versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.92 no.1 Porto Alegre jan./fev. 2016
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2015.11.002
Desde a influência do trabalho de Dan Olweus,1 o bullying surgiu como um grande problema da sociedade em todo o mundo e em todas as sociedades. A literatura internacional relata taxas de crianças e adolescentes envolvidas em bullying nos diferentes países de 7% a 43%, com relação às vítimas, e de 5% a 44%, com relação aos bullies. 2 Ademais, os estudos são compatíveis no destaque para a forma como o bullying constitui um fator de risco à saúde e ao ajuste social e psicológico tanto do bully quanto do jovem intimidado. Crianças e adolescentes que sofrem vitimização por pares podem ser afetados por diversos problemas de saúde, incluindo sintomas de doenças físicas e psicológicas, simultânea e prospectivamente. 3and4 Da mesma forma, há evidências de que os bullies também podem sofrer de depressão e outras doenças 4 e que correm risco de apresentar comportamentos externalizantes e envolver-se em atividades criminais no fim da adolescência e na vida adulta.5
Além dos bullies e das vítimas, outros colegas da escola e da classe também participam do bullying, desempenham papéis diferentes no fenômeno. Eles podem ajudar ou reforçar o comportamento dos bullies; uma minoria defende os pares intimidados; e muitos alunos são espectadores passivos, que abstêm-se das situações de bullying ao não tomar partido dos bullies nem das vítimas e reforçam, assim, indiretamente, o comportamento dos bullies. 6 O envolvimento no bullying como espectador ativo ou passivo também pode afetar a adaptação psicológica do jovem, pois tem sido demonstrado que testemunhar o bullying aumenta os níveis de sofrimento do espectador. 7 Esse quadro e os custos elevados originados do bullying para a sociedade fazem com que a investigação do fenômeno e o desenvolvimento de programas de intervenção, capazes de combater o bullying de maneira efetiva no contexto específico, sejam uma prioridade em qualquer país no qual o bullying é detectado.
Várias propostas para as intervenções contra o bullying foram desenvolvidas com diferentes abordagens teóricas e diferentes níveis de eficácia. 8 Entretanto, todas elas recomendam partir de um exame preciso do fenômeno no contexto de intervenção futura. De fato, uma das principais suposições da intervenção contra o bullying é que o bullying, em comparação com outras formas de comportamentos agressivos e antissociais, tem uma complexidade maior que precisa ser investigada no contexto específico para ser combatido efetivamente.
Nessa estrutura, a originalidade e o valor do papel de Oliveira et al.9 é evidente, principalmente no que diz respeito à escassez de estudos sobre bullying na escola no Brasil 10 e, de uma perspectiva mais ampla, na América do Sul. Este estudo fornece dados relevantes sobre a prevalência de bullies em uma amostra de população de 109.104 alunos de oito séries do ensino fundamental; 20,8% da amostra relataram comportamento de bullying na escola. Esses dados indicam uma elevada taxa de bullying em escolas brasileiras, em comparação com outros países, e isso vem de avaliações de autorrelato pelos participantes. Isso é importante porque, como os próprios autores consideram, autorrelatos podem ter aumentado o risco de subavaliação da prevalência do bullying. O uso de autorrelatos para primeiros exames de bullying, contudo, está em linha com o procedimento habitual adotado em estudos internacionais. Assim, ainda que não tenha sido possível administrar a medida padrão para avaliar o bullying em comparações transnacionais (ou seja, o Questionário Bully/Vítima de Olweus) 1,5and11 nesse estudo, a pesquisa de Oliveira et al. fornece dados sobre bullying comparáveis com a literatura internacional. Ademais, o grande tamanho da amostra também garante uma avaliação confiável das situações de bullying nas escolas de ensino fundamental do Brasil. Assim, a alta taxa de bullies constatada por Oliveira et al. sugere que abordar o bullying é uma possível prioridade na pesquisa e na futura intervenção no Brasil.
Para desenvolver programas brasileiros para impedir e combater o bullying nas escolas de maneira efetiva é necessária uma análise precisa das correlações relacionadas a um risco maior de comportamento intimidador em alunos brasileiros. Essa é a segunda contribuição relevante fornecida pelo trabalho de Oliveira et al. à pesquisa sobre o bullying. Sem dúvidas, esse estudo examina alguns índices de transtornos de adaptação social e psicológica dos bullies e algumas dimensões familiares possivelmente relacionadas a uma probabilidade maior de intimidar pares na escola. Isso permite a elaboração de um perfil preliminar dos bullies específico da sociedade brasileira. O perfil resultante do estudo indica que ser um menino mais velho do que outros alunos da escola está associado à probabilidade cada vez maior de praticar o bullying. Esses achados, bem como aqueles sobre a supervisão familiar escassa pela família de bullies e experiências de violência doméstica vividas por bullies, são semelhantes aos resultados obtidos em outras literaturas internacionais. Contudo, os resultados da etnia dos bullies, juntamente com os dados obtidos a partir da comparação entre escolas públicas e particulares, destacam alguns elementos específicos da cultura brasileira que precisam de investigação adicional. Os autores descobriram que principalmente os jovens negros e asiáticos e os alunos de escolas particulares são mais propensos a ser bullies. Em vista da literatura sobre o bullying, esses achados não podem ser adequadamente interpretados sem um ponto de vista mais amplo, que examine ao mesmo tempo e de maneira mais profunda os contextos em que o bullying ocorre. Sem dúvidas, o bullying não é apenas uma forma específica de agressão proativa, 12and13 intencional e destinada a adquirir uma posição de poder entre os pares,14 mas também é um tipo de comportamento antissocial amplamente influenciado pelo contexto dos pares. A literatura sobre esse fenômeno mostrou de maneira consistente que o status dentro do grupo de pares 15and16 e os fatores no nível do grupo de pares, como normas e atitudes informais compartilhadas entre colegas de escola e sala,17 desempenham um papel relevante na explicação desse comportamento. Assim, as características do contexto dos pares nos quais o bullying entre alunos brasileiros ocorre precisam ser consideradas com cuidado. Após essa linha de raciocínio, o achado que relatou que pertencer a uma etnia específica aumenta o risco de ser um bully não pode ser interpretado como um índice "absoluto", porém exige investigação das proporções de maioria/minoria de grupos étnicos nas escolas em que os dados foram coletados e, sob um ponto de vista mais amplo, no contexto do Brasil. Esses dados podem, de fato, refletir a presença de formas de bullying discriminatório, 18 efeitos internos e externos ao grupo ou normas17 informais do grupo de pares, que podem ser estabelecidas em grupos de pares com a mesma etnia. Também não sabemos o suficiente sobre quem eram as vítimas das ações de bullying: se os pares intimidados pertenciam ao mesmo grupo étnico dos bullies ou a um grupo diferente. Dessa forma, se, no Brasil, os alunos de escolas particulares têm maior risco de apresentar comportamentos de bullying, é preciso examinar ainda mais as características do contexto dessas escolas particulares, o que pode favorecer a prática de bullying no Brasil. É possível que o bullying seja na verdade favorecido por características específicas dos alunos que frequentam essas escolas e de suas famílias? Ou pode depender de características da organização e das normas disciplinares, típicas do ambiente de escolas particulares no Brasil? Além disso, constatamos que o clima da escola e as atitudes dos professores contribuem para promover ou impedir a ocorrência de bullying entre os alunos. 19 Portanto, o estudo de Oliveira et al. sustenta que é necessária maior pesquisa com foco nas dimensões contextuais de pares e escolas que podem estar relacionadas ao comportamento de bullying na realidade brasileira e que podem ser abordadas pela intervenção contra o bullying.
Uma terceira contribuição inovadora do estudo de Oliveira et al. consiste na análise dos comportamentos de risco à saúde relacionados ao fato de ser um bully entre os alunos brasileiros. O perfil dos bullies resultante da investigação de Oliveira et al. confirma que o bullying é um indicador de disfunções psicológicas e de ajuste social multidimensionais na juventude. Aparentemente, há chances maiores de bullies brasileiros apresentarem comportamentos arriscados em comparação com seus pares. Os comportamentos arriscados relatados variaram de consumo de tabaco, álcool e drogas ilícitas a faltas na escola e relações sexuais precoces. Esse quadro não é totalmente inédito na literatura internacional sobre bullying. 20 Contudo, infelizmente, a natureza transversal dos dados do estudo de Oliveira et al. não permite entender se o bullying é uma variável preditora de outros comportamentos de risco entre crianças brasileiras ou se - mais provavelmente - reflete um perfil complexo de desajuste social e psicológico de crianças brasileiras que intimidam seus pares. Isso também pode estar relacionado a distorções no desenvolvimento moral, como sugere a literatura recente sobre bullying. 21 Contudo, esse achado do estudo de Oliveira et al. indubitavelmente destaca como os custos sociais associados ao bullying também são altos no Brasil e que ser um bully no ensino fundamental no Brasil pode ser um indicador precoce de uma doença multifacetada, que precisa de formas multidimensionais de intervenção que abranjam a família e, novamente, os pares. Na verdade, a influência dos pares mostrou-se relevante para aumentar a probabilidade de bullying e adotar comportamentos arriscados. 19
O fato de que o bullying pode ser um possível indicador de dificuldades multidimensionais de jovens encontra mais uma confirmação em suas associações com desajuste psicológico e social e sintomas de problemas de saúde, incluindo insônia, sentimentos de solidão e falta de amigos, como sugere o estudo de Oliveira et al. Os sentimentos relatados de solidão e isolamento pelos colegas, em especial, indicam que o comportamento de bullying está atrelado à doença emocional e social de bullies. Interpretar esses sentimentos como representações de possíveis problemas de saúde de bullies que solicitam intervenção na saúde é uma realidade muito legítima. Porém, uma interpretação mais complexa deles pode levar a ressaltar algumas competências de bullies que servem de possíveis recursos para ajudar essas crianças. De fato, a literatura internacional sobre a competência social de bullies mostra que os colegas atribuem a bullies um elevado status social, como crianças visíveis e influentes dentro do grupo, mas também relatam que, na verdade, não gostam de bullies. 15 Assim, os sentimentos de solidão e isolamento pelos colegas de bullies podem refletir o isolamento real causado pelo comportamento de bullies e mostrar que bullies têm competências adequadas na compreensão de interações entre colegas. Essas habilidades podem ser consideradas ao planejar intervenção na saúde. Por fim, também há a possibilidade de que sentimentos de solidão sofridos por bullies também motivem e promovam o comportamento de bullying. Infelizmente, como os dados fornecidos por Oliveira et al. são transversais, não podemos explorar mais essa hipótese. Porém, novamente, esse estudo definitivamente promove futuras pesquisas sobre bullying e seus correlatos e motivos entre os alunos brasileiros.
Em resumo, independentemente de algumas possíveis limitações - corretamente identificadas pelos autores - o estudo de Oliveira et al. constitui uma interessante contribuição para a literatura sobre bullying e fornece algumas claras indicações de futura pesquisa sobre esse assunto no Brasil. Essas indicações também são úteis para desenvolver programas de intervenção com eficácia maximizada no contexto brasileiro.