versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.28 no.6 São Paulo nov./dez. 2016 Epub 12-Dez-2016
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015260
As habilidades linguísticas: fonética, fonológica, semântica, lexical, morfossintática e pragmática são fundamentais para o desenvolvimento de linguagem da criança. Ao longo do processo de desenvolvimento há um aprimoramento destas habilidades, que se estende até a vida adulta. Subsequentemente ocorre um aumento da capacidade de compreensão e uso de palavras de múltiplos significados, linguagem figurada e inferência de conteúdos implícitos(1,2).
Estas habilidades, denominadas de metalinguagem, são de grande importância para o bom desempenho verbal, acadêmico e social, e também interferem em áreas como cognição, afetividade e criatividade. A metalinguística pode ser entendida como a habilidade de pensar sobre a linguagem como um objeto de estudo de manipulação consciente dos aspectos que a envolve(3).
Alterações nessas faculdades metalinguísticas podem se manifestar em diversos quadros que afetam o desenvolvimento infantil, e dentre eles há o Transtorno Específico de Linguagem e Fala (TEL) e o Transtorno do Espectro Autista (TEA). O TEL e o TEA são dois transtornos do desenvolvimento que são frequentemente caracterizados por uma recepção e/ou expressão verbais comprometidas.
O Transtorno de linguagem acontece quando há a presença de comprometimento da compreensão e/ou uso da fala, escrita e/ou de outros sistemas simbólicos. O distúrbio pode envolver a forma da linguagem (fonologia, morfologia, sintaxe), o conteúdo da linguagem (semântica), e/ou a função da linguagem na comunicação (pragmática)(4).
De acordo com a Organização Mundial de Saúde(5), na Classificação Internacional de Doenças – CID 10, o Transtorno Específico do Desenvolvimento de Linguagem e Fala (TEL) é aquele no qual as modalidades normais de aquisição da linguagem estão comprometidas desde os primeiros estágios do desenvolvimento. É eminentemente determinado por baixo desempenho em testes formais e padronizados de linguagem receptiva e expressiva, e com base na ausência de alterações físicas, sensoriais, motoras e/ou intelectuais. Podem ser acompanhados de perturbação das relações interpessoais, transtornos emocionais e transtornos comportamentais. Existe uma grande heterogeneidade de perfis e não há uma generalização etiológica para todos os casos, que podem variar em níveis de gravidade. Mas ainda assim, na maioria deles é possível identificar problemas na recepção e na emissão da linguagem oral(6).
Já no Transtorno do Espectro Autista (TEA) a inabilidade pragmática está associada às falhas básicas de atenção compartilhada e reconhecimento das intenções do outro(7). É um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por déficits na comunicação (verbal e não-verbal), na reciprocidade social e nos padrões de interesses e comportamentos restritos e repetitivos. Pode haver estereotipias motoras e produção de estruturas ecolálicas (com e sem funcionalidade); adesão à rotina; e hipo e/ou hipersensibilidade a estímulos sensoriais(5,8-10). Os sintomas devem estar presentes desde a primeira infância e todos esses fatores resultam em uma inadequação pragmática que persiste até a vida adulta. Apesar de ser uma população bastante heterogênea é possível determinar o grau de severidade e comparar os diferentes perfis desses indivíduos(11).
Pesquisas realizadas confirmam que autistas de alto funcionamento falham na interpretação de estímulos metafóricos, expressões idiomáticas, comentários humorísticos ou sarcásticos, além de não compreender dicas não-verbais no desenrolar de uma conversação(12-15).
Muitos autores(6,16-18) pesquisaram e descreveram sobre a importância de se comparar o Transtorno Específico de Linguagem e Fala (TEL) e o Transtorno do Espectro Autista (TEA) em seus diferentes aspectos em relação às habilidades sócio-cognitivas, psicossociais e perfil de comunicação.
Acredita-se que o prejuízo pragmático em crianças com TEA seja mais relevante devido tanto à inadequação da interação social quanto aos prejuízos da comunicação verbal e não-verbal (na ausência de reconhecimento do outro e da atenção compartilhada) na comparação com o desempenho de crianças com falhas semântico-pragmáticas e diagnosticadas com TEL.
Sendo assim, a hipótese deste estudo é a de que embora haja prejuízos de linguagem em ambas as condições, estes devem mostrar-se mais acentuados no TEA.
O objetivo deste estudo foi verificar e comparar o desempenho de crianças/adolescentes com Transtorno Específico de Linguagem e Fala e Transtorno do Espectro Autista em teste formal e padronizado que avalia a competência de linguagem, especificamente em prova de ambiguidade.
Trata-se de um estudo de caso controle (CEP1382/10).
Todos os pais e participantes tomaram ciência dos procedimentos metodológicos e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou Termo de Assentimento, conforme sugestão do Comitê de Ética em Pesquisa.
Foi constituída por 19 indivíduos, de ambos os gêneros, na faixa etária de 6 a 14 anos e divididos em dois grupos.
Grupo TEL: 10 indivíduos com Transtorno Específico de Linguagem e Fala (TEL), sendo 5 do gênero feminino e 5 do gênero masculino, com média de idade de 8 anos e 7 meses, diagnosticados e atendidos em Ambulatório de Terapia de Linguagem Infantil.
Grupo TEA: 09 indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), sendo todos do gênero masculino, com média de idade de 11 anos e 5 meses, diagnosticados por equipe multidisciplinar e atendidos no Núcleo de Investigação Fonoaudiológica de Linguagem da Criança – Transtorno do Espectro Autista.
Todos os sujeitos de ambos os grupos apresentaram resultados de avaliação audiológica e desenvolvimento motor dentro dos parâmetros de normalidade. Todos encontravam-se matriculados regularmente em escolas de ensino infantil ou fundamental.
Na avaliação psicológica registrou-se quociente intelectual maior ou igual a 90 nas crianças do grupo TEL e de 60 a 70 nas crianças do grupo TEA, obtido por meio da aplicação da Stanford-Binet Intelligence Scale(19,20).
Como critério de inclusão consideramos o diagnóstico multidisciplinar e a faixa etária, e como critério de exclusão, a presença de comorbidades tais como deficiências motora, visual, física e/ou auditiva, em ambos os grupos.
Utilizamos a prova de compreensão de ambiguidade contida no Teste de Competência de Linguagem – TLC(21,22).
A prova consiste em treze itens que envolvem o reconhecimento e interpretação de diferentes significados lexicais em uma sentença ambígua. Na prova de nível 1 (indicada para crianças de 5 a 9 anos), o avaliado deve escolher, dentre as quatro imagens apresentadas, as duas opções corretas que identifiquem o duplo-sentido. No nível 2 (indicado para maiores de 9 anos), a partir da sentença dada, o sujeito deve dar duas explicações para o significado da sentença ambígua.
Neste estudo, a pontuação em cada prova foi obtida segundo a proposta original do teste. Exemplos:
TLC nível 1: A avaliadora diz a sentença: “A pasta está no armário”. Dentre as quatros figuras expostas, o avaliado deve escolher as duas opções corretas: pasta de dente e pasta escolar.
TLC nível 2: A avaliadora diz a sentença: “Tina derrubou todo o leite na manga”. O avaliado deve dar duas explicações para o significado da sentença: derrubou leite na fruta e derrubou leite na manga da blusa.
Para análise dos dados foram comparadas as pontuações dos sujeitos de ambos os grupos de acordo com a pontuação total bruta.
Foi utilizado o teste não paramétrico de Mann-Whitney. O teste não paramétrico de Mann-Whitney é indicado quando se quer comparar dois grupos de informações com nível de mensuração numérica e as amostras são independentes e não se deseja assumir suposições acerca das amostras analisadas. Considerou-se 0,05 o nível de significância.
Os resultados do desempenho foram apresentados na Tabela de Pontuação no teste de sentenças ambíguas dos grupos Transtorno do Espectro Autista e Transtorno Específico de Linguagem e Fala (Tabela 1).
Tabela 1 Pontuação no teste de sentenças ambíguas dos grupos TEA e TEL
Estatística | TEA | TEL | Mann-Whitney (p) |
---|---|---|---|
Média | 16,56 | 26,80 | |
Desvio-padrão | 8,20 | 6,32 | 0,010* |
Tamanho | 9 | 10 |
*Considerou-se 0,05 o nível de significância (p)
Pôde-se observar que houve diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos quanto à pontuação no teste, evidenciando que os sujeitos do grupo TEL, em média, apresentaram maior número de acertos na identificação de ambiguidade. Conforme a análise dos dados, a tabela nos mostrou os valores do desvio-padrão considerando tamanho da amostra.
O Gráfico 1 representa o intervalo de confiança para a média de cada grupo, média ± 1,96 × desvio-padrão / √ (n-1). Os valores para cada grupo foram: grupo TEA (média de 16,56) e grupo TEL (26,80).
O objetivo desse estudo foi verificar e comparar o desempenho de crianças/adolescentes com Transtorno Específico de Linguagem e Fala e Transtorno do Espectro Autista em teste formal e padronizado que avalia a competência de linguagem em prova de ambiguidade.
Embora seja consenso de que em ambas as condições haja prejuízos na identificação e interpretação de situações não literais, a hipótese que consideramos é a de que no TEA esta habilidade mostra-se menos eficiente. Tal suposição se sustenta devido à presença de um déficit na cognição social associado aos comprometimentos linguísticos primários.
A literatura já tem demostrado que tanto o TEL como o TEA apresentam dificuldades em integrar as informações linguísticas na resolução de mensagens de duplo-sentido(12). Essas dificuldades em interpretar a ambiguidade lexical podem decorrer em parte, dos déficits no conhecimento semântico e no processamento da sentença. Além do que, podem também refletir comprometimentos das habilidades de memória e atenção que são necessárias para desenvolver representações mentais de estímulos verbais.
Conforme os resultados obtidos vimos que os avaliados do grupo TEL mostraram um maior reconhecimento dos léxicos ambíguos presentes na prova, quando comparados aos do grupo TEA.
Acreditamos que seja possível afirmar que no Grupo TEA houve uma dificuldade maior em interpretar as informações devido às falhas primárias características desta condição tais como o prejuízo no contato visual, na atenção compartilhada, no reconhecimento e na atribuição de estados mentais aos interlocutores. Tais inabilidades podem ter influenciado o entendimento de contextos ambíguos já que os autistas tendem à uma interpretação literal sem realização de inferências.
Essas falhas, portanto, acarretam a incompreensão de metáforas, ironias e trocadilhos, que requerem habilidades metalingüísticas e pragmáticas.
Além disso, uma pesquisa(23) investigou a habilidade de identificação lexical ambígua de sujeitos separados em quatro grupos distintos: Transtorno de Linguagem (LI), Transtorno do Espectro Autista (com alteração de linguagem, ALI), Transtorno do Espectro Autista (com habilidades verbais no padrão da normalidade, ASO) e indivíduos com Desenvolvimento Típico (TD). Em termos de acurácia nos testes, os dois grupos sem déficits na linguagem (ASO e TD) mostraram maior familiaridade com as palavras ambíguas do que os grupos LI e ALI. Segundo os autores os resultados revelaram um repertório de vocabulário menor nesses dois últimos grupos. Também houve exibição de maior tempo de latência para resposta e menos benefícios destes, ao serem expostos a um facilitador contextual. Os autores hipotetizaram que esses achados podem decorrer de falhas na Teoria da Coerência Central.
A Teoria da Coerência Central remete, nesses indivíduos, à tendência a um processamento de informação focado em detalhes, e ao considerarmos um contexto de duplo-sentido, provavelmente ocorrem perdas na detecção de pistas não verbais que poderiam indicar o verdadeiro sentido da mensagem.
Outros pesquisadores descreveram que autistas possuem uma inabilidade em compreender truques e manejos metalinguísticos que compõem e enriquecem a linguagem, além disso, há dificuldades na capacidade de planejar e fazer mudanças nas suas próprias ações de acordo com um contexto inesperado ou desconhecido(1,7,24,25).
Já no Transtorno Específico de Linguagem e Fala as pesquisas apontam para inabilidades na estruturação da linguagem e seus subsistemas fonológico -sintático - semântico, com menos ênfase na pragmática, cuja alteração deve ser causada por uma base lingüística deficitária e, portanto, considerada como uma falha secundária(6,26). A aquisição da linguagem das crianças com TEL pode ocorrer de forma atípica, lenta e hierárquica, iniciando pela classe semântica de substantivos de representação concreta que é a categoria gramatical mais fácil de ser adquirida(27-29).
Acreditamos que a falha no entendimento de estímulos de duplo-sentido surge a partir de um acesso lexical alterado, de um prejuízo na memória, um inventário vocabular reduzido, e de um comprometimento linguístico que vai resultar na não-percepção da variabilidade da língua, ou seja, o entendimento de que palavras que têm o mesmo som podem ter significados diferentes associado a um contexto específico.
Além das considerações já citadas anteriormente para justificar a razão do grupo TEL ter apresentado um melhor resultado no reconhecimento da ambiguidade, devemos considerar as diferenças no desempenho intelectual dos grupos. Como vimos o grupo TEA, obteve índices abaixo da faixa média de quociente intelectual enquanto o Grupo TEL mostrou índices na faixa de normalidade. Esses dados confirmam a influência e o impacto dos aspectos cognitivos no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem.
Concluindo, acreditamos ter sido importante estudar a percepção da ambiguidade nos quadros de Transtorno Específico de Linguagem e Fala e Transtorno do Espectro Autista, pois esta é uma habilidade que influenciará a inserção social desses indivíduos em meios comunicativos e conversacionais, seja na vida pessoal, acadêmica e/ou profissional.
Acreditamos que estudos comparando o desempenho em tarefas de habilidades metalingüísticas dos indivíduos pré e pós-intervenção terapêutica fonoaudiológica também são promissores para fornecer dados para a melhora da prática clínica e para melhor entendimento das capacidades lingüísticas e cognitivas desses indivíduos.
Foi possível analisar e comparar a performance dos grupos em atividade metalinguística e verificar melhor desempenho do grupo Transtorno Específico de Linguagem e Fala quando comparado ao Transtorno do Espectro Autista, na interpretação de informações ambíguas.