versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.3 São Paulo jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140053
A doença renal crônica (DRC) é uma doença silenciosa. Pacientes com DRC podem descobrir sua condição somente em estágios avançados, quando se torna necessária terapia renal substitutiva. Triagem da função renal, especialmente em grupos de risco para desenvolver doença renal terminal (DRT), é recomendada para diagnosticar doença renal crônica em seus estágios iniciais. Para tal, a melhor abordagem é, indubitavelmente, estabelecer uma estreita relação entre os prestadores de cuidados primários para que a disfunção renal seja diagnosticada e os pacientes encaminhados ao nefrologista.1 Pacientes nos estágios iniciais da DRC (estádios de 0 a 3) podem ser tratadas por não-especialistas. Contudo, indivíduos nos estágios 4 e 5 requerem apoio necrológico especializado. O estágio 4 é crítico por conta de dois aspectos: o tratamento para impedir que o paciente avance para o estágio 5 e a preparação do mesmo para terapia renal substitutiva - fístula para os candidatos a HD ou transplante quando indicado.
Em todo o mundo, a maioria dos pacientes com DRT é tratada com HD convencional, o que significa ser tratado fora de casa, em unidades de diálise. A HD convencional consiste de três sessões por semana, cada sessão com duração de quatro horas. Em regiões desenvolvidas, geralmente há centros de diálise em número suficiente para que os pacientes não precisem se deslocar por longas distâncias em busca de atendimento. Este não é o caso de regiões menos desenvolvidas. Por exemplo, na maioria das grandes cidades brasileiras os centros de diálise estão próximos das residências dos pacientes. No entanto, em regiões mais carentes de nosso país, principalmente no Norte e Nordeste, as cidades menores estão distantes dos poucos centros de diálise disponíveis, o que faz com que os pacientes precisem viajar longas distâncias em busca de atendimento.2
No norte do estado do Ceará há apenas um único centro de diálise, localizado em Sobral, atendendo a uma população de 1.800.000 habitantes. Esta população está espalhada por vários pequenos municípios localizados num raio de 250 quilômetros de Sobral. Apenas 20% dos pacientes submetidos a HD neste centro residem em Sobral. Os demais pacientes residem longe dali e alguns levam horas para chegar à unidade renal. Já estudamos os efeitos da distância sobre os desfechos auto-percebidos entre pacientes prevalentes,3 mas não abordamos ainda o impacto sobre o perfil dos pacientes no início do tratamento dialítico, os chamados pacientes incidentes. Muitas das características de pacientes incidentes podem influenciar os desfechos, particularmente mortalidade durante o primeiro ano de tratamento. O tipo de acesso vascular inicial, assistência anterior por um nefrologista e consciência do que significa ser um portador de DRC são variáveis que influenciam a morbidade e mortalidade.4,5
Por estes motivos, tencionamos comparar as características clínicas (tipo de acesso vascular, consciência de ser um portador de DRC, consulta com nefrologista antes da primeira sessão de HD) e os resultados laboratoriais dos pacientes iniciando HD de acordo com a distância entre sua cidade de origem e o centro de diálise.
Foram incluídos pacientes com DRT submetidos a HD em junho de 2012, no único centro de diálise no norte do estado do Ceará, nordeste do Brasil, atendendo a uma população de 1.800.000 habitantes. Esta população está espalhada por vários pequenos municípios localizados num raio de 250 quilômetros de Sobral. Todos os 179 pacientes foram submetidos a HD convencional com dialisadores de polissulfona, três vezes por semana, em sessões com duração de quatro horas. O protocolo de pesquisa e o termo de consentimento foram aprovados pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Acaraú, o único comitê de ética de nossa região.
Os dados foram obtidos a partir dos prontuários das unidades de diálise. Ao início das sessões de HD, formulários são preenchidos de rotina com os seguintes dados: situação sócio-econômica segundo os critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa6 (os critérios incluem nível educacional do chefe da família e a posse de aparelhos eletrodomésticos, classificando status sócio-econômico em cinco grupos, de A [mais elevado] a E [mais baixo]); doença renal subjacente (por critérios clínicos ao invés de histopatologia); consciência sobre a condição de portador de DRC antes da primeira sessão de HD (sim/não); e tipo de acesso vascular ao início da HD (fístula ou catéter). Todos os catéteres eram não-tunelizados. Todas as fístulas arteriovenosas (FAV) eram fístulas nativas. Os resultados laboratoriais tiveram origem nas amostras colhidas imediatamente antes da primeira sessão de HD, incluindo creatinina, albumina, hemoglobina, cálcio e fósforo. Os valores laboratoriais foram considerados como dados de linha basal. A distância entre cidade natal dos pacientes e a unidade de diálise foi baseada no banco de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e refere-se às distâncias mais curtas entre as cidades e não à distância linear entre as mesmas.7 Classificamos os pacientes em grupos cuja cidade de origem era Sobral (cidade onde o centro de diálise está localizado) ou cidades distantes até 100 quilômetros de Sobral como "residência próxima ao centro de diálise" e os demais como "residência distante do centro da diálise".
Comparações de variáveis contínuas e categóricas foram realizadas utilizando o teste t de Student e o teste do qui-quadrado, respectivamente. Significância estatística foi considerada quando p < 0,05.
Os pacientes eram predominantemente do sexo masculino (62,5%), com idade média de 48,0 ± 16,8 anos. Glomerulonefrite (39,1%) e hipertensão (30,2%) foram as principais causas de DRT, seguidas de diabetes (14,5%), rins policísticos (5,0%), outros (5,6%) e causa indeterminada (5,6%). Trinta e um (17,3%) pacientes viviam em Sobral, 59 (33,0%) em cidades até 100 quilômetros de Sobral e 89 (49,7%) em localidades a mais de 100 quilômetros de Sobral. Assim, de acordo com o nosso método, 90 (50,3%) foram classificados como "residência próxima ao centro de diálise" e 89 (49,7%) como "residência distante do centro da diálise".
Os pacientes que residiam perto do centro de diálise eram mais propensos a saber sobre sua condição de portador de DRC do que aqueles que viviam longe do centro, respectivamente 46,6% versus 28,0% (p = 0,015). Não houve diferenças em relação às demais variáveis (Tabela 1).
Tabela 1 Comparação entre pacientes com doença renal crônica que moram perto e longe da unidade de diálise no momento do início do tratamento por hemodiálise
Variável | Residência próxima ao centro de diálise | Residência distante do centro de diálise | p |
---|---|---|---|
Situação sócio-econômica* | |||
A | 0 | 0 | 0,892 |
B | 2 (2,2) | 1 (1,1) | |
C | 36 (40,0) | 32 (36,0) | |
D | 44 (48,9) | 46 (51,7) | |
E | 8 (8,9) | 10 (11,2) | |
Conhecimento prévio sobre condição de portador de DRC | 42 (46,6) | 25 (28,0) | 0,015 |
Consulta prévia com nefrologista | 50 (55,5) | 38 (42,6) | 0,116 |
Primeira hemodiálise por fístula | 27 (30,0) | 17 (19,1) | 0,128 |
Exames laboratoriais | |||
Creatinina (mg/dL) | 10,5 ± 5,1 | 11,2 ± 4,9 | 0,412 |
Hemoglobina (g/dL) | 8,1 ± 2,2 | 8,1 ± 2,2 | 0,827 |
Albumina (g/dL) | 3,9 ± 0,7 | 3,8 ± 0,7 | 0,237 |
Ca x P** (mg2/dL2) | 51,1 ± 20,5 | 52,3 ± 16,6 | 0,681 |
Dados representam médias ± DP e percentuais (entre parênteses).
*Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, A (mais elevado) e E (mais baixo).
**Produto cálcio-fósforo.
Nossa expectativa era de que a probabilidade de ter consultado um nefrologista antes de iniciar a HD seria maior para os pacientes que residiam perto do centro de diálise em comparação aos que viviam longe. Na região de nosso estudo não há nefrologistas nos municípios, com a exceção de Sobral, onde está localizado o centro de diálise. Os pacientes que consultaram um nefrologista com antecedência teriam maior probabilidade de saber sobre a DRC e provavelmente iniciariam a HD com FAV ao invés de cateterização. Nossa hipótese foi parcialmente confirmada.
Com base na diferença estatística, observamos que os pacientes que viviam perto do centro de diálise eram mais propensos a ter informações sobre DRC. Por outro lado, não houve diferença estatística em relação a consulta prévia com um nefrologista e primeira sessão de HD com fístula. No entanto, acreditamos firmemente que os profissionais clínicos devem ser cautelosos ao considerarem apenas diferenças estatísticas e não diferenças clínicas, especialmente em um estudo que abrange toda a população de pacientes de um centro de diálise e não uma amostra. Apesar da ausência de diferença estatística, a significância clínica não pode ser desprezada e será discutida abaixo.
Os efeitos benéficos da consulta prévia e de se iniciar HD com FAV são bem conhecidos. Cateterização como acesso vascular inicial está associada a maior estado de inflamação e maior mortalidade em comparação a FAV.4,8 Consulta prévia com um nefrologista foi associada a menor custo de tratamento dialítico e menor mortalidade nos primeiros 12 meses de tratamento.5,9,10 Por outro lado, faltam dados sobre os efeitos da conscientização sobre DRC antes do início da HD. Podemos apenas especular que pacientes conscientes de sua condição antes de iniciar HD sofreriam menor impacto emocional após o início do tratamento, teriam menos ocorrências de urgência durante o período anterior ao início da HD e maior probabilidade de se organizar perante questões de natureza social e familiar.
Cinquenta e cinco por cento dos pacientes que viviam perto do centro de diálise e 42% dos pacientes que moravam longe da unidade de diálise consultaram um nefrologista de antemão. Em comparação com os Estados Unidos, onde 44% dos pacientes são acompanhados por nefrologista antes de iniciar a HD,11 nosso resultado é emblemático (apesar da falta de significância estatística): a porcentagem de pacientes que vive perto e que tinha consultado um nefrologista é superior a 44% e a porcentagem de pacientes que mora longe e que havia consultado um nefrologista é menor do que 44%. O mesmo é verdade no tocante à utilização de FAV na primeira sessão de HD, caso em que a diferença entre 30% dos pacientes que vivem perto e 19% dos pacientes que moram longe do centro de diálise não pode ser desprezada.
O baixo nível de hemoglobina nos pacientes com DRC ao início da HD é alarmante. Tal nível era o mesmo entre os dois grupos. Infelizmente, não dispomos de dados sobre o tempo entre a consulta com um nefrologista e o tempo pelo qual o paciente estava em HD. Um curto período de tempo entre a consulta e o início do HD poderia explicar a ausência de diferença.
Em muitos casos a diálise peritoneal pode ser uma alternativa à HD para os pacientes que vivem longe do centro da diálise. Contudo, nosso programa de diálise peritoneal é limitado e atende poucos pacientes. Experiências anteriores negativas impedem a expansão da diálise peritoneal. À época foram observadas altas taxas de falha técnica, casos de peritonite, falta de apoio familiar e más condições nas moradias dos pacientes.
Enquanto estudo exploratório, a principal limitação da presente pesquisa é o seu desenho retrospectivo, que impossibilita o uso de dados sobre a conscientização sobre DRC nos resultados de forma prospectiva. Nosso estudo foi baseado em dados de linha basal, e não em desfechos. Além disso, não sabemos se FAV havia sido feita nos pacientes que iniciaram a HD com cateterização. Seria útil conhecer o período de tempo entre a consulta com o nefrologista e a primeira sessão de HD, uma vez que a consulta precoce surtiria maior efeito sobre a utilização da FAV em comparação à consulta mais tardia. Encaminhamento tardio ou obstáculos ao encaminhamento a um nefrologista entre os pacientes que vivem longe do centro da diálise são hipóteses atraentes, porém não podem ser comprovadas sem os dados de prontuário da atenção primária.
Em conclusão, nosso resultado mostra que os pacientes que vivem perto do centro de diálise são mais conscientes de sua condição de portadores de DRC do que os pacientes que moram longe. Embora a diferença não seja estatisticamente significativa, os profissionais da saúde não devem desconsiderar a importância clínica do encaminhamento a um nefrologista e de se iniciar a HD com FAV observada entre os pacientes que vivem perto do centro de diálise. O estudo nos leva a refletir sobre o papel fundamental das relações entre a atenção primária e atenção clínica especializada, uma vez que os principais desfechos entre os pacientes incidentes em HD dependem do tratamento previsto antes do início da HD de manutenção.