versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.15 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2016 Epub 22-Mar-2016
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.003515
A aterosclerose é responsável por um terço das mortes no Brasil1, sendo a principal causa das doenças arteriais obstrutivas coronarianas, cerebrovasculares e arteriais periféricas, as quais frequentemente coexistem2. A doença cardiovascular lidera as causas de morte no mundo e é responsável por 17 milhões de mortes anualmente3. Aproximadamente 80% dos casos ocorrem em países desenvolvidos, sendo uma das consequências do envelhecimento da população3.
Estudos comprovam que aproximadamente 60% dos pacientes portadores de doença arterial periférica (DAP) apresentam também doença em território coronariano e cerebrovascular4. Por outro lado, aproximadamente 40% dos pacientes com doença coronariana (DC) ou doença cerebrovascular (DCV) têm também DAP4.
A principal causa de mortalidade nos pacientes submetidos a cirurgia vascular restauradora é o infarto agudo do miocárdio (IAM). Por esse motivo, é importante uma adequada avaliação cardiológica pré-operatória, particularmente nos portadores de DC assintomática pelo risco de apresentarem doença cardíaca ou coronariana insuspeitada5.
O objetivo deste estudo foi determinar a prevalência da DC sintomática ou assintomática em pacientes programados para serem submetidos a cirurgia vascular arterial eletiva de grande porte e sua relação com as complicações cardiológicas pós-operatórias.
Foram analisados prospectivamente 200 pacientes submetidos a cirurgia vascular arterial eletiva convencional, no período de janeiro de 2004 a agosto de 2006, no Serviço de Cirurgia Vascular Integrada do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo. Esse período foi escolhido por ainda haver número muito pequeno de procedimentos endovasculares, os quais não foram incluídos neste estudo. As doenças vasculares consideradas foram: doença obstrutiva carotídea, aortoilíaca e femoropoplítea distal e doença aneurismática de aorta abdominal (AAA) e de artérias ilíacas.
Todos os pacientes foram submetidos a rotina de avaliação básica pré-operatória, incluindo anamnese, exames laboratoriais (hemograma, coagulograma, função renal, eletrólitos, perfil lipídico, gasometria arterial, proteínas totais e frações, enzimas hepáticas, hormônios tiroidianos e glicemia), eletrocardiograma, radiografia de tórax, ecocardiograma de estresse e cintilografia do miocárdio.
Os pacientes foram agrupados da seguinte forma:
− Grupo I: sem DC.
− Grupo II: com DC assintomática, detectada na avaliação pré-operatória, através de eletrocardiograma sugestivo de área de necrose (onda Q maior ou igual a 0,03s e/ou amputação da onda R em pelo menos duas derivações), cintilografia do miocárdio, teste de esforço ou ecocardiograma de estresse.
− Grupo III: com DC sintomática, ou seja, com história de angina do peito típica, IAM, revascularização do miocárdio e/ou angioplastia coronariana prévia.
O protocolo utilizado para avaliação do risco cirúrgico foi baseado na avaliação dos preditores clínicos (maior, intermediário e menor), na capacidade funcional expressa em equivalentes metabólicos (> 4 METS e & 4 METS), analisada através de uma adaptação da escala de atividades de Duke pela American Heart Association (AHA) e pelo tipo de cirurgia, de acordo com o algoritmo da força tarefa do American College of Cardiology (ACC)/AHA6. As complicações pós-operatórias cardiológicas consideradas foram: IAM fatal e não fatal, insuficiência cardíaca congestiva, choque cardiogênico, fibrilação atrial aguda (FAA) e outras arritmias.
A análise estatística foi feita pelo teste t de Student, para a comparação entre duas médias, e pelo teste qui-quadrado ou exato de Fischer, para comparação entre duas proporções. Foi considerado significativo p & 0,05.
Dos 200 pacientes analisados, 152 (76%) pacientes eram do sexo masculino e 48 (24%) do sexo feminino. A idade média foi de 67 anos, variando de 44 a 97 anos. Os pacientes com DC eram 91 (45,5%), sendo que 28 (14%) eram assintomáticos (grupo II) e 63 (31,5%) eram sintomáticos (grupo III). Os demais 109 pacientes (54,5%) não tinham DC (grupo I).
A doença vascular predominante foi AAA e aneurisma das artérias ilíacas (31,5%), seguida, respectivamente, de DAP (28,5%), doença obstrutiva carotídea (27%) e doença obstrutiva aortoilíaca (13%). Quando comparamos os grupos (I, II e III) em relação às doenças vasculares, não houve diferença estatística quanto à sua distribuição relativa (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição das doenças vasculares entre os três grupos de pacientes.
Doenças/Grupos | I (%) | II (%) | III (%) | Total (%) |
---|---|---|---|---|
Carótida | 29 (14,5) | 11 (5,5) | 14 (7,0) | 54 (27,0) |
AAA+Ilíacas | 35 (17,5) | 6 (3,0) | 22 (11,0) | 63 (31,5) |
Infrainguinal | 30 (15,0) | 7 (3,5) | 20 (10,0) | 57 (28,5) |
DOAI | 15 (7,5) | 4 (2,0) | 7 (3,5) | 26 (13,0) |
Total | 109 (54,5) | 28 (14) | 63 (31,5) | 200 (110) |
AAA = aneurisma de aorta abdominal; DOAI = doença oclusiva aortoilíaca; 0,228 & p & 0,900 (calculado por doença).
Com relação aos antecedentes mórbidos, o acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi) prevaleceu no grupo II com cinco casos (20%) e ocorrência estatisticamente significativa em relação aos demais grupos (p & 0,001). A insuficiência coronariana foi mais prevalente no grupo II em relação aos demais: 25 (12,5%) pacientes (p & 0,001), e a insuficiência cardíaca prevaleceu no grupo III: cinco (7,9%) pacientes (p = 0,030) (Tabela 2).
Tabela 2 Distribuição dos antecedentes mórbidos vasculares cerebrais e antecedentes cardíacos entre os pacientes dos três grupos.
I (%) | II (%) | III (%) | |
---|---|---|---|
Acidente vascular cerebral | 0 (0,0) | 5 (20,0) | 7 (11,0) |
Insuficiência coronariana | 0 (0,0) | 25 (12,5) | 3 (4,7) |
Insuficiência cardíaca | 1 (0,9) | 1 (4,0) | 5 (7,9) |
Houve um total de 206 procedimentos, pois seis pacientes foram submetidos a cirurgia em dois territórios concomitantes: quatro apresentavam doença oclusiva aortoilíaca e infrainguinal associadas e dois pacientes apresentavam AAA e doença infrainguinal associadas.
Complicações pós-operatórias ocorreram em 46 pacientes (23%), sendo que houve complicações cardíacas em 11 pacientes (5,5%). Quanto às complicações não cardíacas, ocorreram 55 em 35 pacientes (17,5%), pois alguns apresentaram mais de uma complicação (Tabela 3).
Tabela 3 Complicações pós-operatórias cardíacas e não cardíacas*.
n | Frequência (%) | |
---|---|---|
Cardíacas | 11 | 5,5 |
IAM não fatais† | 3 | 1,5 |
Insuficiência cardíaca | 1 | 0,5 |
Fibrilação atrial aguda | 1 | 0,5 |
Outras arritmias | 5 | 2,5 |
Choque cardiogênico | 1 | 0,5 |
Não cardíacas | 55 | 27,5 |
Pulmonares | 14 | 7,0 |
Renal | 2 | 1,0 |
Cerebral | 2 | 1,0 |
Outras† | 9 | 4,5 |
Cirúrgicas | 28 | 14,0 |
Total | 66 | 33,0 |
IAM = infarto agudo do miocárdio.
*Um ou mais pacientes apresentaram mais de um tipo de complicação.
†Outras: sepse, delirium, choque séptico e hipovolêmico.
Entre as complicações cardíacas, ocorreram três IAM não fatais (1,5%), sempre em pacientes do grupo III. A complicação cardíaca mais frequente foi arritmia (exceto FAA), ocorrida em cinco (2,5%) pacientes, sendo que destes, três eram do grupo II (Tabela 3).
A mortalidade precoce global foi de nove pacientes (4,5%), que faleceram dentro do período de 30 dias do pós-operatório. As principais causas foram tromboembolismo pulmonar e choque séptico, cada qual ocorrido em dois pacientes. Apenas uma morte foi decorrente de problema cardíaco: um paciente do grupo III faleceu por choque cardiogênico (Tabela 4). De todas as variáveis analisadas, a única que se associou de forma significativa com óbito foi insuficiência cardíaca (p = 0,04).
Tabela 4 Causas de morte pós-operatória.
Mortalidade | Causa | n | Frequência (%) |
---|---|---|---|
Total | 9 | 4,5 | |
Choque cardiogênico | 1 | ||
Choque séptico | 2 | ||
Choque hemorrágico | 1 | ||
Insuficiência respiratória aguda | 1 | ||
Tromboembolismo pulmonar | 2 | ||
Falência de múltiplos órgãos | 1 | ||
Insuficiência renal aguda | 1 |
As complicações cardiovasculares são importantes causas de morbidade em procedimentos não cardíacos de grande porte7,8. Em nossa série, a taxa de complicações cardiovasculares foi de 5,5%, sendo que o grupo DC assintomática (grupo II) apresentou a maior prevalência (12%). Em recente estudo, Bredahl et al.9 apresentaram uma taxa de 6% de complicações vasculares no pós-operatório de doença oclusiva aortailíaca. O índice global de complicações foi de 33%, enquanto que as complicações não cardíacas corresponderam a 27,5%, semelhante ao índice encontrado por outros autores10.
Lee et al.11, cuja taxa de complicações cardíacas foi de 56 (2%) em 2.893 pacientes estáveis submetidos a cirurgia não cardíaca eletiva de grande porte, propuseram classificar os pacientes de acordo com um Índice de Risco Cardíaco Revisado, o qual permitiria identificar os pacientes com alto risco de complicações. Em nossa série, essa identificação correspondeu aos pacientes com DC sintomática: três pacientes (1,5%) tiveram IAM não fatal e pertenciam ao grupo III.
Apesar de Eagle et al.12 e Bodenheimer13 terem mostrado que a revascularização coronariana reduziu significativamente o número de eventos cardíacos no pós-operatório de cirurgia não cardíaca, na série mais recente de McFalls et al.14, a incidência de IAM pós-operatório não foi reduzida por intervenções coronarianas e não alterou a sobrevida em longo prazo. Esses autores concluíram que a revascularização da artéria coronária antes da cirurgia vascular eletiva em pacientes estáveis não deve ser recomendada. O que pode ser confirmado pela mais recente revisão da AHA que manteve a não realização de exames invasivos e de revascularização do miocárdio rotineiramente15. Com base nesses dados, os pacientes do grupo III, apesar de terem doença sintomática mas estável, não foram previamente submetidos à revascularização coronariana.
Dentre as complicações cardíacas, a mais frequente foi arritmia (2,5%), excetuando FAA, que ocorreu em apenas um paciente (0,5%). Na série de Carvalho et al.16, a complicação cardíaca predominante foi a FAA, que ocorreu em 5,4% dos pacientes submetidos a cirurgia convencional do AAA.
A associação entre nossos pacientes com DC e DAP (38/91 casos) coincidiu com a literatura mundial, ocorrendo em 41,7% dos casos. Dentre os pacientes com DC assintomática, a DAP esteve presente em 39,3% (11/28 casos). Por isso, a importância de identificá-la de maneira agressiva, uma vez que sua incidência é elevada e pode acarretar alta mortalidade cardíaca no pós-operatório de cirurgia vascular de grande porte. Ward et al.17, em sua série, mostraram que os pacientes com DAP tinham maior prevalência de alterações clínicas significativas no ecocardiograma, tais como disfunção ventricular esquerda e estenose aórtica, do que os pacientes sem doença infrainguinal.
A mortalidade precoce em nossos pacientes foi de 4,5%, semelhante à encontrada por Mackey et al.5 (3,4%), exceto com relação ao fato de que a isquemia cardíaca não foi a causa mais frequente do óbito. O risco cardíaco continua sendo um problema importante para os pacientes submetidos a cirurgia não cardíaca e é frequentemente o maior responsável pelos resultados no perioperatório6. Recentes diretrizes sugeriram que o risco médio de IAM no perioperatório ou morte cardíaca está relacionado com o reconhecimento prioritário dos fatores clínicos, tais como: insuficiência cardíaca, angina, IAM, idade avançada, capacidade funcional e, para os pacientes submetidos a exames não invasivos, que tenham os territórios isquêmicos do miocárdio demonstrados através de testes provocativos. O grau de risco conferido por um procedimento cirúrgico não cardíaco em acréscimo aos fatores de risco paciente-específico tem apresentado dificuldade na sua elucidação. Por maior que seja a experiência da cirurgia vascular até o momento, acredita-se que, para explicar o maior risco, senão todos os riscos cirúrgicos específicos, seja necessário ter conhecimento da associação entre a DAP e a DC18-20.
Em nossa série, podemos observar que os pacientes com DC assintomática, apesar de somente representarem 5,5% dos pacientes com DCV, foram os que mais tiveram AVCi pregressa (20%) e eram também os principais portadores de insuficiência coronariana pregressa (12,5%). Apesar de a DC não ter sido preditora de óbito e a sobrevida dos pacientes com ou sem DC não mostrar diferenças estatísticas, podemos observar a importância da avaliação pré-operatória no sentido de detectar os pacientes com DC assintomática precocemente, o que pode contribuir para a diminuição das taxas de complicações pós-operatórias.