versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.1 São Paulo 2019 Epub 14-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ao4403
A hiperglicemia prolongada promove o desenvolvimento de diversas complicações em decorrência de processo inflamatório, como neuropatia, retinopatia, insuficiência renal, hipercoagulabilidade, hipertensão, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, doença vascular periférica, dentre outras. Os níveis de glicose sanguínea elevados são tóxicos ao organismo diante da glicação de proteínas, da hiperosmolalidade e do aumento dos níveis de sorbitol intracelular.(1,2)
A glicação é uma reação não enzimática de ligação irreversível entre glicose e proteína – por exemplo, à hemoglobina –, originando o termo hemoglobina glicada (HbA1c). A hemoglobina A (HbA) é a forma principal da hemoglobina, com os subtipos A1 e A2. A HbA1 total corresponde às formas carregadas mais negativamente pela adição de glicose e outros carboidratos. A fração A1c é a que se refere à HbA1c, cujo terminal valina da cadeia beta está unido à glicose. Além da dosagem de glicemia, a dosagem da HbA1c tornou-se importante ferramenta para o diagnóstico de diabetes mellitus (DM), o acompanhamento do controle glicêmico e na predição de riscos de complicações vasculares.(3)
O processo inflamatório está intimamente relacionado com resistência à insulina, no qual o excesso de tecido adiposo produz adipocinas pró-inflamatórias, que geram uma inflamação crônica de baixo grau, a qual pode prejudicar a resposta do tecido à insulina, levando ao DM tipo 2 (DM2).(4,5) Níveis de HbA1c >7% estão associados a um maior risco de lesões orgânicas e irreversíveis, mas a HbA1c não prediz processos inflamatórios.(1,6)
Nos últimos anos, a razão neutrófilo-linfócito (RNL) e a razão plaqueta-linfócito (RPL), derivadas de um cálculo matemático dos parâmetros do hemograma, foram introduzidas como potenciais marcadores inflamatórios em doenças cardíacas, neoplasias e complicações associadas com o diabetes.(7–10)
Há poucos estudos no Brasil sobre a RNL e a RPL nos estados hiperglicêmicos. Tendo conhecimento de que a hiperglicemia prolongada causa graves complicações e elevada morbimortalidade, são de suma importância mais estudos que auxiliem no prognóstico das complicações crônicas do DM2.(11,12) Deste modo, busca-se a potencial utilização de parâmetros do hemograma, como a RNL e a RPL, como fatores prognósticos de processos inflamatórios, para minimizar a incidência das complicações em pacientes diagnosticados com DM2, tendo em vista a importância da inflamação no início e na progressão da doença.(13,14)
Comparar a razão neutrófilo-linfócito e a razão plaqueta-linfócito de indivíduos hiperglicêmicos e indivíduos normoglicêmicos.
Estudo transversal retrospectivo, realizado pela análise dos resultados de exames laboratoriais, arquivados no software Laudos®, versão 1.0.220, dos pacientes atendidos no Laboratório de Análises Clínicas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, entre julho e dezembro de 2016.
Para a coleta de dados da população do estudo, foram selecionados todos os pacientes com idade ≥40 anos, que fizeram os exames glicemia em jejum, HbA1c e hemograma na mesma data no Laboratório Clínico, tendo sido selecionados no total 1.027 indivíduos no período proposto.
Foram excluídos do estudo pacientes com doenças hematológicas, doença renal crônica, gestantes, indivíduos com infecção aguda, conforme descrito no campo de indicações clínicas da ficha de cadastro do paciente e/ou se eles apresentassem alterações em outros exames laboratoriais. Além disto, de acordo com os critérios diagnósticos para DM de 2015-2016 da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) (https://www.diabetes.org.br/profissionais/images/docs/DIRETRIZES-SBD-2015-2016.pdf), e de 2014 da American Diabetes Association (ADA)(6) foram excluídos indivíduos pré-diabéticos, com glicemia em jejum entre 100 e 125mg/dL.
Os pacientes selecionados (n=278) foram divididos em um Grupo Hiperglicêmico, com glicemia de jejum ≥126mg/dL e HbA1c ≥6,5%, e em um Grupo Normoglicêmico, com glicemia de jejum <100mg/dL e HbA1c <6,5%, pareados por idade e sexo, conforme a ADA.(6) O Grupo Hiperglicêmico foi estratificado em um grupo com HbA1c <7,0% e outro com HbA1c ≥7,0%.
Para avaliação hematológica, foram coletados, para todos os grupos, os dados dos seguintes parâmetros do hemograma: contagem de leucócitos, neutrófilos totais, linfócitos e plaquetas. A RNL foi calculada dividindo o número total de neutrófilos pelo número de linfócitos e a RPL, dividindo o número de plaquetas pelo número de linfócitos. A contagem de células sanguíneas foi feita utilizando o analisador hematológico Pentra DF Nexus (Horiba Medical, Montpellier, França). A dosagem de glicemia e HbA1c foi realizada utilizando o analisador Architect c4000 (Abbott Laboratories, Illinois, EUA).
O estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa institucional, conforme parecer número 855.670, CAAE: 21377413.7.0000.5078 de 29 de outubro de 2014.
Para todos os grupos, foram calculados mediana, máximo e mínimo das variáveis idade, sexo, glicemia, HbA1c, contagem de leucócitos, neutrófilos totais, linfócitos, plaquetas, RNL e RPL. A compração foi feita pelo teste não paramétrico Kruskal-Wallis e pelo teste χ2 (apenas para a variável sexo), sendo os resultados considerados significativos com o valor de p<0,05. Os dados foram analisados utilizando o programa Epi Info™, versão 7.2.1.0, para Windows®.
Dos 1.027 indivíduos selecionados, foram incluídos no estudo 278, sendo 139 hiperglicêmicos e 139 normoglicêmicos. Deste total, 71% (198/278) eram do sexo feminino, 54% (149/278) tinham acima de 60 anos de idade e 99,3% (276/278) eram pacientes ambulatoriais (Tabela 1). A RNL foi semelhante entre o Grupo Hiperglicêmico (2,1; 0,5 a 12,1) e o Grupo Normoglicêmico (2,0; 0,8 a 6,2) com p=0,264, enquanto a RPL mostrou-se menor no Grupo Hiperglicêmico (117,8; 36,4 a 296,1) em comparação ao Grupo Normoglicêmico (129,6; 52,6 a 269,1), com p=0,007.
Tabela 1 Parâmetros demográficos e laboratoriais do Grupo Hiperglicêmico e do Grupo Normoglicêmico
Parâmetros | Grupo Hiperglicêmico (n=139) | Grupo Normoglicêmico (n=139) | Valor de p |
---|---|---|---|
Idade* | 62 (40-92) | 63 (40-96) | 0,761 |
Sexo, F/M† | 99/40 | 99/40 | 0,500 |
Glicemia em jejum, mg/dL* | 190 (129-568) | 91 (60-99) | <0,001 |
HbA1c, %* | 8,5 (6,5-15,3) | 5,5 (4,7-6,4) | <0,001 |
Leucócitos totais, mm³* | 6.600 (3.600-15.700) | 6.200 (4.400-10.700) | 0,006 |
Neutrófilos totais, mm³* | 4.032 (1.620-11.932) | 3.550 (1.927-7.383) | 0,004 |
Linfócitos, mm³* | 1.960 (567-5.324) | 1.825 (1.000-3.885) | 0,213 |
Plaquetas, mm³* | 232.000 (64.000-428.000) | 238.000 (150.000-399.000) | 0,270 |
RNL* | 2,1 (0,5-12,1) | 2,0 (0,8-6,2) | 0,264 |
RPL* | 117,8 (36,4-296,1) | 129,6 (52,6-269,8) | 0,007 |
Resultados expressos em mediana (mínimo-máximo).
*teste não paramétrico Kruskal-Wallis;
†teste χ2. F: feminino; M: masculino; HbA1c: hemoglobina glicada; RNL: razão neutrófilo-linfócito; RPL: razão plaqueta-linfócito.
A mediana da RNL para o grupo com HbA1c <7% (n=12) foi de 2,0 (0,9 a 8,8) e, para o grupo com HbA1c ≥7% (n=127), foi 2,1 (0,5 a 12,1), com p=0,778. A RPL para o grupo com HbA1c <7% foi de 106,4 (72,6 a 269,5) e, para o Grupo Descompensado com HbA1c ≥7%, foi de 117,9 (36,4 a 296,1), com p=0,490 (Tabela 2).
Tabela 2 Parâmetros demográficos e laboratoriais do Grupo Hiperglicêmico, de acordo com a hemoglobina glicada (HbA1c)
Parâmetros | HbA1c <7% (n=12) | HbA1c ≥7% (n=127) | Valor de p |
---|---|---|---|
Idade* | 65 (52-83) | 61 (40-92) | 0,042 |
Sexo, F/M† | 6/6 | 93/34 | 0,080 |
Glicemia em jejum, mg/dL* | 152 (129-257) | 194 (129-568) | 0,007 |
Leucócitos totais, mm³* | 7.150 (3.600-12.100) | 6.600 (3.600-15.700) | 0,344 |
Neutrófilos totais, mm³* | 4.218 (1.620-9.163) | 4.032 (1.804-11.932) | 0,435 |
Linfócitos, mm³* | 2.061 (909-3.388) | 1.955 (5.67-5.324) | 0,997 |
Plaquetas, mm³* | 251.000 (89.000-308.000) | 230.000 (64.000-428.000) | 0,848 |
RNL* | 2,0 (0,9-8,8) | 2,1 (0,5-12,1) | 0,778 |
RPL* | 106,4 (72,6-269,5) | 117,9 (36,4-296,1) | 0,490 |
Resultados expressos em mediana (mínimo-máximo).
*teste não paramétrico Kruskal-Wallis;
†teste χ2. F: feminino; M: masculino; RNL: razão neutrófilo-linfócito; RPL: razão plaqueta-linfócito.
Estudos têm demonstrado que o processo inflamatório crônico desempenha um papel importante no desenvolvimento e na progressão do DM2.(15–17) A RPL e a RNL foram utilizadas recentemente como marcadores de inflamação sistêmica em doenças crônicas, bem como preditor de prognóstico em doenças cardiovasculares e neoplasias.(18,19) O presente estudo demonstrou RPL mais baixa entre os indivíduos hiperglicêmicos e não encontrou diferença quanto à RNL, quando comparados os grupos de indivíduos hiperglicêmicos e aqueles normoglicêmicos.
A RPL menor pode estar relacionada ao aumento da ativação e à agregação plaquetária em pacientes com DM2. Esse fato é devido à deficiência de insulina, que também tem como função inibir a agregação plaquetária, bem como a presença de estresse oxidativo e a lesão endotelial, ocasionadas pela glicotoxicidade. A menor contagem de plaquetas nos indivíduos diabéticos pode depender da diminuição da sobrevida e/ou da produção e o aumento do turnover de plaquetas.(20)
Apesar de não apresentar RNL maior do que o Grupo Normoglicêmico, o Grupo Hiperglicêmico apresentou número de leucócitos totais e neutrófilos superiores ao controle, em consonância com o descrito por outros estudos.(10,21) A inflamação crônica no DM2 cursa com recrutamento de leucócitos para o ambiente vascular em resposta ao estresse oxidativo e produção de citocinas pró-inflamatórias.(22) Os resultados de Vozarova et al., mostraram que alta contagem de leucócitos é um fator preditivo para o desenvolvimento das complicações do DM2.(23) Deste modo, a inflamação crônica de baixo grau pode desempenhar papel importante na progressão para DM2, bem como no aumento da morbidade e da mortalidade em pacientes com DM.(2,24)
A RPL e, principalmente, a RNL têm sido associadas com complicações microvasculares e macrovasculares em diabetes, sobretudo com o avanço e o descontrole metabólico da doença.(25–28) No estudo de Sefil et al., a RNL teve correlação positiva com HbA1c.(29) Neste estudo, não houve diferença das razões entre hiperglicêmicos com HbA1c <7,0% e hiperglicêmicos com HbA1c ≥7,0%. Fatores como tempo de duração da doença, uso de medicamentos e outras condições clínicas podem ter contribuído para o resultado encontrado.
Apesar das limitações, há poucos estudos no Brasil correlacionando RNL, RPL e estados hiperglicêmicos. Diante disso, é relevante o estudo destas razões, visto que, no Brasil, a prevalência do DM2 é elevada e com alta demanda de recursos assistenciais e financeiros, sendo as razões RNL e RPL de baixo custo e fácil acesso.
A razão plaqueta-linfócito encontrada entre pacientes hiperglicêmicos foi significativamente menor do que a razão plaqueta-linfócito de pacientes normoglicêmicos, enquanto a razão neutrófilo-linfócito não diferiu entre os grupos.