versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.21 no.3 Rio de Janeiro 2017 Epub 01-Jun-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2016-0262
A saúde mental, historicamente, tinha a internação como principal forma de tratamento. O isolamento das pessoas com transtorno mental objetivava, no século XVII, evitar a desordem ou algum tipo de violação da ordem social.1 Em um espaço médico-centrado de disciplinamento do comportamento considerado desviante, as profissionais de enfermagem tiveram importante papel na organização dos manicômios.2 Os processos de mudança no campo da saúde mental iniciam a partir do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. As reivindicações do referido movimento cunharam possibilidades para a criação da Lei 10.216/2001, da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que dispõe sobre a proteção e direitos das pessoas com transtornos mentais.3 Além disto, essa Lei regulamenta as internações e as divide em três modalidades: a voluntária, que acontece com o consentimento do usuário; a involuntária que ocorre sem a concordância do usuário e a pedido de terceiro; e, a compulsória que consiste em internação determinada pela justiça. Prevê, ainda, que as internações, em quaisquer modalidades, somente sejam indicadas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.3 Nesse contexto, entendemos que a enfermeira é uma profissional importante, tanto por sua capacidade de compreender o ser humano de forma integral, quanto pela comunicação que promove entre a equipe de saúde, usuário e comunidade, contribuindo com processos de desconstrução e recriação de conceitos e aprimoramento de práticas identificadas com os preceitos da Reforma Psiquiátrica.4
Diante disso, questionamos e refletimos acerca do papel da enfermeira na rede de atenção à saúde mental, bem como o modo como compreende as internações compulsórias e involuntárias no contexto da Reforma Psiquiátrica. Embora haja políticas de saúde mental e esforços dos profissionais que atuam nesse cenário, entendemos que os usuários dos serviços de saúde mental ainda são estigmatizados pela sociedade e a assistência à saúde, em alguns casos, apresenta-se fragmentada. Tal fato pode estar associado à insuficiência e distribuição desigual de recursos, tanto financeiros como de recursos humanos, para o desenvolvimento das ações em saúde mental, a questões políticas, formação dos profissionais ou mesmo dificuldade na descentralização dos serviços para integrar essa área do conhecimento nos cuidados primários.5 Consideramos relevante o investimento nesse tema, haja vista a importância da enfermeira na área da saúde mental. Defendemos tal posicionamento, pois é no cotidiano de atuação da enfermagem que acontecem reflexões sobre as condutas profissionais e políticas públicas de saúde mental.1 Estudos evidenciaram que há dificuldade de conceber práticas profissionais pautadas na Reforma Psiquiátrica e, que o ensino de enfermagem ainda está centrado em um modelo tradicional, o que poderá refletir na atuação das futuras enfermeiras.6,7 Assim, consideramos importante a realização de pesquisas que repercutam na qualificação das competências das enfermeiras para atender às demandas dos usuários e suas famílias, apoiado no seu saber, construindo seu lugar no processo de saúde, de modo a promover mais interação com os demais profissionais da saúde, consolidando o processo da Reforma Psiquiátrica.8
Considerando essa contextualização, delineamos este estudo com a seguinte questão de pesquisa: Qual é a compreensão de enfermeiras que atuam em serviços de saúde mental de um município do interior do Rio Grande do Sul sobre as internações compulsórias e involuntárias? Visando atender tal questionamento, o objetivo dessa investigação consiste em analisar a compreensão das enfermeiras atuantes em serviços de saúde mental sobre as internações compulsórias e involuntárias referidas na Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Buscando responder ao objetivo desta pesquisa, elegemos como aporte metodológico a abordagem qualitativa do tipo descritiva exploratória. Esta pesquisa é resultante de uma dissertação de mestrado, e foi desenvolvida em serviços de saúde mental de um munícipio do interior do estado do Rio Grande do Sul, que presta atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O referido município conta com os seguintes serviços de saúde mental ofertados pelo SUS: dois hospitais gerais, um filantrópico e outro hospital que atende 100% SUS. O hospital filantrópico tem uma unidade de internação destinada à saúde mental, constituída por 24 leitos sendo dez masculinos para pacientes entre dez e 18 anos, dez femininos para pacientes acima de dezoito anos, quatro leitos para adolescentes do sexo feminino e um leito infantil. O hospital que atende 100% SUS conta com uma unidade de internação destinada à saúde mental com 25 leitos mistos de internação para usuários adultos e um Pronto Socorro Psiquiátrico; um Ambulatório de Saúde Mental e três Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), sendo um CAPS II, um CAPS Infanto-juvenil, um CAPS AD e um CAPSad para dependentes de álcool e outras drogas.
Desse modo, constituíram os cenários de pesquisa as duas unidades destinadas a internações psiquiátricas dos hospitais gerais; o Pronto Socorro Psiquiátrico do hospital geral, que presta atendimento 100% SUS; o CAPS II, o CAPS Infanto-juvenil, e o CAPSad para dependentes de álcool e outras drogas.
Foram incluídas na pesquisa enfermeiras atuantes na área de saúde mental em serviços do SUS, sendo excluídas aquelas que estivessem em licença ou em férias, no período da coleta de dados. Com o aceite e atendendo aos critérios estabelecidos, oito profissionais enfermeiras participaram do estudo. Considerando que a maioria dos sujeitos da pesquisa eram mulheres optamos por utilizar o vocábulo enfermeira.
A coleta de dados ocorreu entre os meses de maio e julho de 2014, por meio de entrevista aberta com cada uma das participantes da pesquisa. Para tanto, realizávamos a seguinte questão: Qual seu entendimento sobre internação compulsória e involuntária?
As entrevistas foram previamente agendadas, conforme a disponibilidade das enfermeiras. Após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), as enfermeiras foram entrevistadas em sala previamente reservada, nos serviços das participantes, sendo as entrevistas gravadas em aparelho de áudio. O tempo para cada entrevista não foi delimitado. O encerramento do bloco de entrevistas ocorreu por saturação dos dados, quando os objetivos foram atingidos. Ulteriormente, transcrevemos as entrevistas e, para processo de organização dos dados, utilizamos o Software Atlas Ti 7.0 (QualitativeResearchandSolutions), versão FreeTrial.
Analisamos os dados por meio da análise de conteúdo,9 que consiste em um agrupamento de técnicas, passando pelas fases de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na pré-análise, com o auxílio do Software Atlas Ti 7.0 realizamos leituras consecutivas, a fim de sistematizar os dados. Na primeira leitura, a leitura flutuante, efetuamos contato exaustivo com o material a fim de destacar os pontos de interesse. Posteriormente, revisamos os dados destacados para garantir que pontos importantes não fossem descartados. Na terceira leitura, codificamos os dados (organizamos segundo unidades de significado para que pudéssemos visualizá-los de forma agrupada) de acordo com os objetivos da pesquisa. Na fase de exploração, realizamos a categorização, ou seja, os dados brutos foram tratados, destacando aqueles significativos e válidos. Os dados organizados foram submetidos a um processo que consistiu em localizar grupamentos que fossem ao encontro dos objetivos da pesquisa. Assim, do grupamento por semelhança das unidades de significados surgiram duas categorias. Neste estudo será apresentada a categoria: "Internações compulsórias e involuntárias: compreensões de enfermeiras que atuam em serviços de saúde mental". Na fase final, de tratamento dos resultados, inferência e interpretação, realizamos a análise do conteúdo, propondo inferências e interpretações dos dados das categorias, tendo em vista os objetivos propostos.
Utilizamos como referencial teórico as quatro dimensões ou campos que definem o processo de Reforma Psiquiátrica como um processo social complexo,10 que são: dimensão epistemológica (referente à produção de conhecimento, construção e desconstrução de conceitos); dimensão técnico-assistencial (relacionada à construção do modelo de assistência prestada na saúde mental); dimensão jurídico-política (diz respeito à construção e revisão das legislações civil, penal e sanitária, como Leis, Decretos e Portarias) e dimensão sociocultural (objetiva à modificação das relações entre a sociedade e as representações construídas socialmente em torno da loucura). Este estudo tem como foco a dimensão epistemológica. Consideramos importante a utilização dessas dimensões para fundamentar a pesquisa porque são formas de pensar os movimentos, os processos de troca e transversalidade na saúde mental e o estabelecimento de redes entre os conceitos que envolvem essa área de atuação.11
O estudo atendeu as exigências éticas presentes na Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, além disso, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com seres humanos da Universidade Federal de Santa Maria em 21 de março de 2014 sob Nº 564.014. Iniciamos a pesquisa após aprovação das coordenações dos serviços de saúde mental e iniciamos as entrevistas após a leitura e assinatura do TCLE em duas vias pelas participantes do estudo. Para garantir o sigilo e confidencialidade das enfermeiras, optamos pela utilização da letra 'E', por ser a letra inicial da área em que este estudo se inscreve, Enfermagem, seguidas de um número, indicando o número de participantes da pesquisa, E1, E2..., E8.
Internações compulsórias e involuntárias: compreensões de enfermeiras que atuam em serviços de saúde mental.
Para as enfermeiras, participantes do estudo, quando o usuárioa do serviço de saúde mental é acolhido em um serviço de saúde com solicitação de internação, o esperado é que ele seja avaliado pela equipe a partir do contexto do qual ele proveio, como a rede de suporte familiar, contexto sociocultural e o que levou a necessitar de uma possível internação.
A partir do momento que, em num serviço como o CAPS, nos deparamos com alguma situação desse tipo (internação), se faz necessário um reconhecimento da real situação do usuário, de como é este usuário, de como é o seu contexto familiar (E1).
Têm pacientes que chegam mal aqui porque em casa aconteceram brigas ou de alguma maneira teve alguma frustração. Isso prova que o ambiente familiar, as relações, o próprio ambiente onde ele vive é importante, também tem que estar mais ou menos equilibrado (E4).
A saúde mental não se restringe à psicopatologia ou à semiologia e não pode ser reduzida ao estudo e tratamento no âmbito das doenças mentais.12 A transição do modelo assistencial asilar para o psicossocial de atenção ao usuário remete ao reconhecimento de mudanças relacionadas a doença mental, como: a oposição ao conceito de incapacidade da pessoa com transtorno mental, a organização dos serviços objetivando um cuidado no território, a participação ativa dos usuários no tratamento e no olhar dos profissionais que se volta para o cuidado ao usuário e à família.13
É fundamental que as equipes dos serviços de saúde, além de cooperar com o usuário, auxiliem as famílias no processo de estruturação e convívio com seu familiar com transtorno mental. A participação da equipe junto aos familiares pode ser via capacitações referentes às estratégias de manejo da enfermidade, prestando esclarecimentos sobre o diagnóstico e medicações propondo terapêuticas, entre outros aspectos. A família, ao sentir-se amparada por profissionais da área, poderá contribuir ativamente no processo de cuidado e reinserção social do usuário.14
A compreensão das enfermeiras que atuam em serviços de saúde mental em relação ao cuidado revela que este não se restringe ao usuário, mas abrange sua família. Esse entendimento está associado à dimensão epistemológica da Reforma Psiquiátrica, a partir de um conceito de cuidado que percebe a família como recurso elementar na terapêutica do usuário.10 A contextualização paradigmática que emerge nas falas das enfermeiras, sinaliza o ato de cuidar no que diz respeito ao papel da família. Apesar dos avanços na área de saúde mental com a Reforma Psiquiátrica homologada em 2001, vivemos em uma transição entre o tradicional e o contemporâneo. No paradigma tradicional, o ambiente familiar, era tido como o responsável pela perda da razão, sendo necessária a intervenção da disciplina médica que, possibilitaria um resgate ou retomada da razão pelo dito "louco". Era também, considerado necessário separar o "louco" para proteger sua família das influências negativas dele, como a indisciplina. Desse modo, à família era designado aguardar em seu lar para receber o dito "louco" recuperado.15 Nesse paradigma, o hospital era considerado o lugar de tratamento da alienação mental e, para isto, havia o isolamento social e tratamento moral.
É necessário que se ultrapasse esse saber em que o "louco" era tido como incapacitado, recluso em espaços fechados, distante dos centros das cidades, sem tratamento digno com enfoque na exclusão e na segregação da loucura. Ao longo do Século XX, a família, aos poucos, voltou à cena, ao ser chamada para participar do tratamento oferecido ao usuário de serviços de saúde mental e diferentes compreensões a respeito da relação entre família e loucura foram percebidas. A família passa a ser vista como suporte para que o usuário crie vínculos, produzindo outros modos de viver em sociedade. Diante desse contexto, tem-se a falência dos dispositivos teórico-práticos do paradigma tradicional. O que solicita uma revisão do próprio conceito de ciência como produção de verdade, ou de neutralidade das ciências, quanto dos conceitos produzidos pelo referencial epistêmico da psiquiatria, tais como o conceito de alienação/doença mental, isolamento terapêutico, degeneração, normalidade/anormalidade, terapêutica e cura, dentre outros.10 O paradigma contemporâneo faz uma crítica a ineficiência do modelo asilar e nas estruturas assistenciais. Aponta para a necessidade de novos conceitos no saber-fazer e que sejam reformadores no campo da atenção visando novas formas de subjetividade e de sociabilidade aos usuários e famílias que necessitem de cuidados. Nesse processo epistemológico, dois conceitos são fundamentais: desinstitucionalização e doença.
A desinstitucionalização não significa apenas desospitalização, ou seja, retirar os usuários das instituições hospitalares sem que haja apoio terapêutico, social, familiar, jurídico, político. Distintamente, a desinstitucionalização é um processo ético, de reconhecimento de práticas que não percebe o usuário como um objeto do saber psiquiátrico, mas propõe compreender o usuário em sua existência a partir de suas necessidades concretas de vida. Istoconfigura um processo que não engloba somente a administração de fármacos ou psicoterapias vai, além disso, proporcionar aos usuários a construção de possibilidades concretas que envolvem sociabilidades e subjetividades.16-10
O conceito de doença, como foco principal e motivo para estratégias de normalização e disciplinamento precisa ser colocado em cheque. A desconstrução desse conceito propõe um cuidado ao usuário de serviços de saúde mental que busque possibilidades de enfrentamento das dificuldades diárias para que o usuário possa exercer seus direitos como cidadão.16-10
As enfermeiras entrevistadas compreendem que a internação compulsória e a involuntária para as famílias representam uma possibilidade de amenizar o sofrimento, se constituindo um recurso utilizado quando outras formas de enfrentamento se esgotaram, diante dos riscos cotidianos e das crises graves em suas residências. Tal observação é evidenciada a seguir:
Quando chega alguma solicitação para involuntária e compulsória é difícil. Temos que trabalhar com os familiares que precisam urgentemente que o seu filho ou seu familiar fique afastado, seja para diminuir riscos que ele esta vivenciando, seja para a própria família descansar um pouco e aliviar seu sofrimento (E1).
Os familiares se veem desesperados com situações de crises graves em casa. Aí, o ambulatório está superlotado, às vezes, a unidade esta cheia. Então, a justiça (internação compulsória) acaba sendo o último recurso para esses familiares buscarem ajuda (E3).
A partir do que foi apresentado nos fragmentos, considerando as circunstâncias que levam os familiares a solicitarem uma internação, E3 traz uma das situações que levam os familiares a solicitarem uma internação via judicial. São casos em que não há vagas para atendimentos nos ambulatórios, ou não há leitos disponíveis nas unidades de internação. Nesses casos, os familiares veem a internação compulsória como uma forma de garantir o atendimento para seu familiar usuário. Esses momentos podem ser uma possibilidade de apoio e criação de estratégias terapêuticas para os usuários e seus familiares. Um recurso utilizado é a elaboração de um Projeto Terapêutico Singular (PTS), que consiste na identificação das necessidades do usuário, da família e das indicações da equipe de saúde. O PTS, objetiva traçar uma estratégia de intervenção considerando às singularidades do usuário e sua família, não os encaixando em normas fixas que devem ser cumpridas.17 As internações sejam voluntárias, involuntárias ou compulsórias precisam ser avaliadas de forma crítica considerando as necessidades do usuário. Entretanto, quando ocorrem, podem ser um meio potencializador para o cuidado, visto que as unidades de internação agrupam equipes multiprofissionais, família e usuário em crise. Esse cenário possibilita a oportunidade de pensar a crise e suas repercussões na construção do plano terapêutico para a pessoa com transtorno mental. Tais medidas, guiadas por um cuidado que busca a singularidade, autonomia do usuário e de seus familiares, poderá contribuir para a continuidade do acompanhamento nos serviços extra-hospitalares, assim como da reinserção social do usuário.13 Diante dessa perspectiva, a família demanda suporte profissional, que pode auxiliar no resgate dos vínculos familiares fragilizados no enfrentamento do cotidiano. Tal suporte pode ser oferecido não somente nos serviços de saúde mental, mas também nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Estratégias de Saúde da Família (ESF) e, até em ambientes escolares, por meio da promoção da saúde.18
Visto que os usuários dos serviços de saúde mental podem carecer de cuidados por suas condições orgânicas, psicológicas, psíquicas ou cognitivas, a família é reconhecida como a principal cuidadora.19 Compreendemos que são necessários espaços de discussões voltados aos profissionais na perspectiva de formação em saúde implicados com a construção de um modelo apoiado na Reforma Psiquiátrica, nos princípios do SUS e de ações de educação em saúde junto às famílias e cuidadores que visem proporcionar apoio.
Esses espaços podem ser proporcionados por meio das práticas de Educação Permanente em Saúde, pois possibilitam a reflexão crítica sobre determinado tema, instigando o despertar de atitudes direcionadas a mudanças de modelos hegemônicos, como o modelo asilar e médico-centrado.20 Os espaços de Educação Permanente em Saúde enfocam o investimento ético-político na formação critico-reflexiva em saúde mental. Ademais, visam a afirmação do direito à cidadania e ruptura com as políticas assistencialistas e normalizadoras, as quais implicam na exclusão e estigmatização do usuário.21
A Educação Permanente em Saúde como prática que viabiliza espaços para discussões crítico-reflexivas em relação à terapêutica do usuário e sua família pode proporcionar problematizações que apontem aspectos positivos e mudanças que podem ser percebidas a partir do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Assim, a partir disso, a enfermeira e sua equipe podem avaliar o que necessita ser aprimorado na assistência aos usuários de serviços de saúde mental, com vistas ao direito do usuário a um tratamento de qualidade.
Conforme o E6, algumas mudanças podem ser percebidas:
Os tratamentos tanto com a vontade do paciente ou contra vontade, mesmo tendo essa necessidade, eu acho que mudaram bastante depois do movimento antimanicomial e que culminou na Lei 10.216. Mudou bastante esse paradigma que antigamente era só hospitalar e poucos serviços extra-hospitalares. Em décadas, se conseguiu que isso fosse mudando gradativamente. Eu acho que ainda falta muito para chegarmos ao ideal, no que diz respeito ao tratamento do paciente e respeito à pessoa (E6).
Como aponta E6, "antigamente era só o hospital e poucos serviços extra-hospitalares". A Lei 10.216/2001, tendo como foco a desinstitucionalização, propõe que os hospitais psiquiátricos não constituam a base do sistema assistencial, estabelecendo redes de serviços extra-hospitalares. Em casos graves, quando os recursos extra-hospitalares forem esgotados, a internação é necessária e ela acontece por períodos reduzidos, preferencialmente em hospitais gerais, enfatizando a consolidação de um modelo de atenção à saúde mental integrado e de base comunitária.22 A partir disto, percebemos que as enfermeiras estão apoiando/participando de movimentos que sinalizam para mudanças na atenção em saúde mental. O que corrobora a desconstrução de alguns conceitos antes fortalecidos pelo modelo manicomial, como: isolamento, anormalidade, normalidade, doença mental e cura. As desconstruções desses conceitos vistos como naturais no modelo manicomial levam a questionamentos e reflexões que possibilitam outros modos de pensar e outros modos de atuar como enfermeiras. A partir desta desconstrução, outros conceitos são possíveis de serem construídos, quais sejam: desinstitucionalização, território, cidadania, subjetividade, liberdade, serviços substitutivos, integralidade e família na construção de um paradigma voltado para a Reforma Psiquiátrica.23
Implicada com as mudanças conceituais que se aproximam do cuidado integral, respeitoso e singular, a dimensão sociocultural do processo de Reforma Psiquiátrica propõe que a superação do modelo hegemônico não esteja focada somente na mudança da assistência que é um elemento da dimensão técnico-assistencial. De acordo com a dimensão sociocultural, é importante que a transformação esteja voltada para o lugar da loucura no imaginário da sociedade.10 A partir do modelo proposto pela Reforma Psiquiátrica, é insuficiente transformar a assistência, é preciso que a sociedade veja o usuário de saúde mental como uma pessoa que tem direito a tratamento de qualidade, e a estar inserido na comunidade exercendo sua cidadania.
Nesse contexto, um desafio para o cuidado ao usuário de saúde mental são as internações involuntárias. Para E5, no processo de internação, fatores como o estado psíquico emocional e orgânico associado ao não desejar a internação e ao desconhecimento do serviço, poderia gerar ansiedade e angústia aos usuários. De acordo com E7, as internações são necessárias em alguns momentos e seus resultados poderão variar, conforme cada usuário vivencia esse processo. Isto é evidenciado nos excertos seguintes:
O ideal seria internar por vontade própria, por internação voluntária. Mas, isso é muito raro. Elas (usuárias) se veem obrigadas a estar em um serviço que não gostariam de estar. Por um lado, é bom. Mas por outro, tem uma ambivalência porque o paciente estar internado sem querer, gera angústia e ansiedade. Acaba tendo que ficar em um serviço fechado, com pessoas desconhecidas, sem aceitar o tratamento (E5).
Depende muito. Já teve paciente internado que naquele momento era o que precisava. Foi compulsória porque não se conseguia [...] A gente teve um resultado. O paciente ficou mais organizado depois da internação. Mas, às vezes, piora (E7).
Nos depoimentos, as enfermeiras não se detêm nas diferenciações conceituais de internações compulsórias e involuntárias. Já nesse depoimento, E7 ressalta a internação compulsória. Por ser uma medida judicial não pode ser legalmente questionada, embora sob a ótica da saúde mereça discussões. A partir de um olhar jurídico, tendo como base a Lei 10.216, a internação compulsória não constitui simples privação do direito à liberdade, mas o direito ao tratamento do usuário de saúde mental, buscando-lhe conferir tratamento digno com sua consequente reintegração em seu meio social. A sobredita medida objetiva, primariamente, o direito ao tratamento do usuário com vistas a proteger a si, à sua família e a terceiros.24 As internações psiquiátricas suscitam reflexões baseadas na ambivalência de sua aplicação. Pretendem cuidar e proteger o usuário de riscos a si e/ou a outros, propiciam contato mais próximo com outras clínicas nos hospitais gerais, maior disponibilidade de recursos terapêuticos e diagnósticos. Contudo, pode ser um momento de consternação para quem a vivencia. É fundamental que os profissionais forneçam apoio para o usuário que está internado e para a família de forma individual ou mesmo em grupos de familiares. Prestar esclarecimentos sobre os objetivos da internação pode representar um salto qualitativo na evolução da saúde mental dos usuários e amenizar as angustias e ansiedades durante o processo de internação.1
Em situações em que o paciente não apresenta discernimento, consciência de suas ações, as enfermeiras salientam que a internação involuntária deve ser considerada. Porém, quando o usuário tem consciência, reconhece os motivos da internação, outras possibilidades poderiam ser consideradas mais efetivas como retratam E2 e E8:
A involuntária é uma forma que tem que ser feita infelizmente. Porque no transtorno mental o paciente, às vezes, não tem discernimento, não tem o insight, aí tem que internar (E2).
Como enfermeira, acho que não funciona muito. Não é de grande efetividade para o tratamento. Para aquela pessoa que é consciente (usuário de álcool e outras drogas), que não tem um transtorno e que sabe que está vindo para uma internação tem que ser o querer, o aceitar. A força, não dá muito certo. Cabe para uma situação de um paciente com transtorno. É outra situação, que a pessoa não tem consciência do que ela esta tendo, do transtorno que está acontecendo com ela, da doença que está ocorrendo (E8).
Vale ressaltar que, em alguns momentos, os usuários de álcool e outras drogas podem não apresentar juízo crítico quanto as suas condições de saúde mental. Alguns comportamentos ou manifestações como tolerância, abstinência, aumento do consumo, vontade de reduzir o uso sem sucesso, abandono ou diminuição do convívio social e familiar são alguns dos critérios que caracterizam a dependência.25 Nessas situações, a internação pode ser um importante recurso para estabilizar o usuário. As internações são indicadas nos casos considerados graves quando existe risco para si, para sua família, para a sociedade ou risco de exposição social.
As especificidades dos transtornos mentais e do uso de álcool e outras drogas demonstram a importância da qualificação profissional e da compreensão das enfermeiras referente às internações em cada situação, para que possam a partir do que caracteriza cada momento, elaborar planos terapêuticos de cuidado. Dessa forma, as internações psiquiátricas são indicadas em um curto período, quando os recursos extra-hospitalares forem esgotados, sendo proibido legalmente o internamento em locais com características asilares. As internações apresentam como finalidade a estabilização do quadro clínico e psíquico do usuário e ajuste de uma terapêutica. Corroborando com esse entendimento, os profissionais de saúde mental busquem entender o contexto sociocultural e familiar dos usuários para que o conceito de alienação como contradição na razão não justifique as internações.22-10
Atuar com base na Reforma Psiquiátrica e na integralidade do cuidado percebendo o contexto sociocultural e familiar do usuário exige comunicação entre os profissionais e uma rede de cuidado onde o usuário possa transitar sem que a assistência seja fragmentada. De acordo com E1 e E6, a pouca comunicação entre os serviços e a fragmentação da rede de saúde mental configura um desafio para o cuidado nessa área de atuação. Para elas, o trabalho em equipe que atenda as necessidades do usuário poderia reduzir o número de internações compulsórias e involuntárias.
A rede de saúde mental tem muitas falhas, principalmente dos serviços. Não há uma comunicação entre os profissionais [...] (E1).
É um trabalho que envolve toda a equipe, que nem sempre apresenta comunicação. A rede ainda não está preparada [...] O ideal seria que o indivíduo fosse assistido em todas as suas necessidades, em todas as situações, com qualidade na sua assistência, com um olhar bem individual. Mas sabemos que não é isso que acontece. Estamos trabalhando para que possamos evitar estes tipos de internações (compulsórias e involuntárias). Mesmo com as dificuldades quando conseguimos evitar ficamos satisfeitas (E6).
A fragilidade na rede de atenção em saúde mental gera sentimento de frustração na enfermeira como, por exemplo, quando o usuário frequenta o serviço extra-hospitalar e, no entanto, acaba internando. O sentimento de fragilidade e impotência é sentido, como relatado por E4, quando não há outras possibilidades que não as internações compulsórias e involuntárias.
Nos frustra um pouco enquanto serviço quando tem um paciente que acaba indo para uma internação compulsória. Temos a sensação de que não conseguimos tratar adequadamente esse paciente. Dá uma sensação de fracasso. (E4)
A assistência à saúde mental estruturada a partir de redes de atenção é fundamental no processo de inclusão do usuário, uma vez que ela proporciona vida comunitária e cuidada no território, colaborando para o resgate da cidadania do usuário de saúde mental. Para que as redes sejam efetivadas de forma eficaz, a comunicação e a interação entre os serviços surgem como instrumentos fundamentais para o cuidado de enfermagem.26 A fragilidade na rede de saúde mental abordada pelas enfermeiras gera sentimentos de fracasso, apontando para a necessidade de interação entre os profissionais dos serviços de saúde que compõem Rede de Atenção Psicossocial.27 Desse modo, consideramos importantes espaços de Educação Permanente, que promovam o encontro dos profissionais para discussões em relação aos conceitos de cuidado em enfermagem em saúde mental, enfatizando a temática interação e comunicação, devido à sua complexidade e, sobretudo, sua importância para o processo de cuidar.26 Percebemos que, historicamente, a loucura foi vista como algo que deveria ser normalizada e a internação como uma maneira de reorganizar a pessoa tida como louca. Com o advento da Reforma Psiquiátrica, pudemos perceber mudanças em relação ao respeito e tratamento ao usuário, como demonstrado nas falas das enfermeiras quando se referem ao cuidado que envolve o usuário e sua família. Sobre os desafios, às transformações não podem ser somente assistenciais, é preciso que ocorram mudanças nas bases conceituais dos serviços, modificações no que diz respeito, por exemplo, a dimensão epistemológica: as noções de doença, terapia, cura e tratamento.23
Como resultados advindos desta pesquisa, consideramos que a internação compulsória e involuntária deveria considerar fatores importantes na avaliação do contexto do usuário, tais como, fatores familiares, socioculturais, sua singularidade, sua historia de vida. Além disso, por meio das falas das enfermeiras, é possível perceber o sofrimento dos familiares ao realizarem a internação. As enfermeiras ressaltam que, geralmente, a internação acontece quando há presença de sofrimento entre os familiares e estes não encontram outras soluções além da internação. Quanto à compreensão das diferentes modalidades de internação, as enfermeiras em seus depoimentos não trouxeram elementos que as diferenciassem. Os depoimentos não se detiveram nas especificidades de cada tipo internação, mas sim nos cuidados destinados aos usuários de saúde mental. Os resultados deste estudo apontam para a dificuldade de comunicação entre os serviços que compõem a rede de atenção à saúde mental, configurando um desafio para o cuidado integral em saúde mental. A partir da compreensão de internações compulsórias e involuntárias, as enfermeiras podem pensar em espaços de discussões que promovam as suas reflexões no que diz respeito à qualidade da assistência. Pensamos que podemos efetivar esta possibilidade por meio de ações como espaços de Educação Permanente que oportunizam a problematização da temática entre as enfermeiras e suas equipes de trabalho. Consideramos importante, enfatizar temas como a comunicação entre serviços da rede de atenção à saúde mental, internações psiquiátricas e Reforma Psiquiátrica. A compreensão das enfermeiras acerca das internações se configura como um recurso que deva ser utilizado em determinadas situações, considerando o contexto familiar, sociocultural e a singularidade de cada usuário. Algumas situações de saúde mental são tidas como condições que trazem riscos aos usuários (clínicos, psicossociais, entre outros) e a internação pode ser usada como alternativa para um cuidado seguro e libertador. Desejamos que este estudo possa incentivar outros debates, que contribuam com a pesquisa na área da enfermagem e com os serviços de saúde mental, bem como para reflexão quanto a importância da internação e os modos como ela acontece nos dispositivos contemporâneos de saúde mental. Como limitação do estudo, apontamos a dificuldade de desenvolver a pesquisa em alguns cenários devido à rotatividade das equipes de saúde.