor número de acomodações, produziu também esse fenômeno, e necessitou, inicialmente, maior intensidade da corrente.