versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.46 no.2 São Paulo 2020 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20180198
A tuberculose é reconhecida como um problema global de saúde pública, cujo controle tem sido um desafio nas últimas décadas.1) Em 2015, o Brasil atingiu as metas dos objetivos do milênio ao diminuir a incidência e a mortalidade da tuberculose. Entre os países do chamado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o Brasil possui o menor coeficiente de incidência da doença, porém a prevalência mantém-se estável.2 Assim, ainda existem grandes obstáculos para que o Brasil consiga controlar a tuberculose, como as dificuldades na investigação dos contatos, no diagnóstico precoce e na adoção do tratamento antituberculose na atenção primária.2
O atraso no diagnóstico e a baixa efetividade do tratamento antituberculose podem ser decorrentes de variáveis socioculturais associadas ao paciente, ao médico e à organização do sistema de saúde, contribuindo para uma maior disseminação da doença e um maior risco de progressão das lesões pulmonares.3-5
Um dos aspectos pouco abordados na literatura refere-se ao impacto clínico e social, resultante das sequelas pulmonares, entre pacientes que terminaram o esquema terapêutico. A tuberculose pulmonar (TBP) pode levar à obstrução crônica ao fluxo aéreo, dependendo do grau de distorção anatômica presente, e à restrição ventilatória por fibrose cicatricial associada à redução da CPT. Maiores danos pulmonares, relacionados com incapacidade e prejuízo da qualidade de vida, têm sido associados com o retardo no diagnóstico da tuberculose, quantidade de tratamentos anteriores, tabagismo, desnutrição e riqueza bacilar no início do tratamento antituberculose.6-10
As alterações funcionais decorrentes da TBP observadas após o tratamento se apresentam como distúrbio ventilatório restritivo (DVR), distúrbio ventilatório obstrutivo (DVO) ou distúrbio ventilatório misto (DVM), ou seja, distúrbio obstrutivo e restritivo, independentemente da história de exposição a cigarros.11 A alteração descrita mais frequentemente tem sido o DVO.6,7,12 Estima-se que a prevalência de DVO após o tratamento de TBP varia de 15% a 77% dos pacientes.10,12 O DVM é o segundo mais prevalente (9-34%).9,12 No Brasil, o DVM foi o mais frequente em um centro (34%).11 Já o DVO foi observado em 33% dos pacientes avaliados por Di Naso et al.13 e em 49% daqueles avaliados por Nihues et al.14 Em outro centro, o DVR foi o mais prevalente (41%).15
No Brasil, além de haver poucos relatos sobre a proporção de pacientes com alterações radiológicas e funcionais após o tratamento da TBP, nesses estudos9-15 não foram excluídos os pacientes que apresentavam alguma doença pulmonar prévia ou história de tabagismo antes do tratamento da TBP. Assim, destacando-se a prevalência da TBP no Brasil, torna-se relevante o conhecimento da magnitude das alterações na espirometria dessa população.
O presente estudo teve como objetivo comparar os resultados da espirometria em pacientes tratados para TBP em quatro centros de referência no Brasil, diferenciando aqueles com doença pulmonar prévia ou com história de tabagismo daqueles sem doença pulmonar prévia e sem tabagismo, assim como analisar os fatores de risco relacionados à gravidade funcional naqueles pacientes sem doença pulmonar prévia.
Trata-se de um estudo transversal, multicêntrico, com amostra selecionada de forma não probabilística e intencional. A população do estudo foi composta por 418 pacientes recrutados no período entre 2014 e 2015 nos seguintes centros de referência: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (referência terciária), na cidade de Belo Horizonte (MG); Instituto Brasileiro para Investigação da Tuberculose (referência secundária), em Salvador (BA); Programa Municipal de Controle da Tuberculose em Dourados (referência secundária), em Dourados (MS); e Complexo Hospitalar do Instituto de Doenças do Tórax do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (referência terciária), no Rio de Janeiro (RJ).
Os critérios de inclusão foram pacientes ≥ 18 anos atendidos em um dos quatro centros de referência, tratados para TBP (único tratamento), confirmada por baciloscopia e/ou cultura para micobactérias, e que evoluíram para cura e realizaram espirometria. Foram excluídos os pacientes cujas espirometrias não preencheram os critérios de aceitabilidade e reprodutibilidade das diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT)16 ou que apresentaram alguma condição que impossibilitou ou representou uma contraindicação à realização do exame, como presença de hemoptise, alteração do nível de consciência, infarto agudo do miocárdio ou acidente vascular isquêmico nos últimos 3 meses, hipertensão arterial sistêmica não controlada e aneurisma de aorta.
Os pacientes com desfecho de cura da TBP foram convidados a participar do estudo. Os incluídos responderam a um questionário padronizado pelo qual foram obtidas informações sobre dados sociodemográficos e clínicos, como sexo, idade, tabagismo, etilismo e comorbidades. Também foi avaliado o tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico de TBP. Considerou-se tabagista o indivíduo que fumou pelo menos 100 cigarros ou equivalente na vida, e ex-tabagista aquele cujo hábito de fumar havia sido interrompido há mais de 12 meses.17 Na classificação do etilismo foi utilizado o questionário Cut down, Annoyed, Guilty, and Eye-opener, conhecido pelo acrônimo CAGE.18
As características sociodemográficas e clínicas foram classificadas em: cor (brancos ou não brancos); estado civil (casado/com companheiro estável ou outros: viúvo, separado/divorciado e solteiro); escolaridade (até ensino fundamental completo ou ensino médio/superior); e comorbidades autorreferidas. O diagnóstico de doenças pulmonares (asma, DPOC, bronquiectasia, doença pulmonar intersticial e silicose) anteriores ao tratamento para TBP foi revisto pelos pneumologistas envolvidos no presente estudo seguindo as definições propostas por diretrizes internacionais da Global Initiative for Asthma e da Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease, assim como por uma referência nacional.19-21
Em relação aos sinais e sintomas, foi avaliada a presença de dispneia, classificada de acordo com a escala modified Medical Research Council (mMRC),22 tosse, escarro e sibilância. Esses dados foram obtidos no dia da espirometria.
Os pacientes foram divididos em dois grupos: com doença pulmonar prévia e/ou história de tabagismo atual ou passado antes do tratamento para TBP (grupo DPT+); e sem doença pulmonar prévia e sem história de tabagismo (grupo DPT−). A avaliação espirométrica foi realizada, pelo menos, 6 meses após a cura da TBP.
Na espirometria utilizou-se um espirômetro da marca Koko (Pulmonary Data Service Inc., Louisville, CO, EUA). A realização e a interpretação dos testes seguiram as recomendações das diretrizes da SBPT.16 Os valores encontrados nos testes pós-broncodilatador foram comparados com aqueles pré-broncodilatador e expressos como valores absolutos e proporções em relação aos valores previstos, de acordo com Knudson et al.23 para pacientes do sexo feminino e masculino abaixo de 20 e 25 anos, respectivamente, e de acordo com Pereira et al.24 para aqueles acima dessa faixa etária. Os técnicos que realizaram os exames eram certificados pela SBPT. Na interpretação da espirometria foram definidos os seguintes padrões: espirometria normal; DVO; DVO com CV(F) reduzida e DVR. A gravidade da obstrução foi classificada pelo VEF1 e relação VEF1/CVF, em % do valor predito, da seguinte forma16: obstrução leve ≥ 60%; obstrução moderada, 41-59%; e obstrução acentuada, ≤ 40%. No caso da gravidade da restrição, foi utilizada a CV(F), em % do valor predito: restrição leve ≥ 60%; restrição moderada, 51-59%; e restrição acentuada, ≤ 50%.16
As radiografias de tórax foram realizadas em datas próximas às das espirometrias, avaliadas por radiologistas e classificadas por pneumologistas. As radiografias de tórax sem alterações foram classificadas como normais. Para as demais, utilizou-se a classificação do National Tuberculosis Association (NTA)25: NTA-I ou mínima; NTA-II ou moderadamente avançada (pode haver lesões em um ou em ambos os pulmões, sua extensão não deve exceder o volume correspondente a todo um pulmão se as lesões não são confluentes e, na presença de lesões confluentes, essas não devem ocupar mais do que o equivalente a um terço do pulmão); e NTA-III ou muito avançada (aquela que ultrapassa o limite da NTA-II).
As variáveis foram digitadas em um banco de dados desenvolvido no programa Excel e analisadas por meio do pacote estatístico IBM SPSS Statistics, versão 22.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA). A avaliação da distribuição das variáveis foi realizada por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov. As variáveis contínuas foram expressas como médias e desvios-padrão ou medianas e intervalos interquartil, enquanto as variáveis categóricas foram expressas como frequências absolutas e relativas. A comparação das características clínicas, demográficas, radiológicas e funcionais entre os pacientes dos dois grupos foi realizada por meio dos testes do qui-quadrado e t de Student, quando indicados. Para a análise da classificação espirométrica do grupo DPT−, em relação às características clínicas, demográficas e radiológicas, utilizou-se o teste do qui-quadrado de Pearson, e os resultados da espirometria foram agrupados em espirometria normal ou distúrbio leve e distúrbio moderado ou acentuado. Foram considerados significativos os valores de p < 0,05.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE: 14606113.7.0000.5149). Todos os pacientes participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
Dos 418 pacientes da amostra, 40 (10,5%) foram excluídos por não apresentarem critérios espirométricos de aceitabilidade e reprodutibilidade. Não houve diferenças clínicas, demográficas e radiológicas entre esses pacientes e os que foram incluídos no estudo. Dessa forma, 378 pacientes foram incluídos, sendo 174 (46%) no grupo DPT+ e 204 (54%) no grupo DPT−. As características desses pacientes estão descritas na Tabela 1. Comparando os dois grupos, observou-se que o sexo masculino, idade > 49 anos, escolaridade até o ensino fundamental completo, presença de comorbidades (hipertensão arterial sistêmica, cardiopatia e diabetes mellitus), etilismo e sintomas respiratórios foram significativamente maiores no grupo DPT+ (Tabela 1).
Tabela 1 Características clínicas, demográficas e radiológicas dos pacientes tratados para tuberculose pulmonar (N = 378) com doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (grupo DPT+) e sem doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (grupo DPT−); 2014-2015.
Características | Grupo DPT+ | Grupo DPT− | p | ||
---|---|---|---|---|---|
(n = 174) | (n = 204) | ||||
n | % | n | % | ||
Sexo | < 0,01 | ||||
Masculino | 115 | 66,1 | 82 | 40,2 | |
Feminino | 59 | 33,9 | 122 | 59,8 | |
Idade, anos | < 0,01 | ||||
18-29 | 15 | 8,6 | 54 | 26,5 | |
30-49 | 56 | 32,2 | 89 | 43,6 | |
> 49 | 103 | 59,2 | 61 | 29,9 | |
Cor | 0,60 | ||||
Branca | 32 | 18,4 | 33 | 16,3 | |
Não branca | 142 | 81,6 | 169 | 83,7 | |
Estado civila | 0,05 | ||||
Casado | 106 | 61,3 | 100 | 51,0 | |
Outros | 67 | 38,7 | 96 | 49,0 | |
Escolaridade | < 0,01 | ||||
Até o fundamental completo | 105 | 80,8 | 96 | 60,0 | |
Ensino médio ou superior | 25 | 19,2 | 64 | 40,0 | |
HIV/AIDS | 0,30 | ||||
Sim | 8 | 6,0 | 5 | 3,3 | |
Não | 126 | 94,0 | 145 | 96,7 | |
Hipertensão arterial sistêmica | < 0,01 | ||||
Sim | 57 | 33,3 | 34 | 16,7 | |
Não | 114 | 66,7 | 170 | 83,3 | |
Cardiopatia | < 0,01 | ||||
Sim | 13 | 7,5 | 3 | 1,5 | |
Não | 161 | 92,5 | 201 | 98,5 | |
Diabetes mellitus | 0,03 | ||||
Sim | 25 | 14,6 | 15 | 7,6 | |
Não | 146 | 85,4 | 182 | 92,4 | |
Doença renal crônica | 0,88 | ||||
Sim | 10 | 5,7 | 11 | 5,4 | |
Não | 164 | 94,3 | 193 | 94,6 | |
Câncer | 0,12 | ||||
Sim | 7 | 4,0 | 3 | 1,5 | |
Não | 167 | 96,0 | 201 | 98,5 | |
Tabagismo | < 0,01 | ||||
Não | 25 | 14,4 | 204 | 100 | |
Tabagista | 71 | 40,8 | |||
Ex-tabagista | 78 | 44,8 | |||
Etilismo | < 0,01 | ||||
Sim | 63 | 36,8 | 36 | 18,4 | |
Não | 108 | 63,2 | 160 | 81,6 | |
Dispneia, mMRC | < 0,01 | ||||
0-1 | 142 | 84,0 | 181 | 93,3 | |
2-4 | 27 | 16,0 | 13 | 6,7 | |
Tosse | < 0,01 | ||||
Sim | 92 | 52,9 | 50 | 25,5 | |
Não | 82 | 47,1 | 146 | 74,5 | |
Expectoração | < 0,01 | ||||
Sim | 68 | 39,1 | 32 | 16,3 | |
Não | 106 | 60,9 | 164 | 83,7 | |
Sibilância | < 0,01 | ||||
Sim | 40 | 23,1 | 10 | 5,1 | |
Não | 133 | 76,9 | 186 | 94,9 | |
Radiografia de tórax | < 0,01 | ||||
Normal/NTA-I | 87 | 55,4 | 140 | 79,1 | |
NTA-II/III | 70 | 44,6 | 87 | 20,9 | |
Tempo de doença até diagnóstico | 0,59 | ||||
< 30 dias | 24 | 20,9 | 37 | 23,6 | |
≥ 30 dias | 91 | 79,1 | 120 | 76,4 |
mMRC: escala modified Medical Research Council; e NTA: classificação da National Tuberculosis Association.25) aCasado ou com companheiro estável; e outros: viúvo, separado/divorciado ou solteiro.
Em relação à classificação radiológica, os pacientes do grupo DPT− apresentaram maior frequência de radiografias de tórax normais ou NTA-I quando comparados aos pacientes do grupo DPT+ (p < 0,01; Tabela 1). No grupo DPT− foram significativamente maiores, antes e após o uso de broncodilatador, os valores absolutos e em % do predito para VEF1, FEF25-75%, VEF1/CVF e FEF25-75%/CVF, em comparação ao grupo DPT+ (Tabela 2).
Tabela 2 Variáveis espirométricas dos pacientes tratados para tuberculose pulmonar (N = 378) com doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (grupo DPT+) e sem doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (grupo DPT−); 2014-2015.a
Variáveis | Grupo DPT+ | Grupo DPT− | p* |
---|---|---|---|
(n = 174) | (n = 204) | ||
CI, L | 2,29 ± 0,82 | 2,40 ± 0,68 | < 0,01 |
CI, % do previsto | 78,8 ± 23,9 | 82,5 ± 16,3 | |
CI pós-BD, L | 2,44 ± 0,83 | 2,43 ± 0,60 | 0,04 |
CV, L | 3,35 ± 1,05 | 3,37 ± 0,91 | 0,01 |
CV, % do previsto | 83,9 ± 20,6 | 84,9 ± 1,5 | |
CV pós-BD, L | 3,50 ± 0,97 | 3,45 ± 0,93 | < 0,01 |
CVF, L | 3,36 ± 1,13 | 3,31 ± 0,86 | 0,01 |
CVF, % do previsto | 82,9 ± 20,4 | 84,3 ± 15,1 | |
CVF pós-BD, L | 3,44 ± 1,11 | 3,34 ± 0,87 | < 0,01 |
VEF1, L | 2,39 ± 1,00 | 2,66 ± 0,74 | 0,01 |
VEF1, % do previsto | 72,2 ± 24,2 | 82,2 ± 17,5 | |
VEF1 pós-BD, L | 2,54 ± 1,03 | 2,74 ± 0,75 | 0,01 |
FEF25-75%, L/s | 1,92 ± 1,28 | 2,69 ± 1,18 | < 0,01 |
FEF25-75%, % do previsto | 58,3 ± 35,3 | 80,5 ± 34,2 | |
FEF25-75% pós-BD, L/s | 2,21 ± 1,40 | 2,95 ± 1,22 | < 0,01 |
VEF1/CVF, % | 69,7 ± 14,2 | 80,4 ± 11,1 | < 0,01 |
VEF1/CVF, % do previsto | 86,0 ± 16,8 | 97,0 ± 12,5 | |
FEF25-75%/CVF, % | 54,8 ± 30,9 | 82,5 ± 35,2 | < 0,01 |
FEF25-75%/CVF, % do previsto | 67,8 ± 36,0 | 95,7 ± 39,8 |
CI: capacidade inspiratória; e BD: broncodilatador. aValores expressos em média ± dp. *Teste do qui-quadrado.
Dos 378 pacientes, 238 (62,7%) apresentaram alguma alteração na espirometria. A frequência de espirometria normal foi maior no grupo DPT− (p < 0,01). As alterações espirométricas mais frequentes no grupo DPT+ foram DVO (n = 58; 33,3%) e DVO com CVF reduzida (n = 49; 28,2%), enquanto, no grupo DPT−, essas foram DVR (n = 50; 24,7%) e DVO (n = 42; 20,6%; Tabela 3).
Tabela 3 Classificação da espirometria dos pacientes tratados para tuberculose pulmonar (N = 378) com doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (grupo DPT+) e sem doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (grupo DPT−); 2014-2015.a
Classificação | Grupo DPT+ | Grupo DPT− | p* | ||
---|---|---|---|---|---|
(n = 174) | (n = 204) | ||||
n | % | n | % | ||
Espirometria normal | 48 | 27,6 | 92 | 45,8 | 0,01 |
Distúrbio ventilatório obstrutivo | 58 | 33,3 | 42 | 20,6 | 0,99 |
Leve | 44 | 75,9 | 37 | 88,1 | |
Moderado | 13 | 22,4 | 4 | 9,5 | |
Acentuado | 1 | 1,7 | 1 | 2,4 | |
Distúrbio ventilatório obstrutivo com CVF reduzida | 49 | 28,2 | 18 | 8,9 | 0,03 |
Leve | 8 | 16,3 | 4 | 20,0 | |
Moderado | 17 | 34,7 | 12 | 60,0 | |
Acentuado | 24 | 49,0 | 4 | 20,0 | |
Distúrbio ventilatório restritivo | 19 | 10,9 | 50 | 24,7 | 0,54 |
Leve | 17 | 89,5 | 46 | 92,0 | |
Moderado | 0 | 0,0 | 1 | 2,0 | |
Acentuado | 2 | 10,5 | 3 | 6,0 |
aDe acordo com as recomendações das diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.16classificação da National Tuberculosis Association.25) *Teste do qui-quadrado para associação linear.
Em relação à classificação de gravidade de DVO e DVR, houve predominância dos distúrbios leves em ambos os grupos. Entre os pacientes que apresentaram DVO com CVF reduzida, o distúrbio acentuado foi mais frequente no grupo DPT+, assim como foi o distúrbio moderado no grupo DPT− (Tabela 3).
Na Tabela 4, observa-se a graduação radiológica e a classificação espirométrica dos pacientes do grupo DPT− (n = 177). Dos 140 pacientes (79,1%) do grupo DPT− com radiografia de tórax normal ou NTA-I, 76 (54,0%) apresentaram alguma alteração funcional (p < 0,01).
Tabela 4 Comparação entre os resultados da espirometria e os resultados da radiografia de tórax dos pacientes tratados para tuberculose pulmonar sem doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (n = 177); 2014-2015.
Resultados da espirometriab | Resultados da radiografia de tóraxa | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Normal | NTA-I | NTA-II | NTA-III | |||||
(n = 68) | (n = 72) | (n = 31) | (n = 6) | |||||
n | % | n | % | n | % | n | % | |
Espirometria normal | 35 | 46,7 | 29 | 38,7 | 10 | 13,3 | 1 | 1,3 |
Distúrbio ventilatório obstrutivo | 11 | 28,9 | 19 | 50,0 | 8 | 21,1 | 0 | 0,0 |
Distúrbio ventilatório restritivo | 17 | 37,0 | 18 | 39,1 | 9 | 19,6 | 2 | 4,3 |
Distúrbio ventilatório obstrutivo com CVF reduzida | 5 | 27,8 | 6 | 33,3 | 4 | 22,2 | 3 | 16,7 |
aDe acordo com a classificação da National Tuberculosis Association (NTA).25) bDe acordo com as recomendações das diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.16) Teste do qui-quadrado; p = 0,01
Na análise da classificação dos pacientes do grupo DPT−, segundo os resultados da espirometria e características clínicas, demográficas e radiológicas, observou-se que a idade > 49 anos, grau de dispneia pela escala mMRC de 2-4 e alteração radiológica NTA-II/III foram associadas com alterações funcionais moderadas e graves. Não foi observada significância entre o tempo do início dos sintomas até o diagnóstico da tuberculose e gravidade das alterações na espirometria (Tabela 5).
Tabela 5 Características clínicas, demográficas e radiológicas dos pacientes tratados para tuberculose pulmonar sem doença pulmonar prévia ou história de tabagismo (n = 204) em relação aos resultados espirométricos; 2014-2015.
Características | Espirometria normal ou distúrbio leve | Distúrbio moderado ou acentuado | p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Sexo | n | % | n | % | |
Masculino | 66 | 36,9 | 16 | 64,0 | 0,10 |
Feminino | 113 | 63,1 | 9 | 36,0 | |
Idade, anos | 0,03 | ||||
18-29 | 52 | 29,0 | 2 | 8,0 | |
30-49 | 78 | 43,6 | 11 | 44,0 | |
> 49 | 49 | 27,4 | 12 | 48,0 | |
Cor | 0,60 | ||||
Branco | 28 | 15,8 | 5 | 20,0 | |
Não branco | 149 | 84,2 | 20 | 80,0 | |
Estado civila | 0,24 | ||||
Casado | 86 | 50,0 | 14 | 58,3 | |
Outros | 86 | 50,0 | 10 | 41,7 | |
Escolaridade | 0,33 | ||||
Até o fundamental completo | 82 | 58,6 | 14 | 70,0 | |
Ensino médio ou superior | 58 | 41,4 | 6 | 30,0 | |
Etilismo | 0,90 | ||||
Sim | 32 | 18,5 | 4 | 17,4 | |
Não | 141 | 81,5 | 19 | 82,6 | |
HIV/AIDS | 0,49 | ||||
Sim | 4 | 3,0 | 1 | 6,3 | |
Não | 130 | 97,0 | 15 | 93,8 | |
Hipertensão arterial sistêmica | 0,29 | ||||
Sim | 28 | 15,6 | 6 | 24,0 | |
Não | 151 | 84,4 | 19 | 76,0 | |
Cardiopatia | 0,51 | ||||
Sim | 3 | 1,7 | 0 | ||
Não | 176 | 98,3 | 25 | ||
Diabetes mellitus | 0,34 | ||||
Sim | 12 | 6,9 | 3 | 12,5 | |
Não | 161 | 93,1 | 21 | 87,5 | |
Doença renal crônica | 0,20 | ||||
Sim | 11 | 6,1 | 0 | 0,0 | |
Não | 168 | 93,9 | 25 | 100,0 | |
Câncer | 0,26 | ||||
Sim | 2 | 1,1 | 1 | 4,0 | |
Não | 177 | 98,9 | 24 | 96,0 | |
Dispneia, mMRC | 0,03 | ||||
0-1 | 162 | 94,7 | 19 | 82,6 | |
2-4 | 9 | 5,3 | 4 | 17,4 | |
Tosse | 0,28 | ||||
Sim | 42 | 24,3 | 8 | 34,8 | |
Não | 131 | 75,7 | 15 | 65,2 | |
Expectoração | 0,18 | ||||
Sim | 26 | 15,0 | 6 | 26,1 | |
Não | 147 | 85,0 | 17 | 73,9 | |
Sibilância | 0,07 | ||||
Sim | 7 | 4,0 | 3 | 13,0 | |
Não | 166 | 96,0 | 20 | 87,0 | |
Radiografia de tórax | 0,01 | ||||
Normal/NTA-I | 128 | 82,1 | 12 | 57,1 | |
NTA-II/III | 28 | 17,9 | 9 | 42,9 | |
Tempo de doença até diagnóstico | 0,54 | ||||
< 30 dias | 34 | 24,3 | 3 | 17,7 | |
≥ 30 dias | 106 | 75,7 | 14 | 82,4 |
mMRC: escala modified Medical Research Council; e NTA: classificação do National Tuberculosis Association. aCasado ou com companheiro estável; e outros: viúvo, separado/divorciado ou solteiro.
Os principais resultados do presente estudo mostraram que, após o tratamento e cura da TBP, a maioria dos pacientes (n = 238; 62,7%) apresentou alguma alteração na espirometria. Quando os dois grupos foram comparados, observou-se que as alterações funcionais e radiológicas foram menos frequentes no grupo DPT−. Entretanto, dos 140 pacientes (79,1%) do grupo DPT− com radiografia de tórax normal ou NTA-I, 76 (54,0%) apresentaram alguma alteração funcional. Esses dados sugerem que o comprometimento da função pulmonar após a TBP é uma importante causa de doença pulmonar crônica. Os fatores de risco relacionados com a gravidade funcional nesse grupo foram: idade > 49 anos, grau de dispneia na escala mMRC de 2-4 e alteração radiológica NTA-II/III.
A investigação das alterações da função pulmonar após o término do tratamento da TBP tem sido destacada na literatura.6,7,9,11-15,26,27 Em nossos resultados, o distúrbio ventilatório mais frequente no grupo DPT− foi o DVR (24,7%). Cruz et al.15 também descreveram o DVR como a principal alteração funcional após o tratamento da TBP; porém, foram incluídos pacientes com mais de um tratamento para TBP naquele estudo.
Na literatura, a frequência de DVO relatada varia de 15% a 77%.6,7,9,12,28,29) A associação da TBP com obstrução ao fluxo aéreo pode ocorrer independentemente da presença do tabagismo,30 sugerindo que a obstrução encontrada nos pacientes do grupo DPT− pode ser secundária a suas próprias lesões de TBP. Alguns estudos de base populacional também descrevem o DVO como a alteração mais frequente; entretanto, os autores incluíram pacientes tabagistas, ex-tabagistas e com doenças pulmonares prévias,28,29 semelhante ao observado no grupo DPT+ do presente estudo.
A TBP pode comprometer a via aérea e o parênquima pulmonar levando a edema de mucosa, hipertrofia e hiperplasia das glândulas mucosas, aumento da secreção de muco, hipertrofia da camada muscular lisa e aumento da atividade das metaloproteinases. Consequentemente, pode haver alterações no calibre das vias aéreas (estenose, distorção, bronquiectasia e enfisema), aumento da resistência das vias aéreas e redução do fluxo aéreo.31) Além disso, a fibrose cicatricial pode reduzir a complacência pulmonar levando à restrição.27) Essa heterogeneidade de lesões que acometem o pulmão deve ser mais bem estudada, especialmente em relação à fisiopatologia e fenômenos inflamatórios.
As alterações funcionais podem persistir após a cura da TBP e estão relacionadas com incapacidade e piora da qualidade de vida.32,33 Lee et al.4 afirmaram que quanto mais precoce o diagnóstico e mais rápido o início do tratamento, menor é a chance de desenvolvimento de alterações funcionais importantes. Em nosso estudo, não houve associação entre o tempo entre o início dos sintomas até o diagnóstico da TBP e a gravidade das alterações na espirometria, sugerindo que a TBP pode levar ao desenvolvimento de alterações funcionais, independentemente do tempo do início do tratamento, precoce ou tardio, como também descrito por Manji et al.34
A dispneia nos pacientes do grupo DPT−, especificamente, pode ser explicada pelas lesões estruturais (NTA-II e NTA-III) que levam à obstrução ventilatória, com o acometimento das pequenas vias aéreas e bronquiectasias,10 assim como com a destruição do parênquima pulmonar. Outros estudos já haviam descrito a associação da extensão das alterações radiográficas com a alteração da função pulmonar.13,15,32,34-36 Esses estudos sugerem que quanto maior a lesão, maior dano tecidual, sendo essas sequelas refletidas na função pulmonar alterada. Entretanto, esses estudos não avaliaram a gravidade das alterações na espirometria.13,15,32,34-36 A sobreposição das doenças poderia explicar a maior frequência de sintomas no grupo DPT+ (dispneia, tosse, expectoração e sibilância).
Algumas limitações do presente estudo devem ser consideradas. A primeira limitação é relacionada ao fato de não ter sido avaliada a alteração funcional longitudinal, decorridos 24 meses do tratamento antituberculose. Essa conduta poderia fornecer resultados distintos no caso de não haver ocorrido ainda a estabilização das lesões.37 A segunda limitação deve-se à utilização da radiografia, método que pode subestimar as alterações sequelares. A TC de tórax pode fornecer informações mais acuradas sobre as alterações decorrentes das sequelas da TBP. Contudo, em um estudo recente, a TC foi discordante da radiografia em apenas 7% das avaliações em pacientes com sequelas de TBP.26 Além disso, a radiografia é um exame de baixo custo e está disponível nos centros de tratamento de tuberculose do Brasil, em contraposição ao acesso limitado à TC. A terceira limitação decorre da avaliação da função pulmonar apenas por espirometria, sem utilizar a pletismografia e DLCO. No entanto, os equipamentos necessários para os referidos testes também não estão disponíveis na maioria dos centros do Brasil. Por último, não foi investigada a relação de maior gravidade funcional em indivíduos com idade > 49 anos.
As alterações funcionais ainda são lacunas a ser estudadas, principalmente se a obstrução de vias aéreas secundária à TBP for uma entidade diferente da DPOC secundária à exposição à fumaça de cigarro ou de fogão a lenha, silicose, entre outras.38 Além disso, novos estudos podem ser desenvolvidos e direcionados para avaliar a resposta ao tratamento, como o uso de medicação inalatória específica e reabilitação pulmonar objetivando a melhora na qualidade de vida desses pacientes.
Em conclusão, o comprometimento da função pulmonar é frequente após o tratamento da TBP independentemente de haver história de tabagismo ou doença pulmonar prévia. A espirometria deve ser sugerida para esses pacientes que evoluírem com grau de dispneia na escala mMRC de 2-4 e/ou com alteração radiológica relevante após o tratamento da TBP.