versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.2 São Paulo 2019 Epub 01-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017278
O trauma cranioencefálico (TCE) é definido na literatura como qualquer agressão ao cérebro de ordem traumática, causada por uma força física externa, que acarreta lesão anatômica e/ou comprometimento funcional do couro cabeludo, crânio, meninges, encéfalo ou vasos sanguíneos(1). Estas lesões cerebrais podem resultar em morte ou resultar no desenvolvimento de sequelas funcionais, cognitivas, comportamentais e psicológicas (1).
Dentre as principais causas do TCE, podemos citar os acidentes de trânsito (colisão e atropelamento), quedas e agressões físicas, sendo que as quedas ocorrem em sua maioria na população idosa e os acidentes de trânsito e agressões são mais frequentes em adultos jovens(2). Calcula-se que, anualmente, cerca de 1,5 milhão de pessoas morrem e centenas de milhões requerem tratamento emergencial em decorrência de acidentes de trânsito e agressões, caracterizando, portanto, um importante problema de saúde pública mundial(3,4). Devido à sua alta incidência, grande potencial de deficiência e o impacto sobre a população economicamente ativa, o TCE destaca-se como um problema social e econômico grave e é atualmente considerado uma “epidemia silenciosa”. (4)
Os países emergentes possuem poucos estudos epidemiológicos sobre o alcance e impacto do TCE. Estatísticas sobre TCE no Brasil são raras e abordam regiões específicas(5). De acordo com estudo recente(6), que avaliou os casos de TCE no Brasil, utilizando os dados do Departamento de Tecnologia da Informação do Sistema Único de Saúde (DATASUS) entre 2008 e 2012, observaram-se 125.000 internações hospitalares por ano decorrentes do TCE e uma incidência de 65.7 internações por 100.000 habitantes por ano. A mortalidade hospitalar foi de 5.1/100.000/ ano e a taxa de letalidade foi de 7,7%. O custo médio anual das despesas hospitalares com esta população foi de US$70.960.000 . Nesse mesmo estudo(6), a faixa etária de 20 a 29 anos apresentou maior número de mortes durante a internação hospitalar.
Pacientes vítimas de TCE frequentemente apresentam como umas das sequelas sensório-motoras a disfagia orofaríngea neurogênica(4). A disfagia é caracterizada pela alteração do processo da deglutição, podendo causar aspiração laringotraqueal, pneumonia e outros problemas respiratórios, que podem levar à piora do quadro clínico do paciente.(6,7)
A disfagia orofaríngea na população com TCE é bastante documentada na literatura, com prevalência variando de 38% a 65%(8). No entanto, há relativamente poucos estudos que apresentam indicadores específicos, com foco no acompanhamento destes pacientes até o momento da alta hospitalar e/ou fonoaudiológica. Estes estudos identificaram variáveis associadas à disfagia orofaríngea de longo prazo, incluindo pontuação baixa na escala de Coma Glasgow, a gravidade da lesão na tomografia computadorizada, os escores no momento da admissão, uso prolongado da ventilação mecânica e colocação de traqueostomia(9,10). Contudo, ainda são limitados os trabalhos que realizam análise detalhada das relações entre a gravide do TCE, as alterações de deglutição, o tipo e resultados dos principais tratamentos.
A definição dos indicadores de prognóstico permite dar suporte à equipe de reabilitação para melhor definir a recuperação do paciente e também facilitar a escolha dos cuidados mais adequados e com melhor custo-benefício para os indivíduos com distúrbios da deglutição(11,12). Os indicadores devem ser selecionados com cautela quando se avalia a qualidade dos cuidados de saúde e devem ser utilizados na avaliação da qualidade dos cuidados de saúde prestados aos pacientes com disfagia. Com o intuito de possibilitar a avaliação adequada da prática clínica, os indicadores devem refletir as atividades desenvolvidas na prática de cada área específica, tais como aqueles encontrados em manuais de recomendações clínicas (13,14).
Poucos são os estudos na literatura que apresentam indicadores do gerenciamento da disfagia em TCE ou ainda fatores preditivos da ocorrência de disfagia nessa mesma população. Uma pesquisa realizada em 2014 (4) determinou fatores preditivos de colocação de via alternativa de alimentação após o TCE grave. Os resultados do estudo indicaram que, na avaliação inicial do indivíduo com TCE, variáveis como o aumento da idade, baixa pontuação na Escala de Como de Glasgow (EGC), presença de traqueostomia e afonia aumentaram significativamente a gravidade das alterações de deglutição dos pacientes, reduzindo as chances de retirada da sonda nasoenteral até o momento da alta hospitalar.
Apesar de não terem sido realizados especificamente com a população de TCE, alguns estudos buscaram verificar a associação entre a gravidade da disfagia e os fatores clínicos de risco de pacientes críticos no momento da internação hospitalar (5,15,16). Nesses estudos, foram incluídos os resultados da gravidade dos pacientes, segundo as escalas Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) e a Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (APACHE II), no momento da admissão no hospital. Contudo, esses estudos não encontraram correlação entre a gravidade da disfagia e a gravidade clínica dos pacientes no momento da internação. De maneira geral, os indivíduos com disfagia leve ou deglutição normal apresentaram escores similares nas escalas quando comparados aos pacientes com disfagia grave.
Dada a importância do tema e a escassez de dados na literatura científica, o objetivo do presente estudo foi caracterizar e comparar os aspectos funcionais da deglutição e indicadores clínicos na população com traumatismo cranioencefálico (TCE) em unidade de terapia intensiva.
Trata-se de um estudo retrospectivo transversal observacional. Esta pesquisa foi aprovada pela Comissão de Ética para Análise de Projetos e Pesquisas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (CAPPesq HCFMUSP no. 1481550). Por se tratar de estudo com base na análise de prontuários, foi dispensado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A amostra foi composta por indivíduos diagnosticados com TCE que foram submetidos à avaliação da deglutição em beira de leito, por solicitação médica, pela Divisão de Fonoaudiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) no período de janeiro de 2015 a junho de 2016.
Os critérios de inclusão utilizados foram baseados nos dados registrados em prontuário médico, sendo eles: a) estabilidade clínica e respiratória; b) idade superior a 18 anos; c) ausência de doenças neurológicas prévias; d) ausência de disfagia esofágica; e) ausência de procedimentos cirúrgicos prévios envolvendo a região de cabeça e pescoço; f) ausência de comorbidades fonoaudiológicas prévias (queixas ou déficits comunicativos, auditivos); g) intubação orotraqueal prolongada (IOTp - acima de 48 h); h) ausência de uso de traqueostomia; i) ter sido submetido à avaliação fonoaudiológica em beira de leito; j) ausência de alimentação por via oral no momento da avaliação fonoaudiológica.
Um total de 346 indivíduos com TCE foram admitidos no HCFMUSP e receberam atendimento fonoaudiológico no período dos 17 meses estudados. O organograma ( Figura 1 ) ilustra como ocorreu a seleção final da amostra de pacientes incluídos neste estudo.
As etapas de coleta de dados envolveram: a) avaliação fonoaudiológica clínica do risco de broncoaspiração, com a determinação do nível funcional da deglutição segundo a American Speech-Language-Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS)(17); b) determinação da gravidade do paciente de acordo com a Sequential Organ Failure Assessment (SOFA)(14).
Após o pedido médico de interconsulta, a equipe de fonoaudiologia realizou a avaliação clínica da deglutição em beira de leito que incluiu a aplicação do Protocolo Fonoaudiológico de Avaliação do Risco da Disfagia (PARD) e a classificação do nível da deglutição de acordo com a American Speech-Language-Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS). Os indivíduos que não apresentaram deglutição de saliva na avaliação estrutural não entraram no estudo, uma vez que não tinham indicação de aplicação do PARD.
O PARD(18) é um protocolo para avaliação do risco para disfagia em beira-leito. Esse protocolo tem como objetivo auxiliar o fonoaudiólogo a identificar e interpretar as alterações na dinâmica da deglutição. Sua aplicação inclui a oferta de volumes controlados de água e de pastoso homogêneo. O protocolo determina se o paciente pode receber volumes maiores de líquidos e/ou alimentos de diferentes consistências e a necessidade de supervisão para a alimentação segura. O protocolo é dividido em 2 partes: teste da deglutição de água e teste de deglutição com pastoso. Para o presente estudo, foi considerado somente o resultado do teste de água.
Conforme determinado pelos autores do protocolo, os indivíduos são avaliados durante a deglutição de 1 a 5ml de água. No teste de Deglutição da Água, são analisados 11 itens: escape oral anterior, tempo de trânsito oral, refluxo nasal, número de deglutições, elevação laríngea, ausculta cervical, saturação de oxigênio, qualidade vocal, tosse, engasgo e outros sinais de alteração clínica (cianose, broncoespasmo, alteração dos sinais vitais). Os resultados são marcados como passa ou falha para cada item avaliado.
Uma pesquisa publicada recentemente investigou os preditores de risco de disfagia após a intubação orotraqueal prolongada(13), com base nos resultados do PARD na avaliação com água (5ml). Nesse trabalho, os autores concluem que os preditores de disfagia nessa população foram: escape extraoral; deglutições múltiplas; ausculta cervical alterada; qualidade vocal após a deglutição; presença de tosse após a deglutição e presença de engasgos. Dessa forma, estes foram os itens do PARD considerados para análise e correlação com os demais dados da pesquisa.
Os critérios para interpretação desses dados estão descritos no Quadro 1 .
Quadro 1 Definição das variáveis do Protocolo Fonoaudiológico de Avaliação do Risco de Disfagia (PARD) para o teste de deglutição de água (5mL)
Variáveis | Julgamento Clínico | |
---|---|---|
Teste de deglutição de água (5ml) | Escape extra oral | Passa - Água não escapa pelos lábios, gerencia o bolo adequadamente |
Falha - Dificuldade no gerenciamentodo do bolo, presença de escorrimento do líquido pelos lábios | ||
Deglutições múltiplas | Passa - Presença de uma única deglutição por bolo | |
Falha - Presença de mais de uma deglutição por bolo | ||
Ausculta cervical (o estetoscópio deve ser posicionado na parte lateral da junção entre a laringe e a traqueia, anterior à artéria carótida) | Passa - Presença de três sons característicos da deglutição, indicando que o bolo passou pela faringe – dois cliques seguidos por um som expiratório | |
Falha - Quando não há presença dos sons ou presença de outros sons não descritos acima | ||
Voz molhada | Passa - Não apresenta alterações no primeiro minuto após a deglutição | |
Falha - A voz apresenta um som borbulhante (“molhada”) no primeiro minuto após a deglutição | ||
Tosse | Passa - Não há presença de tosse no primeiro minuto após a deglutição | |
Falha - Presença de tosse (voluntária ou não) seguida ou não por pigarro durante o primeiro minuto após a deglutição | ||
Engasgo | Passa - Não há a presença de engasgo após a deglutição | |
Falha - Presença de engasgo durante ou após a deglutição |
A escala do nível funcional de deglutição ASHA NOMS(17) é uma ferramenta multidimensional que mede o nível de supervisão necessária para a alimentação e o nível da dieta, atribuindo um número único entre 1 e 7. Os níveis da alimentação e de supervisão são classificados através da escala ASHA NOMS no momento da avaliação inicial (ASHA inicial), com base nos resultados do PARD e no momento do encerramento do seguimento fonoaudiológico (ASHA final) conforme a seguir:
Nível 1: O indivíduo não é capaz de deglutir nada com segurança por via oral. Toda nutrição e hidratação são recebidas através de via alternativa de alimentação (ex.: sonda nasogástrica, gastrostomia);
Nível 2: O indivíduo não é capaz de deglutir com segurança por via oral para nutrição e hidratação, mas pode ingerir alguma consistência, somente em terapia, com uso máximo e consistente de pistas. Via alternativa de alimentação é necessária;
Nível 3: Via alternativa de alimentação é necessária, uma vez que o indivíduo ingere menos de 50% da nutrição e hidratação por via oral; e/ou a deglutição é segura com o uso moderado de pistas para uso de estratégias compensatórias; e/ou necessita de restrição máxima da dieta;
Nível 4: A deglutição é segura, mas frequentemente requer uso moderado de pistas para uso de estratégias compensatórias; e/ou o indivíduo tem restrições moderadas da dieta; e/ou ainda necessita de via alternativa de alimentação e/ou suplemento oral;
Nível 5: A deglutição é segura com restrições mínimas da dieta; e/ou ocasionalmente requer pistas mínimas para uso de estratégias compensatórias. Ocasionalmente pode se automonitorar. Toda nutrição e hidratação são recebidas por via oral durante a refeição;
Nível 6: A deglutição é segura e o indivíduo come e bebe independentemente. Raramente necessita de pistas mínimas para uso de estratégias compensatórias. Frequentemente se automonitora quando ocorrem dificuldades. Pode ser necessário evitar alguns itens específicos de alimentos (ex.: pipoca e amendoim); tempo adicional para alimentação pode ser necessário (devido à disfagia);
Nível 7: A habilidade do indivíduo em se alimentar independentemente não é limitada pela função de deglutição. A deglutição é segura e eficiente para todas as consistências. Estratégias compensatórias são utilizadas efetivamente quando necessárias.
Para garantir a confiabilidade dos dados, todos os fonoaudiólogos responsáveis pela avaliação da deglutição em beira de leito receberam um treinamento específico para a definição do nível funcional da deglutição. O nível funcional da deglutição foi determinado na primeira avaliação clínica e na resolução da disfagia ou alta hospitalar.
Todos os pacientes do estudo receberam tratamento individual para reabilitação da deglutição até a resolução da disfagia ou a alta hospitalar (19). Os pacientes foram atendidos pelos fonoaudiólogos com experiência na área da disfagia e treinados para aplicar o mesmo programa de tratamento. Para o tratamento, foram utilizados procedimentos e técnicas visando à reabilitação da deglutição, divididas em terapias direta e indireta. A terapia direta foi baseada no uso de alimento, mesmo que em volumes mínimos, para proporcionar o treino de deglutição, e a terapia indireta apresentou como foco a organização muscular pelo uso de exercícios para o treino motor oral. Cabe ressaltar que também foram utilizadas, quando necessário, manobras e posturas de proteção de vias aéreas, favorecendo o retorno seguro da alimentação por via oral, possibilitando a retirada da via alternativa de alimentação.
O escore SOFA(14) é um índice prognóstico aplicado diariamente em indivíduos críticos durante sua permanência na UTI, com a finalidade de registrar as variáveis do processo de disfunção ou falência orgânica ao longo do tempo e quantificar o grau desta disfunção em cada um dos órgãos analisados. O escore obtido pela SOFA é utilizado não para determinar o desfecho do paciente, e sim para descrever as complicações dos indivíduos críticos. Os dois maiores objetivos do escore SOFA são: melhorar a compreensão da disfunção dos órgãos e a relação entre os prejuízos dos vários órgãos, e avaliar os efeitos do tratamento médico adotado.
Para determinar a gravidade do paciente, são atribuídos escores de 0 (normal) a 4 (maior grau de comprometimento) para os diferentes sistemas: respiratório, cardiovascular, hematológico, hepático, neurológico e renal. Cada sistema recebe um escore separado e a pontuação final é obtida pela soma de todos os escores. A pontuação máxima é 20, sendo essa indicativa de maior gravidade. Os critérios para atribuição dos pontos estão descritos no Quadro 2 .
Quadro 2 Sistema de pontuação na Sequential Organ Failure Assessment (SOFA)
Escore SOFA | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 |
---|---|---|---|---|---|
Respiração | >400 | ≤400 | ≤300 | ≤200 | ≤100 |
PaO2/FIO2 (mmHg) | com suporte respiratório | com suporte respiratório | |||
Coagulação | >150 | ≤150 | ≤100 | ≤50 | ≤20 |
Plaquetas × 103/mm3 | |||||
Fígado | |||||
Bilirrubina (mg/dl) | <1.2 | 1,2-1,9 | 2,0-5,9 | 6,0-11,9 | >12 |
(µmol/l) | <20 | 20-32 | 33-101 | 102-204 | >204 |
Cardiovascular | sem hipotensão | MPA<70mmHg | dopamina≤5 | dopamina>5 | dopamina>15 |
ou | epinefrina≤1 | epinefrina>0,1 | |||
Hipotensão | dobutamina (qualquer dose) | ou noraepinefrina≤0,1 a | ou noraepinefrina>0,1a | ||
SNC | 15 | 13-14 | 10-12 | 6-9 | <6 |
Escala de Coma de Glasgow | |||||
Renal | <1,2 | 1,2-1,9 | 2,0-3,4 | 3,5-4,9 | >5 |
Creatinina (mg/dl) | <110 | 110-170 | 171-299 | 300-440 | >440 |
(µmol/l) | <110 | 110-170 | 171-299 | 300-440 | >440 |
ou saída de urina | - | - | - | <500ml/dia | <200ml/dia |
a agentes adrenérgicos administrados por pelo menos uma hora (doses administradas em micrograma por quilo por minuto)
Legenda: SOFA = Sequential Organ Failure Assessment ; PaO2/FIO2 = relação entre a pressão parcial de oxigênio no sangue arterial e a frações inspiradas de oxigênio; mmHG = milímetros de mercúrio; Plaquetas × 103/mm3 = concentração de plaquetas em milímetros cúbicos de sangue; mg/dl = miligramas por decilitro; µmol/l = micromol por litro; MPA = média da pressão arterial; ml = mililitro
O índice SOFA foi obtido no momento da admissão na unidade de internação (SOFA 1) e no dia da avaliação fonoaudiológica (SOFA 2).
Os dados quantitativos receberam análise descritiva (média e desvio padrão) e inferencial comparando os grupos (teste de Kruskal-Wallis para as comparações múltiplas, com análise post hoc de pares com correção de Bonferroni, se significativo). Os dados qualitativos receberam análise descritiva (contagem total e porcentagem) e inferencial comparando os grupos (teste Quiquadrado de Pearson, com o teste de Kruskal-Wallis para as análises post hoc de pares com correção de Bonferroni, se significativo). Para as comparações, pré e pós-intervenção fonoaudiológica, foi utilizado o teste de Wilcoxon pareado. A análise inferencial para investigar a presença de correlação entre as variáveis foi realizada pelo coeficiente de correlação de Spearman. Para o presente estudo, os pacientes que apresentaram nível funcional de deglutição na escala ASHA NOMS de 6 ou 7 no momento da resolução de disfagia ou na alta hospitalar foram considerados como apresentando resultado positivo. O nível de significância adotado em todas as análises foi de 5%.
Após a aplicação dos critérios de inclusão, os pacientes selecionados foram agrupados de acordo com os níveis funcionais de deglutição determinados na avaliação inicial: níveis 1 e 2 – ASHA1 (n=25); níveis 3, 4 e 5 – ASHA2 (n=37); níveis 6 e 7 – ASHA3 (n=51). Dentre os indivíduos selecionados, as causas do TCE registradas em prontuário médico foram: ASHA1 – 7 indivíduos com TCE decorrente de queda e 18 indivíduos com TCE decorrente de acidente de trânsito; ASHA2 – 2 indivíduos com TCE decorrente de agressão, 10 indivíduos com TCE decorrente de queda e 25 indivíduos com TCE decorrente de acidente de trânsito; ASHA3 - 3 indivíduos com TCE decorrente de agressão, 1 indivíduo com TCE decorrente de esmagamento, 18 indivíduos com TCE decorrente de queda e 29 indivíduos com TCE decorrente de acidente de trânsito.
Os grupos foram comparados de acordo com suas variáveis demográficas e dados do prontuário médico, conforme Tabela 1 .
Tabela 1 Comparação intergrupos nas variáveis demográficas e dados gerais
ASHA1 | ASHA2 | ASHA3 | p-value | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
(n = 25) | (n=37) | (n=51) | |||||
Idade em anos | 43,6 | 36,8 | 35,2 | 0,240 | |||
Média (±desvio padrão) | (±19,2) | (±13,2) | (±11,2) | ||||
Gênero | M = 21 | F = 4 | M = 35 | F = 2 | M = 42 | F = 9 | 0,223 |
Número total (porcentagem) | (84,0%) | (16,0%) | (94,6%) | (5,4%) | (82,4%) | (17,6%) | |
Gravidade do TCE de acordo com a escala Glasgow | 13,5 | 14,2 | 14,2 | 0,003 * | |||
Média (±desvio padrão) | (±1,1) | (±0,7) | (±1,0) | ||||
Número de IOTs | 1,1 | 1,2 | 1,1 | 0,293 | |||
Média (±desvio padrão) | (±0,3) | (±0,4) | (±0,2) | ||||
Tempo de IOT em horas | 139,2 | 161,5 | 97,4 | 0,014* | |||
Média (±desvio padrão) | (±90,1) | (±107,0) | (±62,7) | ||||
Tempo de hospitalização em dias | 28,4 | 26,6 | 16,6 | 0,005* | |||
Média (±desvio padrão) | (±24,2) | (±22,8) | (±11,9) | ||||
Número de sessões de atendimento fonoaudiológico até retorno da VO | 2,7 | 1,4 | 1,0 | 0,003* | |||
Média (±desvio padrão) | (±2,6) | (±1,0) | (±0,0) | ||||
Número de sessões de atendimento fonoaudiológico até a alta | 0,6 | 1,4 | 2,2 | <0,001* | |||
Média (±desvio padrão) | (±2,2) | (±2,2) | (±2,5) |
*diferença significativa de acordo com o teste de Kruskal-Wallis
Legenda: ASHA1 – níveis 1 e 2 no American Speech-Language and Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS); ASHA2 – níveis 3, 4 e 5 no ASHA NOMS; ASHA3 – níveis 6 e 7 no ASHA NOMS; TCE = Traumatismo Cranioencefálico; M = gênero masculino; F = gênero feminino; IOT = intubação orotraqueal; VO = alimentação por via oral; n = número de participantes
Foram executadas comparações de pares para as variáveis que indicaram diferenças intergrupos significativas:
Gravidade do TCE de acordo com a ECG: significativamente mais grave no grupo ASHA 1 quando comparado aos grupos ASHA 3 – p < 0,004 – e ASHA 2 – p = 0,016, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p > 0,999, de acordo com o teste de Kruskal-Wallis, com análise post hoc de pares com correção de Bonferroni;
Tempo de IOT em horas: significativamente menor no grupo ASHA 3 quando comparado ao grupo ASHA 2 – p = 0,002, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 1 – p = 0,946; nem entre os grupos ASHA 1 e ASHA 2 – p = 0,143, de acordo com o teste de Kruskal-Wallis, com análise post hoc de pares com correção de Bonferroni;
Tempo de hospitalização em dias: significativamente menor no grupo ASHA 3 quando comparado ao grupo ASHA 1 – p < 0,039, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p = 0,051; nem entre os grupos ASHA 1 e ASHA 2 – p > 0,999, de acordo com o teste de Kruskal-Wallis, com análise post hoc de pares com correção de Bonferroni;
Número de sessões de atendimento fonoaudiológico até retorno da alimentação por via oral: significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado aos grupos ASHA 3 – p < 0,001 – e ASHA 2 – p = 0,001; sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p = 0,589, de acordo com o teste de Kruskal-Wallis, com análise post hoc de pares com correção de Bonferroni;
Número de sessões de atendimento fonoaudiológico até a alta: significativamente maior no grupo ASHA 3 quando comparado ao grupo ASHA 1– p = 0,015, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p = 0,280; nem entre os grupos ASHA 1 e ASHA 2 – p = 0,606, de acordo com o teste de Kruskal-Wallis, com análise post hoc de pares com correção de Bonferroni.
A Tabela 2 apresenta os resultados comparativos intragrupo para a avaliação do risco de broncoaspiração.
Tabela 2 Comparação intergrupos de acordo com a avaliação clínica do risco de broncoaspiração
Itens avaliados | ASHA1 (n = 25) | ASHA2 (n = 37) | ASHA3 (n = 51) | p-value |
---|---|---|---|---|
Escape extra oral | 5 (20,0%) | 1 (2,7%) | 1 (2,0%) | 0,005 * |
Deglutições múltiplas | 6 (24,0%) | 6 (16,2%) | 1 (2,0%) | 0,010* |
Ausculta cervical ruidosa | 9 (36,0%) | 1 (2,7%) | 0 (0,0%) | <0,001* |
Voz molhada | 1 (4,0%) | 1 (2,7%) | 0 (0,0%) | 0,403 |
Tosse | 13 (52,0%) | 4 (10,8%) | 4 (7,8%) | <0,001* |
Engasgo | 3 (12,0%) | 0 (0,0%) | 2 (3,9%) | 0,077 |
*diferença significativa de acordo com o teste Quiquadrado de Pearson
Legenda: ASHA1 – níveis 1 e 2 no American Speech-Language and Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS); ASHA2 – níveis 3, 4 e 5 no ASHA NOMS; ASHA3 – níveis 6 e 7 no ASHA NOMS; n = número de participantes
Foram executadas comparações de pares para as variáveis que indicaram diferenças intergrupos significativas:
Escape extraoral: o número de participantes que falharam foi significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado aos grupos ASHA 3 – p = 0,007 – e ASHA 2 – p = 0,017, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 1 e ASHA 2 – p > 0,999, de acordo com análise post hoc Kruskal-Wallis de pares com correção de Bonferroni;
Deglutições múltiplas: o número de participantes que falharam foi significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado ao grupo ASHA 3 – p < 0,015, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p = 118; nem entre os grupos ASHA 2 e ASHA 1 – p > 0,999, de acordo com análise post hoc Kruskal-Wallis de pares com correção de Bonferroni;
Ausculta cervical ruidosa: o número de participantes que falharam foi significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado aos grupos ASHA 3 – p < 0,001 – e ASHA 2 – p < 0,001, sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 2 e ASHA 3 – p > 0,999, de acordo com análise post hoc Kruskal-Wallis de pares com correção de Bonferroni;
Tosse: significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado aos grupos ASHA 2 – p < 0,001 – e ASHA 3 – p < 0,001; sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 2 e ASHA 3 – p > 0,999, de acordo com análise post hoc Kruskal-Wallis de pares com correção de Bonferroni.
A Tabela 3 apresenta os níveis de deglutição, de acordo com a escala ASHA NOMS após a avaliação fonoaudiológica em beira de leito (inicial) e no momento da resolução de disfagia ou na alta hospitalar (final).
Tabela 3 Resultados na escala do nível de deglutição ASHA NOMS
Nível funcional de deglutição | ASHA1 (n=25) | ASHA2 (n=37) | ASHA3 (n=51) | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Inicial | Final | Inicial | Final | Inicial | Final | |
1. Não é capaz de deglutir nada pela boca | 2 | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 |
2. Pode ingerir alguma consistência com uso máximo de pistas | 23 | 9 | 0 | 0 | 0 | 0 |
3. Ingere menos de 50% de nutrição pela boca com o uso moderado de pistas | 0 | 3 | 5 | 2 | 0 | 0 |
4. A deglutição é segura com o uso moderado de pistas | 0 | 7 | 12 | 7 | 0 | 0 |
5. A deglutição é segura com o uso mínimo de pistas | 0 | 3 | 20 | 10 | 0 | 0 |
6. A deglutição é segura e raramente requer uso de pistas | 0 | 0 | 0 | 9 | 22 | 15 |
7. A deglutição é eficiente, o indivíduo é independente | 0 | 1 | 0 | 9 | 29 | 36 |
Legenda: n = número de participantes; ASHA1 – níveis 1 e 2 no American Speech-Language and Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS); ASHA2 – níveis 3, 4 e 5 no ASHA NOMS; ASHA3 – níveis 6 e 7 no ASHA NOMS
Em relação aos 25 indivíduos incluídos no grupo ASHA1, foi possível observar que apenas um (n=1) paciente apresentou resultado positivo após a intervenção fonoaudiológica. Contudo, de maneira geral, mais de 80% da amostra apresentou melhora no quadro funcional da deglutição. Em relação aos indivíduos do grupo ASHA2, 48% dos pacientes apresentaram resultados positivos após a intervenção fonoaudiológica. Os pacientes incluídos no ASHA3 já apresentavam uma deglutição segura na avaliação fonoaudiológica em beira de leito. No entanto, é possível observar que houve um aumento de 14% no número de pacientes que atingiram o nível máximo da funcionalidade da deglutição no desfecho.
A Tabela 4 apresenta a comparação dos grupos de acordo com a gravidade do quadro clínico no momento da admissão na unidade de internação.
Tabela 4 Comparação intergrupos de acordo com a escala SOFA inicial (SOFA 1)
Pontuação na escala SOFA | ASHA1 (n = 25) | ASHA2 (n = 37) | ASHA3 (n = 51) | p-value |
---|---|---|---|---|
Média (±desvio padrão) | ||||
Respiração | 1,8 (±1,1) | 1,6 (±1,2) | 1,5 (±1,2) | 0,714 |
Hematológico | 0,5 (±1,0) | 0,5 (±0,8) | 0,4 (±0,6) | 0,889 |
Hepático | 0,1 (±0,4) | 0,0 (±0,0) | 0,02 (±0,1) | 0,496 |
Renal | 0,1 (±0,3) | 0,3 (±0,8) | 0,3 (±0,6) | 0,451 |
Cardiovascular | 2,4 (±1,7) | 2,1 (±1,5) | 2,2 (±1,4) | 0,589 |
Neurológico | 3,4 (±1,0) | 2,7 (±1,3) | 2,7 (±1,2) | 0,018 * |
Total | 8,2 (±2,4) | 7,3 (±2,5) | 7,2 (±3,0) | 0,348 |
*diferença significativa de acordo com o teste de Kruskal-Wallis
Legenda: n = número de participantes; ASHA1 – níveis 1 e 2 no American Speech-Language and Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS); ASHA2 – níveis 3, 4 e 5 no ASHA NOMS; ASHA3 – níveis 6 e 7 no ASHA NOMS; SOFA = Sequential Organ Failure Assessment
A comparação intergrupos para a pontuação no SOFA 1 indicou diferenças significativas entre os grupos apenas para a variável “neurológico” (pontuação significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado ao grupo ASHA 3 – p = 0,02; sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p > 0,999; nem entre os grupos ASHA 2 e ASHA 1 – p = 0,058, de acordo com análise post hoc Kruskal-Wallis de pares com correção de Bonferroni).
A Tabela 5 apresenta a comparação dos grupos de acordo com a gravidade do quadro clínico no momento da avaliação clínica do risco de broncoaspiração.
Tabela 5 Comparação intergrupos de acordo com a escala SOFA no momento da avaliação do risco de broncoaspiração (SOFA 2)
Pontuação na escala SOFA | ASHA1 (n = 25) | ASHA2 (n = 37) | ASHA3 (n = 51) | p-value |
---|---|---|---|---|
Média (±desvio padrão) | ||||
Respiração | 0,85 (±0,87) | 0,78 (±0,97) | 0,78 (±0,97) | 0,384 |
Hematológico | 0,39 (±0,81) | 0,11 (±0,33) | 0,11 (±0,33) | 0,229 |
Hepático | 0,02 (±0,14) | 0,22 (±0,67) | 0,22 (±0,67) | 0,147 |
Renal | 0,09 (±0,49) | 0,0 (±0,0) | 0,0 (±0,0) | 0,185 |
Cardiovascular | 0,23 (±0,70) | 0,0 (±0,0) | 0,0 (±0,0) | 0,468 |
Neurológico | 0,62 (±0,54) | 1,56 (±0,73) | 1,56 (±0,73) | 0,024 * |
Total | 2,14 (±1,59) | 2,67 (±0,71) | 2,67 (±0,71) | 0,462 |
*diferença significativa de acordo com o teste de Mann-Whitney
Legenda: n = número de participantes; ASHA1 – níveis 1 e 2 no American Speech-Language and Hearing Association National Outcome Measurement System (ASHA NOMS); ASHA2 – níveis 3, 4 e 5 no ASHA NOMS; ASHA3 – níveis 6 e 7 no ASHA NOMS; SOFA = Sequential Organ Failure Assessment
A comparação intergrupos no escore SOFA 2 indicou diferenças significativas entre os grupos apenas para a variável “neurológico” (pontuação significativamente maior no grupo ASHA 1 quando comparado ao grupo ASHA 3 – p = 0,022; sem diferenças significativas entre os grupos ASHA 3 e ASHA 2 – p > 0,999; nem entre os grupos ASHA 2 e ASHA 1 – p = 0,110, de acordo com análise post hoc Kruskal-Wallis de pares com correção de Bonferroni).
Foram realizadas duas análises de correlação: uma entre as variáveis demográficas e clínicas correlacionadas ao nível inicial da funcionalidade da deglutição e outra entre os dados finais da funcionalidade da deglutição, os escores na escala SOFA e os resultados na avaliação do risco de broncoaspiração correlacionados ao nível inicial da funcionalidade da deglutição. As análises realizadas indicaram que não houve correlação significativa entre as variáveis demográficas e dados do prontuário médico com o nível inicial da funcionalidade da deglutição. A pontuação inicial na escala ASHA NOMS apresentou correlação negativa significativa apenas com a pontuação na avaliação clínica do risco de broncoaspiração para o item “tosse” (r = -0,220 e p = 0,019), ou seja, quanto pior a funcionalidade da deglutição maior chance de apresentar tosse durante a avaliação clínica da deglutição. Não foram observadas correlações para os demais itens.
O presente estudo caracterizou e comparou os aspectos funcionais da deglutição na população com trauma cranioencefálico, considerando as características clínicas e a gravidade dos indivíduos. De maneira geral, os resultados do presente estudo indicaram que o grupo ASHA3 apresentou menor gravidade do TCE no momento da avaliação fonoaudiológica, menor tempo de intubação orotraqueal (um terço a menos que o grupo mais grave), ficou menos tempo hospitalizado e necessitou de menos sessões de atendimento fonoaudiológico para o retorno seguro para via oral de alimentação. Os sinais clínicos preditores de broncoaspiração que mais diferenciaram os grupos foram a presença de ausculta cervical alterada e a presença de tosse após a deglutição, sendo que o grupo ASHA3 apresentou esses sinais com menor frequência.
Em relação às causas do TCE, foi observado no presente estudo maior ocorrência de acidentes de trânsito (64%), seguido de quedas (31%), agressão (4%) e esmagamento (1%). A literatura refere que, mesmo nos países menos desenvolvidos, os veículos automotivos são a maior causa de mortes e incapacidades, principalmente na população jovem(20), seguido pelas quedas, que ocorrem em sua maioria na população com idade superior a 65 anos(21). Em revisões epidemiológicas mais recentes, observou-se uma mudança no quadro epidemiológico, as quedas têm sido o maior fator de causa do TCE, principalmente na população idosa(3,22).
A população de TCE estudada foi caracterizada em sua maioria por homens (86,72%), corroborando a epidemiologia desta população apresentada em outros estudos (2,22). A literatura refere que a idade média da população com TCE apresenta grande variação(22); no presente estudo a idade média foi de 37,58 anos. Somente um estudo corroborou a faixa etária encontrada, este relacionou a ingestão de álcool com a incidência do TCE(23). Mandaville et al.(4) apontaram a idade como sendo um fator prognóstico de recuperação funcional do dano neurológico, justificando que indivíduos mais velhos têm maior tendência de apresentar doenças crônicas de base, e que esse fato poderia aumentar o tempo de internação. Além disso, indivíduos mais velhos têm maior tendência em apresentar disfagia orofaríngea de longo prazo(4).
A literatura também descreve a relação entre o tempo de intubação orotraqueal e a gravidade da disfagia(5,24-26). Os resultados do presente estudo indicaram que quanto maior o tempo de intubação, maior o risco de broncoaspiração. Essa relação pode ser explicada pelo impacto da permanência do tubo orotraqueal na cavidade oral, faríngea e laríngea, levando ao desuso da musculatura, lesões na mucosa e à perda de propriocepção relacionada a alterações dos quimiorreceptores e/ou mecanorreceptores(24).
Os resultados do presente estudo também indicaram que o item relacionado ao aspecto neurológico da escala SOFA foi o parâmetro que apresentou maior diferença entre os grupos, quando considerada a funcionalidade da deglutição. O estudo realizado por Mackay et al.(10) aponta que 61% dos indivíduos com TCE em um centro de trauma apresentaram disfagia na admissão hospitalar. Alguns pesquisadores ainda sugerem que o nível de comprometimento da deglutição está diretamento relacionado aos escores na ECG (escores baixos) e ao maior tempo de intubação orotraqueal (11). Além disso, deve-se considerar que na admissão da UTI, o paciente está hemodinamicamente instável, em uso de drogas vasoativas, dependente de ventilação mecânica e com necessidade de sedação, o que pode piorar a avaliação neurológica e o desempenho nas escalas de prognóstico(27).
Para melhor compreensão e delineamento terapêutico, estudos têm procurado identificar preditores que se relacionam com o risco de aspiração, permitindo dessa forma a priorização dos atendimentos e a definição de condutas para o retorno mais breve e seguro da via oral e para a retirada de via alternativa de alimentação (18). Na literatura, foram encontrados trabalhos que citam os seguintes itens como preditores da disfagia: o tempo prolongado de intubação, considerando que quanto maior for esse tempo, pior será a deglutição, e a idade, que quanto mais jovem for o paciente, melhor será a deglutição(4,12,28). Um estudo realizado com pacintes não neurológicos verificou que indivíduos submetidos à intubação orotraqueal prolongada apresentaram alteração em ausculta cervical e presença de tosse após teste de deglutição de água(13). O maior tempo de intubação (principalmente acima de 72 horas) em indivíduos com TCE relacionou-se com a falha na avaliação de deglutição beira-leito(29). A presença de traqueostomia e ventilação mecânica maior que duas semanas, em indivíduos com TCE, estão relacionadas com pior desempenho da deglutição. Esses dois fatores podem estar relacionados à maior gravidade do TCE e ao pior desempenho na deglutição(28).
Para uma população com AVC, foi observado que fatores como disfonia, disartria, tosse e mudança na qualidade vocal após deglutição estão relacionados à disfagia orofaríngea grave(30). Entretanto, de acordo com a literatura, para indivíduos com TCE grave, esses fatores não estão relacionados à retirada da via alternativa de alimentação(4). Em termos fonoaudiológicos, os fatores preditores da disfagia observados em indivíduos com TCE foram tosse, alteração na qualidade vocal após deglutição e alteração do reflexo de GAG(11). De acordo com a literatura(27,28), as principais alterações da deglutição encontradas no indivíduo com TCE são os distúrbios na fase oral e/ou faríngea, caracterizados pelo prejuízo no controle do bolo, redução do controle e movimento de língua, redução da elevação e fechamento laríngeo, atraso do reflexo de deglutição e presença de tosse e/ou voz molhada após a deglutição.
No presente estudo, o escape extraoral, a presença de alteração em ausculta cervical e a presença de tosse após a deglutição em teste de água apareceram como preditores de disfagia, sendo que a tosse foi o item que mais se correlacionou com a funcionalidade da deglutição. Pesquisas anteriores também sugerem que a tosse e o prejuízo no controle do bolo alimentar são as principais alterações da deglutição encontradas no indivíduo com TCE e disfagia(10,11). A tosse e a deglutição são comportamentos de proteção das vias aéreas (fase faríngea da deglutição), previnindo a aspiração de saliva e alimento. A coordenação desses comportamentos é vital para proteger as vias aéreas de eventos que promovam a aspiração (10,11).
Com relação à funcionalidade da deglutição, a reabilitação fonoaudiológica mostrou-se eficiente para os indivíduos que apresentaram melhor nível funcional da deglutição no encerramento do seguimento fonoaudiológico. Este padrão de progressão favorável da funcionalidade da deglutição durante a internação é similar aos resultados encontrados na literatura, indicando que de 75% a 94% dos indivíduos com TCE recuperaram a habilidade de ingesta por via oral(10). Deve-se levar em consideração que no hospital em que foi realizada a coleta de dados deste trabalho, por se tratar de um serviço terciário, nem sempre a estabilidade clínica está relacionada à reabilitação completa da deglutição. Sendo assim, o indivíduo pode receber alta hospitalar, com resolução do quadro clínico, e ainda necessitar de intervenção fonoaudiológica. Nesse estudo, apenas 46% dos indivíduos receberam alta fonoaudiológica, os demais foram encaminhados para centros de reabilitação para o seguimento fonoaudiológico. Este fator deve ser considerado como uma das limitações do presente estudo.
Considerando o número de sessões fonoaudiólogicas até retorno da dieta por via oral, os resultados do presente estudo indicam que foram necessárias mais sessões (2,7 dias em média) para os indivíduos com pior funcionalidade da deglutição. Na literatura, não foram encontradas referências que abordem o tempo necessário para reintrodução de dieta por via oral. Hansen et al.(9) verificaram que em no máximo 126 dias todos os indivíduos com TCE retornaram à via oral de alimentação, sem restrições de consistência, sendo que, após 56 dias, mais de 50% dos indivíduos já estavam com dieta por via oral. Já para Bremare et al.(30), 63,6% dos indivíduos retomaram à alimentação por via oral em uma média de 44 dias e apenas um dos indivíduos (9,1%) recuperou a alimentação por via oral na sua totalidade, em uma média de 62 dias. Cabe ressaltar que, para todos os estudos, a evolução da dieta estava relacionada com a gravidade do TCE, com os aspectos cognitivos e com o resultado inicial na escala funcional de deglutição(9,30). Ainda de acordo com a literatura(30), o principal fator preditivo positivo para o retorno da alimentação por via oral é o tempo de permanência média na UTI, havendo 80% de probabilidade de recuperação da alimentação oral quando a permanência é menor que 7 dias e 56% de recuração quando a permanência é menor que 24 dias. Ao estabelecer os parâmetros clínicos que podem prever aspectos relacionados à melhora da deglutição, durante a internação hospitalar, é possível auxiliar no gerenciamento e planejamento da reabilitação (26), assim como no delineamento de estudos que mostrem a eficácia da terapia fonoaudiológica(9).
Para finalizar, é importante ressaltar algumas limitações do presente estudo. Foram excluídos os indivíduos que não apresentaram deglutição de saliva na avaliação preliminar fonoaudiológica e os indivíduos em uso de traqueostomia, pois foi considerado que estes diferiram dos demais indivíduos não traqueostomizados da amostra, em relação aos procedimentos de avaliação e gravidade clínica. A inclusão controlada destes indivíduos em estudos futuros poderá auxiliar no melhor delineamento da reabilitação fonoaudiológica na população de TCE. Para este estudo, foi considerado o escore na ECG no momento da avaliação fonoaudiológica. Por esse motivo, ao observar a gravidade do TCE dos pacientes incluídos neste estudo, a maioria foi classificada como leve. Estudos futuros deverão incluir a análise do escore na ECG obtido no início da admissão hospitalar. Outra consideração, é que seria importante a associação da avaliação objetiva da deglutição dos índivíduos com a aplicação das escalas de funcionalidade da deglutição. A videofluoroscopia da deglutição (VDF) é considerada o “padrão ouro” para a avaliação da penetração/aspiração broncopulmonar. No presente estudo, não foi possível realizar a VDF dos indivíduos, devido a limitações do quadro clínico, deslocamento, posicionamento, alto custo, entre outros. Por fim, a amostra de pacientes incluída no estudo foi de uma única instituição e, portanto, os resultados não devem ser generalizados, uma vez que são decorrentes dos procedimentos específicos adotados nessa instituição. Seria interessante que os resultados pudessem ser comparados aos resultados de outros centros de tratamento de pacientes com traumatismo cranioencefálico.
O presente estudo realizou a caracterização dos aspectos funcionais da deglutição na população com TCE. O escore SOFA na admissão, o escore na ECG e o tempo de IOT foram indicadores do prognóstico da funcionalidade da deglutição. Em relação aos indicadores de deglutição, a tosse e o escape extraoral foram preditores clínicos de disfagia, nesta população. A intervenção fonoaudiológica impactou positivamente a funcionalidade da deglutição.