versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2018 Epub 21-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180021
A presença de isquemia miocárdica é um dos fatores prognósticos importantes na doença arterial coronariana (DAC) e na tomada de decisão sobre o melhor tratamento a ser instituído. A combinação da anatomia coronária com a informação do significado hemodinâmico da lesão obstrutiva é fundamental para definir a estratégia de tratamento a ser realizada nos pacientes com DAC.
A medida da reserva de fluxo fracionada (RFF) é uma ferramenta valiosa para avaliar a gravidade funcional de uma estenose coronariana, identificando-se alterações na resistência ao fluxo coronariano. A RFF pode ser obtida no laboratório de hemodinâmica e pode ser realizada em conjunto com a angiografia. Define-se RFF como o fluxo sanguíneo máximo para o miocárdio na presença de uma determinada estenose, dividido por este fluxo, se não houvesse esta estenose. A RFF pode ser determinada dividindo-se a pressão média distal à lesão coronariana pela pressão média em aorta, durante a vasodilatação máxima induzida por adenosina. Considera-se que a RFF apresenta valor normal de 1, e que valores menores que 0,8 são indicativos de isquemia miocárdica. Estudos demonstram que vasos coronarianos que apresentam RFF ≥ 0,8 podem ser tratados clinicamente, com taxas de eventos cardiovasculares semelhantes às de pacientes com testes não invasivos normais (< 1% ao ano). Pacientes com RFF ≤ 0,8 poderiam se beneficiar de procedimentos de revascularização percutânea ou cirúrgica.1-3
Embora a RFF tenha seu papel definido em lesões moderadas e seja pouco útil em lesões angiograficamente graves, ela ajuda na decisão sobre quando revascularizar portadores de doença multiarterial. Nestes pacientes, ela auxilia na definição da estratégia de revascularização, além de avaliar melhor sua extensão, de acordo com a avaliação funcional das estenoses em locais críticos das coronárias.4
A cintilografia de perfusão miocárdica (CPM) com imagens tomográficas tem sido validada por inúmeros estudos na avaliação do diagnóstico e do prognóstico para pacientes sob risco de eventos cardiovasculares. A repercussão funcional de lesões coronarianas consiste em um dos principais focos do método, que se baseia na avaliação do défice de perfusão em segmentos miocárdicos irrigados por artérias parcialmente ocluídas. A estratificação de risco é baseada na capacidade de identificar pacientes, de acordo com os resultados do exame. O SPECT com perfusão normal ou discretamente alterada tem excelente prognóstico, com baixo risco de mortalidade (< 1%) ao ano. O risco associado à alteração da perfusão varia de acordo com a extensão e a gravidade da isquemia. Quanto maiores os defeitos de perfusão, maior a probabilidade de eventos futuros. Naqueles com defeitos de perfusão moderados, a incidência de eventos é de 1 a 3% ao ano, sendo > 3% em pacientes com grandes defeitos de perfusão.5
Grande parte das intervenções coronarianas percutânea é realizada baseada somente em critérios angiográficos, sem evidência objetiva de isquemia miocárdica. A angiografia coronariana mostra limitações em estabelecer a gravidade funcional, porque nem sempre o grau de estenose de uma lesão correlaciona com o comprometimento funcional provocado no miocárdio.6 Assim, faz-se importante a complementação de dados anatômicos com testes funcionais capazes de orientar adequadamente a terapêutica em relação a um procedimento de revascularização miocárdica. Vários estudos têm sido realizados com a finalidade de avaliar a concordância da RFF com os métodos funcionais (CPM, ecocardiograma de estresse com dobutamina e teste ergométrico) na definição da presença de isquemia miocárdica, tendo a RFF a vantagem de ser específica para cada vaso e obstrução.7 Em pacientes multiarteriais, a CPM tende a subestimar ou superestimar a importância funcional da estenose coronária em comparação com FFR.8
O testes funcionais são realizados em uma minoria de pacientes encaminhados para angioplastia coronariana no Instituto Nacional de Cardiologia. Neste sentido, a RFF pode ser uma ferramenta útil na sala de hemodinâmica para auxiliar nas tomadas de decisão de realizar ou não uma intervenção coronariana percutânea, poupando tempo e custos ao sistema de saúde. O objetivo do presente trabalho foi comparar a análise funcional entre a RFF e a CPM em pacientes com lesões moderadas na coronariografia.
Trata-se de estudo prospectivo, observacional, com seleção de pacientes de ambos os sexos, com idade maior ou igual a 18 anos internados na enfermaria do Departamento de Doença Coronária ou encaminhados ao Serviço de Hemodinâmica do Instituto Nacional de Cardiologia, que apresentavam indicação de RFF após a análise da coronariografia por equipe multidisciplinar “Time do Coração”. O tamanho amostral de 47 pacientes foi selecionado por conveniência.
Os pacientes sem CPM prévia foram submetidos ao exame. As lesões coronarianas foram classificadas em moderadas (entre 50 e 70%) e graves (≥ 70%) de acordo com estimativa visual.
Foram incluídos pacientes com lesões moderadas e para quem existisse dúvida com relação à indicação de revascularização miocárdica. Foram excluídos pacientes portadores de oclusão crônica, com infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento e os instáveis, com doença valvar grave ou cardiomiopatias de outras causas, contraindicação ao uso de adenosina e contraindicação à realização da cintilografia (gestantes, lactantes e mulheres com suspeita de gravidez).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto Nacional de Cardiologia e todos os participantes concordaram com Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O presente estudo não possui fontes de financiamento.
Foi realizado cateterismo das coronárias com cateteres guia 6 e 7 F. Antes da angiografia, foram administrado 10.000 u de heparina endovenosa e nitroglicerina intracoronária, na dose de 0,25 a 0,5 mg. A seguir, foram feitas as medidas pressóricas nos vasos com estenoses ≥ 50% pela estimativa visual, utilizando corda guia, que tinha um sensor em sua ponta e estava posicionada no leito distal de cada coronária a ser analisada. Foi administrado adenosina endovenosa na dose de 140 mg/kg/minuto, durante 2 a 3 minutos, para induzir hiperemia máxima.
A RFF foi determinada como a razão entre a pressão média distal da coronária e a pressão média da aorta, medida pelo cateter guia durante hiperemia máxima. As estenoses com RFF < 0,8 foram consideradas positivas para isquemia.
A CPM foi realizada por meio da técnica de Tomografia Computadorizada por Emissão de Fóton Único (SPECT, acrônimo do inglês Single Photon Emission Computed Tomography), utilizando-se Tecnécio-99m sestamibi (Tc-99m MIBI) no protocolo de 2 dias em repouso e estresse com esforço ou dipiridamol. A análise das imagens foi feita de forma semiquantitativa, usando um modelo de 17 segmentos. O exame foi considerado anormal ao evidenciar um ou mais territórios isquêmicos. A porcentagem de área isquêmica não foi avaliada em todos os pacientes.
Foi realizada análise descritiva das características basais dos pacientes selecionados por meio de cálculos de medianas e interquartis. A avaliação da associação entre a presença de isquemia na CPM e RFF foi avaliada por meio do teste exato de Fisher bicaudal. Valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo. Foi utilizado o software STATA/MP, versão 14.2, da StatCorp LP para a análise dos dados.
Ao caracterizar a amostra de pacientes estudados, foram selecionados 47 indivíduos com doença coronariana estável, com mediana de idade de 65,4 anos (intervalo dos interquatis entre 58,03 e 69,59 anos). A maioria era mulheres (66%) e apresentava angina estável (82%); e 7% eram pós-infarto agudo do miocárdio.
Em relação à função de ventrículo esquerdo, somente 14% apresentavam disfunção moderada à grave. O valor da fração de ejeção pelo método de Teichholz registrou mediana foi 64,5%, e os interquatis ente 45 e 71% (Tabela 1).
Tabela 1 Características dos pacientes
Idade, anos | 65,45 (58,03-69,59) |
Sexo feminino, % | 65,96 |
Raça, % | |
Branco | 63,83 |
Pardo | 25,53 |
Negro | 10,64 |
Diagnóstico, % | |
Angina estável | 82,98 |
IAM prévio | 14,89 |
Outros | 2,13 |
HAS | 91,11 |
Dislipidemia | 91,11 |
Diabetes melito | 42,22 |
Tabagista | 40,00 |
Doença cerebrovascular | 8,89 |
Insuficiência renal | 4,44 |
Sedentarismo | 86,67 |
Obesidade | 13,95 |
Historia familiar | 52,27 |
FEVE < 50% | 14,28 |
FE Teichholz | 64,5 (45-71) |
Anatomia trivascular ou TCE | 38,80 |
IAM: infarto agudo do miocárdio; HAS: hipertensão arterial sistêmica; FE: fração de ejeção; VE: ventrículo esquerdo; TCE: tronco de coronária esquerda.
A avaliação do estresse pela CPM foi feita 68% com dipiridamol e em 32% com esforço. O intervalo entre a realização da CPM e a RFF foi de 24,5 dias, entre janeiro de 2013 e outubro de 2015.
Na amostra analisada dos pacientes, 38,8% eram trivasculares ou com lesão de tronco. O RFF foi realizado nos seguintes territórios: um tronco da coronária esquerda, 37 artérias descendentes anteriores (ADA), 12 circunflexas e 4 coronárias direitas.
Na análise comparativas dos resultados da CPM e RFF, 83% dos pacientes com RFF positiva também possuíam CPM positiva, porém com o valor de p não significativo (0,058) e 53,57% dos pacientes com CPM positiva apresentavam RFF negativa (Figura 1).
Ao discriminar a avaliação do território da ADA, 83% dos paciente com RFF negativa também apresentavam CPM negativa, mas, naqueles que obtiveram resultados positivos da RFF, a CPM foi negativa em 69% - ambos os resultados apresentaram valor de p não significativo (0,413) (Figura 2).
Na avaliação de isquemia, a concordância entre a CPM e a FFR é fraca.8,9 No presente trabalho, observamos a não concordância entre os métodos, apesar de 83% dos pacientes com RFF positiva apresentarem CPM positiva; o valor de p foi não significativo.
Tal discordância torna-se mais evidente em pacientes com doença multivascular, pois a CPM tende a subestimar a importância funcional das lesões.8 A RFF reflete o gradiente de pressão em um único vaso; por outro lado, a CM faz a comparação da severidade funcional da estenose entre os vasos. O defeito de perfusão na CPM é definido por meio da comparação com a região de maior perfusão, assumindo que esta região seja normal, mas, muitas vezes, também é uma região alterada - ainda que menos afetada.10 Na amostra estudada, 38,8% dos pacientes possuíam doença em tronco de coronária esquerda ou trivascular, o que pode ter contribuindo para discordância entre os resultados.
Outro fator a ser considerado na análise de concordância é a presença de doença microvascular, que influencia na avaliação da RFF,10 porém outras avaliações invasivas podem ser realizadas, para melhor quantificar a doença microvascular. A reserva de fluxo coronário (RFC) e o índice de microrresistência circulatório (IRC) melhoram a estratificação de risco em paciente com RFF negativa, sendo um fator prognóstico independente.11-13 A RFC representa a capacidade de vasodilatação do leito vascular coronariano durante hiperemia, sendo medido por indicadores de termodiluição. Um valor baixo de CRF (≤ 2) indica disfunção microvascular. Adicionalmente, o índice de resistência microvascular também fornece dados sobre a função microvascular, sendo medido por meio da pressão coronariana distal multiplicada pelo tempo de trânsito médio de 3 mL de bólus de salina durante hiperemia induzida pela adenosina, sendo menor que 20 o valor normal e maior que 30 se alterado.11-13 Na amostra total, a RFF era negativa em 53,57% dos pacientes que apresentavam CPM positiva, resultado que pode ser explicado pela presença de doença microvacular, sendo sua confirmação feita pelos métodos discutidos acima.
Na análise específica da ADA, também não observamos concordância significativa, mas 83% dos pacientes com cintilografia negativa também apresentaram RRF negativa.
Não foram obtidos dados significantes de concordância ou discordância em nossa amostra, possivelmente por conta do número de pacientes estudados, sendo necessária uma amostra maior.
Pode ocorrer discordância entre os resultados de análise funcional de lesões coronárias moderadas por testes invasivos e não invasivos. Este fato pode ter consequências importantes no uso da cintilografia para determinar a estratégia de revascularizacao ótima, principalmente em pacientes multivasculares. Assim, a reserva de fluxo fracionada mostra-se boa aliada à coronariografia, principalmente em pacientes com lesões multivasculares, uma vez que a estratificação anatômica e funcional pode ser obtida em um único procedimento. Tratando-se de pacientes com doença microvascular, a reserva de fluxo fracionada não é definida com estratégia ideal na avaliação de isquemia.